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Comentador CNN

Que se lixem as eleições | O silêncio do almirante + a sonsice de Moedas + o apagão do Governo

12 jun, 08:30
Marcelo Rebelo de Sousa no 10 de Junho em Lagos (Lusa)

Filipe Santos Costa inicia hoje uma nova coluna de opinião, que usa como título uma célebre citação de um ex-primeiro-ministro (ver nota final deste texto). Os calores do momento são hoje outros. Perante a erupção bruta e crua do ódio de extrema-direita, o Almirante calou-se, Moedas falou tarde e desconversou, e o Governo ficou com um apagão por explicar

Os factos são conhecidos. No dia 10 de Junho, Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesa — ou Dia da Raça, para os apoiantes de André Ventura e demais extrema-direita —, enquanto Marcelo Rebelo de Sousa exaltava a nossa universalidade e lembrava que “não há portugueses puros”, tanta é a misturada que nos corre no sangue, alguns “portugueses de bem”, como lhes chama Ventura, sentiram-se suficientemente à vontade para insultar e agredir com violência outros portugueses. Foram dois incidentes distintos.

O bom “povo português”. O primeiro caso aconteceu no tradicional Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes, em Belém, onde está o Monumento aos Combatentes do Ultramar. Todos os anos há este encontro no 10 de Junho, todos os anos o evento inclui uma cerimónia inter-religiosa católica e muçulmana, que se justifica por razões que até um terraplanista consegue perceber. Portugal não foi sempre o retângulo europeu mais as ilhas. Houve um tempo em que incluía territórios africanos, Timor e até bocados da Índia e Macau, na China. Apesar do racismo que marcou séculos de história, era português quem nascesse nesses territórios, que eram Portugal. Quando espoletou a Guerra Colonial, os combatentes portugueses não eram apenas brancos, católicos, europeus, do continente e ilhas, de preferência loiros e de olhos claros — eram também gente de todos os tons de pele e crentes de diversas religiões, incluindo muçulmanos. Combateram lado a lado, sobreviveram ou morreram lado a lado seguidores dos ensinamentos de Cristo e de Maomé. Faz sentido, por isso, que a cerimónia que os lembra e os celebra, os lembre e celebre também na diversidade das suas crenças.

O xeque David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, português de 63 anos nascido em Moçambique, falante de português desde o colo da mãe, que há 25 anos representa os muçulmanos nessa cerimónia em Belém, foi insultado por dois ou três energúmenos que nem falharam a saudação nazi. Gritaram-lhe que a sua presença ali era “uma traição ao povo português”. “Isto é uma vergonha, pá. Isto não é a tua pátria”, berraram ao homem que estava na sua pátria.

A lição de Lídia. A piromania de Ventura. Pouco antes, em Lagos, Lídia Jorge tinha explicado tão bem o que é isso do povo português.”No séc. XVII, 10% da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido, arrastados, até aqui. E nos miscigenámos. O que significa que aqui ninguém tem sangue puro. A falácia da ascendência única não tem correspondência na realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou.” Esta é a realidade, apesar da “fúria revisionista que nos assalta”.

Mas o ódio, o ressentimento e a fraca inteligência não se compadecem com factos históricos nem com argumentos racionais. Pelo contrário, só precisam de quem lhes acicate os impulsos mais básicos e brutos. O que vale um longo discurso numa cerimónia oficial, ao pé de tiktoks básicos de poucos minutos, que têm milhões de visualizações? As redes sociais da direita nacionalista e outras expressões de extrema-direita — incluindo, claro, o Chega — têm sido generosas a regar fogueiras com gasolina. Foi isso que fez Ventura, o mais famoso e influente pirómano de serviço, e, de todos, aquele a quem se abrem todas as portas de todos os estúdios de televisão, nos horários da manhã, da tarde e da noite, nos programas de notícias e de entretenimento. 

