Jair Bolsonaro tinha acabado de assumir a presidência do Brasil quando Ana Eliz se mudou com a família para Portugal. A concluir uma licenciatura em Lisboa, a jovem de 20 anos partilha a sua visão política sobre os dois países
Ana Eliz tinha 14 anos quando, em 2019, trocou o Brasil do recém-eleito Jair Bolsonaro por Portugal. “Tivemos a sorte de fugir quando aquele drama começou”, conta à CNN Portugal a jovem, seis anos depois, admitindo que a partir desse período a sua consciência política começou a mudar: “Perguntava-me ‘porquê fugir?’, ‘o que é que acontece?’, ‘como é que funciona?’ e passei a entender melhor a situação no Brasil”, um sistema “muito selvagem”, “patriota” e “apaixonante”, não muito distante do conceito de religião.
Mas o que Ana ainda não sabia é que estaria a mudar-se para um país governado quatro anos por um acordo escrito entre o Partido Socialista e os principais partidos à esquerda: PCP, Verdes e Bloco de Esquerda. Chamaram-lhe “Geringonça” e 2019 foi precisamente o princípio do seu fim. O PS ganhou a maioria relativa, mas desta vez apenas com um apoio parcial dos seus parceiros, sem garantir a aprovação dos orçamentos e sem excluir entendimentos à direita. Em 2022, os socialistas conseguiram alcançar a maioria absoluta.
Encontrámos a jovem de 20 anos a assistir a um debate em direto entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, num quiosque na Avenida da Liberdade, em Lisboa. Já ali tinha trabalhado no primeiro ano de faculdade, antes de iniciar uma experiência de Erasmus em Siena, Itália, tendo sido forçada a regressar provisoriamente a Portugal após lhe terem roubado os documentos. É estudante de licenciatura em Ciências Políticas e Relações Internacionais na Universidade NOVA e aguarda ansiosamente a possibilidade de retomar os estudos no estrangeiro. Resta-lhe conseguir um agendamento na AIMA. “Literalmente, só preciso de preencher um papel para me emitirem um novo passaporte”, explica.
Até lá, mantém-se informada em relação ao momento eleitoral que se avizinha.
“No Brasil dizemos muito que a política e a religião não se discutem, porque colocamos os dois no mesmo saco. Tens aquela ideia, tens aquele partido, é isso e ponto”, descreve. Não lhe agrada particularmente o sistema presidencialista, “que se foca no presidente e não no Parlamento”, ao contrário do caso português: “Existe Parlamento, mas não tem o mesmo poder que aqui, não tem primeiro-ministro, isso não existe.”
Explica que no seu país de origem há uma certa “vanglória” dos presidentes, “como se fossem ídolos”. Bolsonaro, aliás, era visto por muitos como “o Messias que vem salvar o Brasil”. Já em Portugal, “temos o Parlamento, temos o primeiro-ministro, o Presidente é importante, é engraçado, tira fotos com as pessoas, mas ele não é o foco”. “Os brasileiros focam-se só na personagem e depois vira um grande combate de MMA entre Lula e Bolsonaro, mas esquecem-se que no Brasil há imensos outros partidos. Porque é que ficam só entre Lula e Bolsonaro?”, questiona-se, indignada. Responsabiliza a comunicação social, que “sabe que é o que traz mais entretenimento, essa luta que é o que as pessoas gostam, esse drama”.
Por outro lado, compreende que nas últimas eleições, em 2022, “era necessário ter essa disputa direta”, explicando que votar noutros partidos era como “mandar um voto para o lixo”. “Tivemos de nos focar num, que neste caso foi o Lula, mas porque é que em vez do Lula não podia ter sido outro ou outra?”
Outras duas características que admira na política portuguesa são “essa miscigenação” dos partidos e o “voto estratégico”: “Por exemplo, a AD e o PS agora são os maiores, mas eu não concordo com nenhum dos dois, então vou votar no Bloco de Esquerda ou vou votar no Livre ou vou votar no PAN, para estes terem mais deputados e mais espaço. Isso, se calhar, faz com que as pessoas tenham mais desejo de votar porque podem dar a oportunidade a outro grupo de ter mais voz e de as representar.” Em Portugal, Ana sente que o seu voto “tem poder” e enaltece o programa do BE, que acredita protegê-la como mulher, como pessoa LGBTQIA+ e como imigrante. Refere projetos apoiados pelo partido como a Casa do Brasil de Lisboa, uma associação que auxilia imigrantes de todas as nacionalidades e que, segundo a jovem, já a “ajudou muito”.
"Cai-se no extremismo por falta de acesso"
De acordo com os resultados de um estudo levado a cabo pelo Instituto DataSenado, com a colaboração da Universidade de Brasília, e divulgado em 2022, 29% dos brasileiros acompanham com muita frequência as notícias sobre o panorama político no seu país, e 55% acompanham com pouca frequência. Há uma queda do interesse geral por política entre os eleitores, desencadeada sobretudo pela falta de compreensão do sistema político.
Ana explica que no Brasil a política é considerada uma cultura de classe alta, e que “os pobres, as massas, não se preocupam”. “Ser politizado é uma coisa para pessoas com dinheiro, que têm tempo, e quanto tu te interessas se calhar até te olham de lado e perguntam-te como é que o arranjas”, conta. Ao passo que os menos privilegiados “concentram-se no ídolo ou figura que têm à frente e no entretenimento que dá”.
