A mortalidade infantil foi um dos temas quentes da última semana da campanha eleitoral. Houve críticas, preocupações e passa-culpas mútuos, mas não houve fundamento, dados e explicações concretas, sobretudo por parte da coligação que ainda governa e que tutela a entidade que tem uma comissão para avaliar o tema. E isso pode contribuir para a desinformação e desacreditação do SNS, que pode nem sequer ser o único fator nesta equação
“Se não colocarmos contexto às coisas, isto é uma discussão muito pobre”. Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) é bastante crítico ao uso do aumento da mortalidade infantil em 2024 como “disputa partidária” durante a campanha eleitoral, cuja troca de palavras entre partidos diz ter sido “feita sem qualquer evidência e racionalidade”.
Apesar de os dados serem conhecidos desde janeiro e de a Direção-Geral da Saúde (DGS) ter, no mesmo mês, criado uma comissão de avaliação, o aumento de 20% na mortalidade infantil registado em 2024 serviu de mote para um rol de críticas entre os partidos políticos, sem que nenhum apresentasse dados e factos concretos sobre o sucedido.
A Iniciativa Liberal pediu uma averiguação séria ao tema e a coordenadora nacional do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, disse que não queria que a campanha eleitoral fosse “um momento de alarmismo irresponsável” e que “seria uma enorme irresponsabilidade atribuir causas aos dados da mortalidade infantil sem saber exatamente quais são as causas”. Mas acabou por ser isso o que a ministra da Saúde fez.
Antigos ministros da Saúde e diretores-gerais da Saúde dizem que Ana Paula Martins deveria ter-se escudado com a análise da DGS que, numa resposta enviada à CNN Portugal, coloca muitos mais fatores em cima da mesa, a maioria deles que nada têm a ver com política. Mas a ministra acabou por associar este aumento à falta de investimento dos seus antecessores, numa clara tacada política aos oito anos de governação do Partido Socialista, dizendo: “ninguém pode dizer hoje que não está relacionado, mais do que com as urgências [encerradas], com a diminuição, nos últimos anos, daquilo que tem sido o investimento que precisamos de fazer, concretamente no sistema público na área materno-infantil”.
“Relacionar a mortalidade infantil com o fecho das urgências é uma ofensa à inteligência, não é bom andar a fechar e abrir [serviços de urgência e maternidades], mas a gravidez é um contínuo de nove meses e o parto é o momento final. Não se pode fazer politiquices com isto”, começa por dizer Adalberto Campos Fernandes, antigo ministro da Saúde do Partido Socialista, apressando-se a esclarecer que “estiveram mal os dois”, referindo-se à ministra da Saúde e ao secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, que culpou o governo da AD pelo aumento da mortalidade infantil no último ano.
Luís Filipe Pereira, antigo ministro da Saúde do PSD, não quer entrar em disputas partidárias, mas é rápido ao dizer que “está quantificado” que, “nos últimos oito anos do PS, o investimento na saúde foi dos mais baixos, isso é quantificado, não é [arma de] arremesso”. Ainda assim, reconhece que “a mortalidade infantil tem a ver com um conjunto de fatores” que vão além do próprio SNS e do investimento feito. Além disso, atira: “Todas as pessoas que falam do SNS, sob pena de dar uma informação menos adequada para o grande público, devem fazê-lo com afirmações fundamentadas, suportadas em dados”, o que diz que não aconteceu com nenhum partido.
Os dois antigos governantes reconhecem que poderia ter sido feito mais durante os governos socialistas - “ela [a ministra da Saúde] tem razão, no governo anterior deixaram-se de fazer tantas ecografias [obstétricas] no privado”, lembra Adalberto Campos Fernandes -, que um ano é pouco para fazer mudanças profundas, como seriam as de aumentar o acompanhamento de proximidade com mais médicos de família para acompanhar as grávidas - “uma coisa destas não se muda de foguetão, de um dia para o outro”, vinca Luís Filipe Pereira -, mas também não hesitam em dizer que a mortalidade infantil “não pode ser usada como arma de arremesso político”. O antigo ministro socialista destaca mesmo que “não há razão para isso”. “Incomoda-me ver uma questão tão técnica, científica, a ser tratada como se fosse a venda da fruta da praça”, lamenta Campos Fernandes.
“É lamentável e uma discussão [política] completamente inútil”
Para os antigos diretores-gerais da Saúde Constantino Sakellarides e Francisco George, este tema jamais deveria ter sido usado como bitola para campanha eleitoral sem que em cima da mesa estivessem todos os dados, sem que os portugueses efetivamente ficassem a saber o que aconteceu, com quem aconteceu e quando aconteceu.
