opinião
Correspondente nos Estados Unidos da América

A vitória desperdiçada de José Eduardo dos Santos

9 jul 2022, 22:17

Uma das maiores vitórias diplomáticas de José Eduardo dos Santos, enquanto presidente de Angola, foi ter conseguido o reconhecimento do seu governo pelos Estados Unidos. Foi uma de muitas oportunidades perdidas. O texto que segue é adaptado do meu livro “Uma Vida em Directo”.

Em Março de 1993, quando trabalhava, em Washington, para a emissora Voice of America, recebi um telefonema de Shawn McCormick, então vice-director para África, no Centro de Estudos Estratégicos Internacionais. «Não vais acreditar», disse com visível entusiasmo. «O Clinton acaba de me dizer que os Estados Unidos vão reconhecer o governo de Angola». 

Era difícil sobrestimar a importância da notícia. Os Estados Unidos eram, dezoito anos após a independência de Angola, o único país no mundo que não reconhecia o seu governo.

O secretário de Estado, Henry Kissinger, jurou em 1976 que Washington nunca reconheceria o governo do MPLA devido à execução do mercenário americano Daniel Gearhart, acusado de combater ao lado da FNLA, contra as forças governamentais.

Posteriormente, o presidente Jimmy Carter prometeu reconhecer Angola se os cubanos prometessem retirar as suas tropas do país. 

O presidente Ronald Reagan actualizou a posição dos Estados Unidos exigindo a retirada militar cubana, de facto – e não apenas uma promessa. 

Finalmente, George H. W. Bush acrescentou outra condição: um «processo de reconciliação nacional conducente a eleições livres e justas». Quando esse passo foi cumprido com os Acordos de Nova Iorque e os de Bicesse, a administração Bush voltou a desviar a baliza da bola e fez depender o reconhecimento da realização das «eleições livres e justas» como tal certificadas internacionalmente.

Quando a ONU, com a anuência de Washington, declarou as eleições angolanas «em geral livres e justas» e a UNITA as rejeitou, receava-se que a formulação da política americana sofresse nova metamorfose – resquícios republicanos na administração cessante, tentaram condicionar o reconhecimento de Angola a um acordo de partilha do poder entre o MPLA e a UNITA, recompensando esta por rejeitar as eleições que perdeu.

Mas ventos novos sopravam na capital.

Na noite de 31 de Março, Shawn McCormick concedeu-me uma entrevista relatando a sua improvável conversa com o novo presidente, investido nas suas funções há dois meses: «O Presidente Clinton discursou num evento no Hotel Hilton e eu estava na fila de cumprimentos e pensei ‘aqui está o presidente, vou cumprimentá-lo e fazer-lhe uma pergunta’. Quando ele me apertou a mão, segurei a mão dele, inclinei-me na sua direção e perguntei: ‘Senhor presidente, quando vai reconhecer o governo de Angola?’ Clinton, que era todo sorrisos, parou, olhou para mim com ar sério e disse: ‘Interessante que me faça essa pergunta. Acabei de me reunir com a minha equipa e dei-lhes quatro semanas para me explicarem porque não havemos de o fazer’. Dito isto, soltou a minha mão, e retomou os sorrisos e os cumprimentos».

A entrevista causou sensação em Luanda e em Washington. Na capital angolana, onde a notícia chegou no dia seguinte, muitos julgaram tratar-se de uma mentira do dia 1 de Abril e só depois de eu facultar uma transcrição ao embaixador angolano na Organização dos Estados Americanos, José Patrício, e de ele ter conferido o episódio pessoalmente com McCormick é que Luanda aceitou que a o assunto era sério e a história verdadeira. Mais surpreendente foi a reacção de um funcionário superior do Departamento de Estado com quem, no dia seguinte, abordei a declaração de Clinton: «Achas que, só por causa daquilo que o presidente disse ao teu amigo, nós vamos reconhecer esses palhaços?»

McCormick lembra-se de, nesse dia, ter tido uma conversa semelhante, com um responsável pela diplomacia africana, que me relatou: «‘Shawn, só porque o presidente te disse uma coisa numa fila de cumprimentos, não quer dizer que isso seja a nossa política.’ Fiz uma pausa, chocado, e respondi: ‘Ele é o presidente, tu és o Departamento de Estado, deixo essa luta para ti e vamos a ver quem ganha’».

Nenhum de nós sabia, e isso foi-me relatado, anos mais tarde, por Nancy Soderberg, vice-conselheira de Segurança Nacional da Casa Branca, que Bill Clinton ordenara uma revisão da política para Angola dias após o cancelamento, em Fevereiro, da segunda sessão de negociações, entre a UNITA e o governo angolano, em Adis Abeba. 