“O que estava a fazer o imã da Mesquita de Lisboa numa homenagem aos antigos combatentes??? [três pontos de interrogação] Há coisas que parecem simplesmente provocação aos cidadãos comuns e aos nossos valores cristãos. Pura provocação!”, escreveu na sua rede social favorita, partilhando um vídeo em que repete as mesmas ideias com todo o histrionismo e cinismo que foi capaz de acumular na face. Quando partilhou o vídeo, já nesta quarta-feira, Ventura tinha mais do que tempo de saber o que se passou e apurar a verdade sobre a tradição desta homenagem. Mas nada lhe interessa que não seja fomentar a indignação e o ressentimento. E, já agora, culpar a vítima.

Silêncios que matam. Nada na atitude de Ventura surpreende. O que surpreende é saber que o Almirante Gouveia e Melo, que estava na mesma cerimónia, foi incapaz de articular um murmúrio de condenação daquela cena, apesar de ele próprio ter sido alvo dos cavernícolas de serviço. “O almirante Gouveia e Melo está entregue aos traidores”, foi uma das frases cuspidas por um dos nazis de braço levantado. Terminada a cena, o Almirante limitou-se a balbuciar uma frase patética — “estes momentos são de união, não de desunião”, a que acrescentou a ideia de que “quem não conhece a história não tem futuro”. Afinal… tanta voz de comando, tanta vontade de pôr o povo na ordem, tantas horas a desafiar limites no fundo dos oceanos, tanta sanha contra “os malandros”, tanta pose hirta, tanto queixo firme, tanta farda, para na hora da verdade sair isto? 

Segundo o relato feito ao Público pelo xeque Munir, nem em privado o Almirante fez qualquer comentário sobre o que tinha acontecido. Vá lá, não disse que havia muito boas pessoas dos dois lados.

Acontece que a realidade com que um político tem de se confrontar — e o Almirante agora é um político — não é um submarino com uma tripulação obediente. Nem uma operação logística para a qual o Estado não poupa recursos. A realidade é inesperada, insubordinada, suja, arriscada, e não se prepara a régua e esquadro. Na realidade não há segunda oportunidade para uma primeira boa impressão. O Almirante, em quem tanta gente projeta tantas qualidades supimpas, falhou da primeira vez que a realidade se lhe atravessou no caminho de candidato presidencial. Calou-se perante a extrema-direita racista, xenófoba e neonazi. É um silêncio que mata.

Carlos Moedas, que tem mais traquejo nisto da política, também estava lá e também se manteve calado e nada disse aos media depois da cena de insultos. Mas, baixinho, discretamente, disse ao xeque Munir para ter paciência e deu-lhe um abraço — relato do próprio dirigente religioso na mesma reportagem do Público. Imagino a cena: tenha lá paciência, eles são assim… se calhar Moedas até pensou que havia boas pessoas dos dois lados.

Moedas folga as costas à extrema-direita. O silêncio sonso do autarca de Lisboa sobre o extremismo que aconteceu à sua frente contrasta com a forma muito vocal como o mesmo Moedas reagiu à outra irrupção de ódio da extrema-direita que marcou este 10 de Junho. Na noite de terça-feira, à porta do teatro A Barraca, cerca de três dezenas de neonazis insultaram os atores que entravam para a representação de uma peça sobre Luís de Camões. Sem como nem porquê, acabaram por agredir três atores, deixando em estado grave Adérito Lopes, por sinal, o Camões deste “O Amor É Fogo Que Arde Sem Se Ver…”.

Ao contrário do amor, o ódio e os seus resultados ardem na rua e entram pelos olhos dentro. Os pontos no rosto de Adérito Lopes que o digam. A ministra da Cultura condenou o ataque, o Livre, o BE e o PCP também, e o candidato à liderança do PS pediu esclarecimentos ao Governo, exigindo a “atuação da Justiça”. Moedas demorou o seu tempo, é verdade, mas não quis ficar atrás. Considerou o ataque aos atores “inadmissível” e fez aquilo que faz melhor: dramatizou, desresponsabilizou-se e distribuiu responsabilidades. “É inadmissível este tipo de ataques. Era um ator, é um ataque à nossa identidade, à nossa cultura.” Curioso: Moedas não denunciou um ataque semelhante quando, fazendo a saudação nazi, à sua frente, um troglodita atacou a nossa identidade multicultural…

