Correspondente em Washington inicia crónica semanal no site da CNN Portugal - que nasce no momento em que se vive uma encruzilhada existencial nos Estados Unidos. A grande democracia ocidental está sob ameaça
Conseguirá a grande democracia ocidental salvar-se da tentativa de destruição germinada no seio do Partido Republicano por Donald Trump e os seus extremistas?
Para que não restem dúvidas: a democracia nos Estados Unidos está sob ameaça grave. Donald Trump e os seus apoiantes, na extrema-direita americana, tentaram impedir o Congresso de confirmar a vitória eleitoral do Presidente Joe Biden, no dia 6 de Janeiro, e recorrer ao equivalente americano do Ministério da Justiça para desencadear um golpe de Estado nos bastidores.
Face aos graves incidentes daquele dia, no Capitólio, o Partido Republicano acobardou-se e, em vez de pugnar pela defesa das regras democráticas, combate aqueles que as defendem, nomeadamente expulsando-os das suas fileiras.
O mito urbano de que Donald Trump venceu as eleições em 2020 e que a vitória lhe foi roubada pelos democratas (como pode a oposição “roubar” eleições?) tornou-se profissão de fé e o principal esteio ideológico dos republicanos.
Limitar o voto, manipular distritos eleitorais
Com esse pretexto, legislaturas onde o Partido Republicano tem a maioria (em 26 dos 50 estados americanos) estão a aprovar leis destinadas a limitar o exercício do direito de voto. Noutras, os distritos eleitorais, revistos após o censo populacional efectuada em cada década, estão a ser reconfigurados por forma a permitir o governo, anti-democrático, pela minoria.
Este processo de manipulação dos distritos eleitorais, chama-se nos Estados Unidos “gerrymandering” (não existe tradução em português) e consiste em “arrumar” eleitores por forma a que à maioria dos votos não corresponda a maioria dos lugares eleitos.
Nas eleições de 2020, na Carolina do Norte, os republicanos venceram oito dos 13 distritos eleitorais com apenas 49% dos votos em todo o estado. A revisão em curso dos distritos eleitorais no estado de Ohio visa garantir aos republicanos 12 dos 15 distritos eleitorais, com apenas 55% dos votos.
O problema não é de hoje, mas manifesta-se, hoje, em todo o seu perigo, podendo, nas eleições legislativas intercalares de 2022, entregar o controlo do Congresso a um Partido Republicano minoritário, se um número suficiente de distritos for manipulado.
Constituição antiga, Supremo Tribunal apático
As causas desta situação são várias. Uma é certamente o texto da Constituição, um documento do Séc. XVIII inadequado a uma democracia do Séc. XXI. Outra é a Lei Eleitoral de 1845 que, apesar de algumas alterações, entre 1870 e 1972, se mantém em vigor. A Constituição dá a cada estado o direito de gerir as eleições no seu território.
Outra, ainda, é o papel nefasto de um Supremo Tribunal “originalista” sem sintonia com a maioria do país e à sombra do qual se abriga uma corrente preconizando que, de acordo com a Constituição, os Estados Unidos são uma república, mas não necessariamente uma democracia.
Abordaremos as múltiplas causas desta perigosa crise em crónicas posteriores.
Para já, e ainda a propósito do “gerrymandering”, é importante notar que esta prática persiste por dois motivos essenciais.
O primeiro é um acórdão do Supremo de 2019, determinando que a manipulação dos distritos eleitorais é injusta e anti-democrática (porque impede que a maioria detenha os lugares eleitos a que tem direito) mas não compete ao tribunal solucionar o problema – terá de ser o Congresso a fazê-lo.
O segundo é que, sendo o principal beneficiário, o Partido Republicano se opõe a quaisquer soluções legislativas e, fruto das regras vigentes no Senado, inviabiliza as propostas democratas que carecem de uma maioria de 60% dos votos.
Confrontados com a iminência de, sendo partido maioritário, se virem reduzidos a uma minoria no Congresso, os democratas decidiram manipular igualmente os distritos eleitorais nos estados em que detêm a maioria nas legislaturas estaduais.
Levada esta situação às últimas consequências, sem alterações a breve trecho, as eleições americanas passarão a ser uma forma ilegítima de obter o poder sem a maioria dos votos ou, no melhor dos casos, um jogo de regras e chico-espertices em vez de o simples reflexo da vontade da maioria dos eleitores.