Filipe Santos Costa inicia hoje uma nova coluna de opinião, que usa como título uma célebre citação de um ex-primeiro-ministro (ver nota final deste texto). Os calores do momento são hoje outros. Perante a erupção bruta e crua do ódio de extrema-direita, o Almirante calou-se, Moedas falou tarde e desconversou, e o Governo ficou com um apagão por explicar
Os factos são conhecidos. No dia 10 de Junho, Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesa — ou Dia da Raça, para os apoiantes de André Ventura e demais extrema-direita —, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa exaltava a nossa universalidade e lembrava que “não há portugueses puros”, tanta é a misturada que nos corre no sangue, alguns “portugueses de bem”, como lhes chama Ventura, sentiram-se suficientemente à vontade para insultar e agredir com violência outros portugueses. Foram dois incidentes distintos.
O bom “povo português”. O primeiro caso aconteceu no tradicional Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes, em Belém, onde está o Monumento aos Combatentes do Ultramar. Todos os anos há este encontro no 10 de Junho, todos os anos o evento inclui uma cerimónia inter-religiosa católica e muçulmana, que se justifica por razões que até um terraplanista consegue perceber. Portugal não foi sempre o retângulo europeu mais as ilhas. Houve um tempo em que incluía territórios africanos, Timor e até bocados da Índia e Macau, na China. Apesar do racismo que marcou séculos de história, era português quem nascesse nesses territórios, que eram Portugal. Quando espoletou a Guerra Colonial, os combatentes portugueses não eram apenas brancos, católicos, europeus, do continente e ilhas, de preferência loiros e de olhos claros — eram também gente de todos os tons de pele e crentes de diversas religiões, incluindo muçulmanos. Combateram lado a lado, sobreviveram ou morreram lado a lado seguidores dos ensinamentos de Cristo e de Maomé. Faz sentido, por isso, que a cerimónia que os lembra e os celebra, os lembre e celebre também na diversidade das suas crenças.
O xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, português de 63 anos nascido em Moçambique, falante de português desde o colo da mãe, que há 25 anos representa os muçulmanos nessa cerimónia em Belém, foi insultado por dois ou três energúmenos que nem falharam a saudação nazi. Gritaram-lhe que a sua presença ali era “uma traição ao povo português”. “Isto é uma vergonha, pá. Isto não é a tua pátria”, berraram ao homem que estava na sua pátria.
A lição de Lídia. A piromania de Ventura. Pouco antes, em Lagos, Lídia Jorge tinha explicado tão bem o que é isso do povo português.”No séc. XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido, arrastados, até aqui. E nos miscigenámos. O que significa que aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência na realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Esta é a realidade, apesar da “fúria revisionista que nos assalta”.
Mas o ódio, o ressentimento e a fraca inteligência não se compadecem com factos históricos nem com argumentos racionais. Pelo contrário, só precisam de quem lhes acicate os impulsos mais básicos e brutos. O que vale um longo discurso numa cerimónia oficial, ao pé de tiktoks básicos de poucos minutos, que têm milhões de visualizações? As redes sociais da direita nacionalista e outras expressões de extrema-direita — incluindo, claro, o Chega — têm sido generosas a regar fogueiras com gasolina. Foi isso que fez Ventura, o mais famoso e influente pirómano de serviço, e, de todos, aquele a quem se abrem todas as portas de todos os estúdios de televisão, nos horários da manhã, da tarde e da noite, nos programas de notícias e de entretenimento.
“O que estava a fazer o imã da Mesquita de Lisboa numa homenagem aos antigos combatentes??? [três pontos de interrogação] Há coisas que parecem simplesmente provocação aos cidadãos comuns e aos nossos valores cristãos. Pura provocação!”, escreveu na sua rede social favorita, partilhando um vídeo em que repete as mesmas ideias com todo o histrionismo e cinismo que foi capaz de acumular na face. Quando partilhou o vídeo, já nesta quarta-feira, Ventura tinha mais do que tempo de saber o que se passou e apurar a verdade sobre a tradição desta homenagem. Mas nada lhe interessa que não seja fomentar a indignação e o ressentimento. E, já agora, culpar a vítima.
Silêncios que matam. Nada na atitude de Ventura surpreende. O que surpreende é saber que o Almirante Gouveia e Melo, que estava na mesma cerimónia, foi incapaz de articular um murmúrio de condenação daquela cena, apesar de ele próprio ter sido alvo dos cavernícolas de serviço. “O almirante Gouveia e Melo está entregue aos traidores”, foi uma das frases cuspidas por um dos nazis de braço levantado. Terminada a cena, o Almirante limitou-se a balbuciar uma frase patética — “estes momentos são de união, não de desunião”, a que acrescentou a ideia de que “quem não conhece a história não tem futuro”. Afinal… tanta voz de comando, tanta vontade de pôr o povo na ordem, tantas horas a desafiar limites no fundo dos oceanos, tanta sanha contra “os malandros”, tanta pose hirta, tanto queixo firme, tanta farda, para na hora da verdade sair isto?
Segundo o relato feito ao Público pelo xeque Munir, nem em privado o Almirante fez qualquer comentário sobre o que tinha acontecido. Vá lá, não disse que havia muito boas pessoas dos dois lados.
Acontece que a realidade com que um político tem de se confrontar — e o Almirante agora é um político — não é um submarino com uma tripulação obediente. Nem uma operação logística para a qual o Estado não poupa recursos. A realidade é inesperada, insubordinada, suja, arriscada, e não se prepara a régua e esquadro. Na realidade não há segunda oportunidade para uma primeira boa impressão. O Almirante, em quem tanta gente projeta tantas qualidades supimpas, falhou da primeira vez que a realidade se lhe atravessou no caminho de candidato presidencial. Calou-se perante a extrema-direita racista, xenófoba e neonazi. É um silêncio que mata.