A resistência da burocracia à declaração do presidente em 31 de Março fazia-se sentir nas deliberações internas sobre a política angolana. Os elementos que transitaram da administração republicana de George H. W. Bush queriam impedir que Washington se afastasse da UNITA e essa resistência à nova administração democrata ficou documentada em memorandos e depoimentos que aqui se revelam, pela primeira vez.

Soderberg conta que «o presidente dizia ‘queremos fazer isto [reconhecer o governo]’ e a burocracia respondia com mais perdas de tempo, mais razões para não se fazer nada, ou ‘vamos estudar mais o assunto’, ou ‘vamos reconhecer mas não já’, ou ‘reconhecemos mas não nomeamos embaixador’, e nós considerávamos isso ridículo a ponto de um dia compararmos a situação com aquela comédia inglesa Sim, Senhor Ministro sempre que a burocracia respondia com mais um adiamento».
Nancy Soderberg facultou-me os seus apontamentos das reuniões secretas no Conselho de Segurança Nacional, assim como os memorandos secretos preparados para as várias reuniões em que o assunto foi discutido, dando conta desses adiamentos.

Numa reunião em Fevereiro de 1993, anotou que o debate incluía a ideia de que «reconhecer incondicionalmente o governo angolano desperdiçava a possibilidade de se lhe extraírem novas concessões na partilha de poder com a UNITA». 

Esta ideia, foi, aliás, proposta oficialmente pelo Grupo Interministerial de Trabalho, num documento secreto levado à discussão na Casa Branca, favorecido pelo Departamento de Estado, o Pentágono e a CIA e colocava os Estados Unidos na ingrata posição de agentes da UNITA nas negociações com o governo de Angola marcadas para 12 de Abril em Abidjan.

Da discussão saiu um compromisso a apresentar aos contendores angolanos: os Estados Unidos reconheceriam o governo de unidade nacional saído das conversações de Abidjan. Na capital costa-marfinense foi aprovado um memorando com 37 itens prevendo, nomeadamente, a conclusão do processo eleitoral (segunda volta das eleições presidenciais), um cessar-fogo, assistência humanitária, acantonamento de forças militares, desmobilização das tropas excedentárias, e uma vasta participação da UNITA a todos os níveis do governo. O governo angolano predispôs-se a assinar o documento. A UNITA recusou.

Por esta altura, a equipa de Clinton, na Casa Branca reconheceu que a UNITA «estava no lado errado da história» e não lhe devia ser permitido bloquear o memorando de Abidjan e, com isso, o reconhecimento do governo angolano. Nancy Soderberg recordou que Bill Clinton, pura e simplesmente, perdeu a paciência.

«O presidente Clinton, a uma dada altura, disse: ‘Estou farto disto e vou simplesmente fazê-lo [reconhecer o governo].’ No dia seguinte [19 de Maio] o presidente tinha uma audiência com o arcebispo Desmond Tutu, da África do Sul, e decidiu que estava farto do processo e anunciaria a sua decisão nessa audiência”».

Os Estado Unidos reconheceram o governo de Angola, ameaçaram a UNITA com “as mais graves consequências” se esta atacasse interesses americanos em Angola, nomeadamente as instalações das empresas petrolíferas. Ainda e 1993, os Estados Unidos impuseram sanções à UNITA. A paciência americana com Jonas Savimbi acabara.

Nove anos mais tarde, Savimbi foi morto em combate e a guerra civil terminou. Mas do fim da guerra não resultou a prometida prosperidade, nem o aprofundamento da democracia. A elite do regime, incluindo a família presidencial, apossou-se de substanciais verbas do erário público para enriquecimento pessoal, conforme foi denunciado por diversas organizações de transparência e jornalistas de investigação.

O MPLA, partido no poder, assumiu o controle total do aparelho de estado, controlando o sistema politico e eleitoral, as fontes de riqueza e os meios de comunicação social. A dissensão era reprimida om violência.

José Eduardo dos Santos e o seu regime, não quiseram transformar em paz e prosperidade o fim da guerra que decorreu, em boa medida, do abandono da UNITA pelo seu principal patrono internacional – os Estados Unidos.

Sabendo dos meus contatos em altos responsáveis da administração americana um conselheiro de José Eduardo dos Santos queixou-se, em plena Primavera Árabe, em 2011, de que os Estados Unidos estavam por detrás dos tumultos que abalavam ditadores no Médio Oriente e acusou Washington de interferência em Angola, porque «nos querem derrubar como derrubaram o Khadafi». 

Não era, de todo, esse o caso, mas foi por essa altura que os chamados «revus» começaram a organizar protestos, nas ruas de Luanda, contra Eduardo dos Santos e a sua «Família Real», em que 50 manifestantes eram recebidos e espancados por centenas de polícias fardados e à paisana. O receio do regime era que os 50 de hoje fossem 50 mil, amanhã. Quem não dorme o sono dos justos vive constantemente com pesadelos.

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