Mas Moedas disse mais: culpou os Governos pela falta de polícias (nota mental: Moedas nunca, nunca, nunca tem responsabilidades por alguma coisa má que aconteça em Lisboa), como se uma emboscada de uma organização neonazi tivesse a ver com a falta de polícias na rua… 

Carlos Moedas ainda aproveitou para aliviar as culpas da extrema-direita, indo buscar a extrema-esquerda onde ela não era chamada. “São os extremos que estão a causar estes problemas”, explicou, citando especificamente “extremismos à direita e também extremismos à esquerda”. Bem me pareceu que Moedas acha que há boas pessoas de um lado e do outro, como Trump… um comentário muito adequado quando só um dos lados provocou violência.

O apagão que precisa de explicação. Segundo o Expresso, o ataque contra A Barraca terá sido organizado pelo grupo Blood & Honour, neonazis há muito referenciados pela Judiciária e pelos nossos serviços de informações. O mesmo jornal dá conta de que esta organização, considerada terrorista em alguns países, era um dos focos de preocupação do mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), referente a 2024. Curiosamente, a parte do relatório que analisava o modo de atuação e as ameaças colocadas por este grupo de extrema-direita nunca foi tornada pública. Na versão final do RASI, apresentada aos deputados e divulgada como documento oficial, há um apagão que o Governo e o Sistema de Segurança Interna nunca, até hoje, explicaram.

Talvez agora o Governo tenha alguma coisa a dizer, para além das proclamações grandiloquentes da ministra da Cultura, Juventude e Desporto. Não são frases como “a cultura não se intimida” que intimidam os bárbaros. Mas os silêncios cúmplices animam-nos. E as palavras incendiárias alimentam-nos.

(Ah!, até à publicação deste texto André Ventura não tinha publicado qualquer tweet verbalizando uma sílaba contra os agressores d’A Barraca. Publicou vários vídeos, até com acusações patetas sobre Marcelo e Lídia Jorge serem traidores à Pátria, mas nada sobre os neonazis que espalham violência e insegurança – e não apenas “sensação de insegurança”. É natural. Está a defender uma parte do seu eleitorado.)

 

Nota do editor: "Que se lixem as eleições"

O título desta nova coluna de opinião regular da autoria de Filipe Santos Costa é retirado de uma frase de Pedro Passos Coelho dita a 23 de julho de 2012.

O então primeiro-ministro da coligação PSD/CDS, que governava o país há um ano sob a intervenção externa da troika (FMI, BCE e Comissão Europeia) e geria um resgate de 78 mil milhões de euros, falava num jantar do grupo parlamentar do PSD. "Que se lixem as eleições, o que interessa é Portugal", afirmou Pedro Passos Coelho, dirigindo-se a quem no PSD sugeria que "já chega de ser bom aluno" e de fazer "sacrifícios" porque se aproximavam atos eleitorais e era preciso não perder votos.

"A verdade é que nenhum dos senhores ou das senhoras foi eleito para esse mandato. Nenhum dos que aqui estão foi eleito para ganhar as próximas eleições, ou para ajudar a ganhar autárquicas, nem as regionais deste ano nos Açores, nem as europeias que aí vêm a seguir, não foi para isso que fomos eleitos. Foi para responder ao país", acrescentou o então primeiro-ministro, recebendo palmas.

Treze anos depois, Portugal encontrou no calendário quatro atos eleitorais em apenas dez meses: as regionais na Madeira de 23 de março passado, as legislativas do passado dia 18 de maio, as próximas autárquicas entre final de setembro e início de outubro e as presidenciais de janeiro de 2026.

Depois do Bestiário e do Folhetim de Voto, rubricas dedicadas às legislativas, a coluna "Que se lixem as eleições" pontuará o país político contrastando-o com o inevitável horizonte eleitoral. 

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