Carlos Moedas, que tem mais traquejo nisto da política, também estava lá e também se manteve calado e nada disse aos media depois da cena de insultos. Mas, baixinho, discretamente, disse ao xeque Munir para ter paciência e deu-lhe um abraço — relato do próprio dirigente religioso na mesma reportagem do Público. Imagino a cena: tenha lá paciência, eles são assim… se calhar Moedas até pensou que havia boas pessoas dos dois lados.
Moedas folga as costas à extrema-direita. O silêncio sonso do autarca de Lisboa sobre o extremismo que aconteceu à sua frente contrasta com a forma muito vocal como o mesmo Moedas reagiu à outra irrupção de ódio da extrema-direita que marcou este 10 de Junho. Na noite de terça-feira, à porta do teatro A Barraca, cerca de três dezenas de neonazis insultaram os atores que entravam para a representação de uma peça sobre Luís de Camões. Sem como nem porquê, acabaram por agredir três atores, deixando em estado grave Adérito Lopes, por sinal, o Camões deste “O Amor É Fogo Que Arde Sem Se Ver…”.
Ao contrário do amor, o ódio e os seus resultados ardem na rua e entram pelos olhos dentro. Os pontos no rosto de Adérito Lopes que o digam. A ministra da Cultura condenou o ataque, o Livre, o BE e o PCP também, e o candidato à liderança do PS pediu esclarecimentos ao Governo, exigindo a “atuação da Justiça”. Moedas demorou o seu tempo, é verdade, mas não quis ficar atrás. Considerou o ataque aos atores “inadmissível” e fez aquilo que faz melhor: dramatizou, desresponsabilizou-se e distribuiu responsabilidades. “É inadmissível este tipo de ataques. Era um ator, é um ataque à nossa identidade, à nossa cultura.” Curioso: Moedas não denunciou um ataque semelhante quando, fazendo a saudação nazi, à sua frente, um troglodita atacou a nossa identidade multicultural…
Mas Moedas disse mais: culpou os Governos pela falta de polícias (nota mental: Moedas nunca, nunca, nunca tem responsabilidades por alguma coisa má que aconteça em Lisboa), como se uma emboscada de uma organização neonazi tivesse a ver com a falta de polícias na rua…
Carlos Moedas ainda aproveitou para aliviar as culpas da extrema-direita, indo buscar a extrema-esquerda onde ela não era chamada. “São os extremos que estão a causar estes problemas”, explicou, citando especificamente “extremismos à direita e também extremismos à esquerda”. Bem me pareceu que Moedas acha que há boas pessoas de um lado e do outro, como Trump… um comentário muito adequado quando só um dos lados provocou violência.
O apagão que precisa de explicação. Segundo o Expresso, o ataque contra A Barraca terá sido organizado pelo grupo Blood & Honour, neonazis há muito referenciados pela Judiciária e pelos nossos serviços de informações. O mesmo jornal dá conta de que esta organização, considerada terrorista em alguns países, era um dos focos de preocupação do mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente a 2024. Curiosamente, a parte do relatório que analisava o modo de atuação e as ameaças colocadas por este grupo de extrema-direita nunca foi tornada pública. Na versão final do RASI, apresentada aos deputados e divulgada como documento oficial, há um apagão que o Governo e o Sistema de Segurança Interna nunca, até hoje, explicaram.
Talvez agora o Governo tenha alguma coisa a dizer, para além das proclamações grandiloquentes da ministra da Cultura, Juventude e Desporto. Não são frases como “a cultura não se intimida” que intimidam os bárbaros. Mas os silêncios cúmplices animam-nos. E as palavras incendiárias alimentam-nos.
(Ah!, até à publicação deste texto André Ventura não tinha publicado qualquer tweet verbalizando uma sílaba contra os agressores d’A Barraca. Publicou vários vídeos, até com acusações patetas sobre Marcelo e Lídia Jorge serem traidores à Pátria, mas nada sobre os neonazis que espalham violência e insegurança – e não apenas “sensação de insegurança”. É natural. Está a defender uma parte do seu eleitorado.)
Nota do editor: "Que se lixem as eleições"
O título desta nova coluna de opinião regular da autoria de Filipe Santos Costa é retirado de uma frase de Pedro Passos Coelho dita a 23 de julho de 2012.
O então primeiro-ministro da coligação PSD/CDS, que governava o país há um ano sob a intervenção externa da troika (FMI, BCE e Comissão Europeia) e geria um resgate de 78 mil milhões de euros, falava num jantar do grupo parlamentar do PSD. "Que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal", afirmou Pedro Passos Coelho, dirigindo-se a quem no PSD sugeria que "já chega de ser bom aluno" e de fazer "sacrifícios" porque se aproximavam atos eleitorais e era preciso não perder votos.
"A verdade é que nenhum dos senhores ou das senhoras foi eleito para esse mandato. Nenhum dos que aqui estão foi eleito para ganhar as próximas eleições, ou para ajudar a ganhar autárquicas, nem as regionais deste ano nos Açores, nem as europeias que aí vêm a seguir, não foi para isso que fomos eleitos. Foi para responder ao país", acrescentou o então primeiro-ministro, recebendo palmas.
Treze anos depois, Portugal encontrou no calendário quatro atos eleitorais em apenas dez meses: as regionais na Madeira de 23 de março passado, as legislativas do passado dia 18 de maio, as próximas autárquicas entre final de setembro e início de outubro e as presidenciais de janeiro de 2026.
Depois do Bestiário e do Folhetim de Voto, rubricas dedicadas às legislativas, a coluna "Que se lixem as eleições" pontuará o país político contrastando-o com o inevitável horizonte eleitoral.