“É uma péssima ideia usar a mortalidade infantil como confronto político e em campanha eleitoral, especialmente sem termos acesso a um relatório das causas desse aumento”, afirma Constantino Sakellarides, que liderou a DGS entre 1997 e 1999. “É de uma enorme infelicidade fazer isto de objeto político”, reforça, destacando que “temos de ter sempre conhecimento, só assim temos uma discussão decente e aumentamos a literacia, o resto afasta as pessoas”. Francisco George, diretor-geral da Saúde entre 2005 e 2017, também aponta o dedo à forma como o tema chegou à campanha eleitoral e lembra que o que se sabe são apenas números absolutos, nem sequer é do conhecimento público quantos destes 252 bebés com menos de um ano morreram durante o parto, nos primeiros sete dias de vida (mortalidade neonatal) ou até em ambiente hospitalar.
“Nestes 252 óbitos infantis, temos de perceber não só a idade da morte da criança, como o local da ocorrência, se foi em casa, no hospital, na ambulância, se por erro médico ou de enfermeiro na assistência, como ocorreu a morte”, exemplifica Francisco George, dizendo que é claro que “é preciso analisar todos os dados com lupa”, mas que, para isso, é preciso conhecê-los.
Contactada pela CNN Portugal, a Direção-Geral da Saúde revelou que mais de metade dos bebés que não chegaram ao primeiro ano de vida eram prematuros e apresentavam um baixo peso à nascença e que, em cerca de um terço destes bebés, “havia registo de patologias maternas subjacentes”. A CNN Portugal voltou a contactar a DGS para obter dados mais detalhados sobre a mortalidade infantil registada no ano passado - a idade dos óbitos, o local e as causas concretas de cada um deles -, mas não obteve uma resposta em tempo útil.
O bastonário da Ordem dos Médicos pede dados mais detalhados sobre a mortalidade infantil, até para perceber se em causa estão problemas relacionados com o SNS ou não, ao contrário do que a ministra da Saúde deu a entender ao falar de falta de investimento. “O SNS tem de deixar de ser uma arma de arremesso político, nomeadamente em período eleitoral”, diz Carlos Cortes, explicando, também ele, que esta questão da mortalidade infantil está à mercê de um sem-fim de fatores, nem sempre políticos ou única e exclusivamente políticos. “Tenho colegas que dizem que [as grávidas] saem do aeroporto para a maternidade. E é uma preocupação para a Ordem dos Médicos que cada vez mais mulheres residentes em Portugal estejam a deixar de ser acompanhadas [por médicos], porque não têm confiança no sistema e preferem fazer os partos em casa, muitas vezes em condições que acabam por permitir que estas situações [de morte] aconteçam, pois não há qualidade e não há segurança”.
Na verdade, lamenta Xavier Barreto, “não sabemos nada” sobre a mortalidade infantil registada no ano passado e discutir-se quando nada se sabe “com certeza” que alimenta a desinformação e a “desconfiança”, sobretudo no setor público da saúde, já ele fragilizado. “É lamentável e uma discussão [política] completamente inútil. E isto não é só uma questão do SNS. Quantos destes casos de mortalidade infantil [estão relacionados com bebés que] nasceram em hospitais privados ou públicos, quantos foram em casa, onde geralmente há uma maior mortalidade?”, questiona o também hospital manager do São João, no Porto.
Foram também contactadas as três maiores empresas de saúde privadas em Portugal de modo a perceber se registaram algum caso de morte de bebés até um ano, mas ficamos igualmente sem resposta.
O antigo diretor-geral da Saúde Constantino Sakellarides defende que “é preciso associar o discurso aos factos e não a controvérsias”, vincando que “é sempre de péssimo tom colocar culpas nos anteriores [governos]”, uma vez que “isso só tem justificação num debate sério e se dissermos que com os erros dos outros aprendemos”.
Então, o que deveriam ter dito os líderes partidários, mas sobretudo a ministra da Saúde? “A mortalidade infantil é determinada por determinantes de saúde, como urgências abertas e condições de acesso [a cuidados de saúde], mas também por determinantes sociais, como o rendimento das famílias, se as mães têm muita ou pouca instrução, se os bebés nascem em casa, e até por determinantes culturais. Quando há um aumento de emigrantes que não aderem tanto à vigilância da gravidez por questões culturais, que não fazem as ecografias [obstétricas] e análises, se isso acontece, a mortalidade infantil pode aumentar. Era o que teria dito e o que a ministra da Saúde deveria ter dito”, conclui Xavier Barreto.