Como consequência da “falta de acesso” o país tem vindo a “cair muito no extremismo”, observa. “Ou és Lula ou Bolsonaro, e ninguém vai pensar no resto”. A isto se deve também o voto obrigatório, que leva muitos cidadãos a votarem “só por votar”, seja num dos dois candidatos, nulo ou em branco. E neste último caso, os votos contribuem para o partido que possui a maioria.
E se o dever não for cumprido? “Pagas multa e se não pagares não tiras passaporte, não podes viajar, é muito chato”. Ana, por exemplo, necessitou de um documento de aprovação eleitoral para emitir o seu passaporte, já em território português.
Em suma, considera a política portuguesa “mais acessível” e o debate “mais normalizado”. “Aqui discutem à volta de uma mesa, mas não acabam à pancada e está tudo bem”, elogia. “Conheço gente de direita, conheço gente de esquerda, tenho amigos que até falam em capitalismo verde, com o qual não concordo, mas tudo bem. Continuamos amigos. Há uma nobreza política que não acontece no Brasil”.
Mas nem tudo é um mar de rosas, nem neste pequeno pedaço de terra em pleno Atlântico. É que a poucas semanas do dia 10 de março a jovem diz ter vindo a aperceber-se da elitização inerente a diferentes partidos: “Tens uma malta culta que acha que só os cultos podem estar ali. Não tens pessoas de outras condições sociais, só tens universitários.” Não descredibiliza o potencial destes jovens para o futuro do país, mas afirma que “não nos podemos esquecer do resto, que é a maioria”. A manter-se esta postura, prevê uma situação semelhante à do Brasil, onde “as pessoas só querem saber de uma imagem”. Aponta André Ventura como uma ótima representação desse problema: “O que é o Chega? Nós sabemos quem é o André Ventura, a veneração da figura dele e que se lixe o projeto eleitoral. Foi o único que se propôs para ser cabeça do partido e isso só prova o quão enviesado e afunilado está.”
Juventude partidária fora dos planos
Ana Eliz orgulha-se de sempre ter tido um percurso educativo exemplar. Frequentou o ensino privado no Brasil até ao 9.º ano com a ajuda de uma bolsa e de um projeto do Instituto LLECA, que contribui para a educação de crianças sobredotadas com baixos rendimentos. Chegada a Portugal, ingressou imediatamente no 10.º ano em Economia, não só por ser efetivamente boa a Matemática e possuir um raciocínio lógico, mas por na secretaria da escola lhe terem dito que todos os alunos imigrantes optavam por Humanidades. Quis provar as suas capacidades, mas acima de tudo desafiar-se a si mesma. Assim foi: terminou o ensino secundário com média de 19 valores e, em setembro de 2022, iniciava o seu percurso na NOVA.
Imagina-se a trabalhar em consultoria ou num gabinete de relações internacionais e comerciais de grandes empresas, mas o seu maior sonho é ser diplomata.
Dias depois de a conhecermos participou num comício do Bloco de Esquerda. Não esconde a curiosidade e que os pais ambicionam que faça parte de uma juventude partidária. “É ótimo para ter contactos políticos e realmente abre-te muitas portas.” Mas? “Renego-me a fazê-lo. Acho um absurdo teres miúdos de 12, 13 anos que, obviamente, foram ali postos pelos pais porque se calhar não têm consciência de decisão. Depois crescem com aquela mentalidade fechada e se calhar nem se vão abrir a outros porque cresceram ali.”
Considera a militância importante, mas mais importante ainda “entender que somos seres individuais e que cada um tem os seus ideais”. “Uma juventude pode ter ideais em comum, mas se falares com cada uma das pessoas vão ter ideias diferentes e são todas metidas no mesmo saco”, esclarece.
É por este e outros argumentos que se considera socialista: “Não é sobre todos serem iguais, mas sobre dar oportunidades iguais.” Não obstante, tem consciência de que o conceito de socialismo “é uma utopia” e que as propostas de Karl Marx, filósofo que leu e releu inúmeras vezes, “já estão ultrapassadas”, o problema é que “ainda nenhum político no mundo foi capaz de lhes pegar e atualizá-las”.
“Se o teu pai te quer meter numa privada, problema dele. Mas é preciso saber que aquela pessoa que não tem acesso, que os pais não podem pagar, ou é órfã, vai ter uma educação de qualidade”, defende.
No que concerne ao Partido Socialista, não hesita em conotá-lo de “neoliberal”, criticando o facto de ter perdido “a essência do socialismo” ao longo dos anos. “Se se passarem a chamar neoliberais, ok, caso contrário estão a dizer que isto é socialismo e não é. Até hoje ainda não tivemos nenhum regime socialista que tivesse efetivamente seguido o ideal.”
E Lula da Silva? “Dizer que Lula é de esquerda é o maior absurdo de sempre”, afirma. “O Lula é trabalhista, pensa nos trabalhadores, mas isso não faz uma esquerda nem faz o socialismo. No máximo é centro-esquerda ou esquerda social, mas nem isso.”
"Não há escolha, há capital"
De volta a Karl Marx, Ana fala da sua interpretação de “O Capital”, leitura obrigatória em CPRI. A obra constitui uma análise crítica ao capitalismo, por muitos considerada o marco do pensamento socialista marxista.
“Quando diz que o capital é mau e o comunismo é bom não é no sentido comunista de sermos todos iguais, não termos opiniões e ideias, mas é sobre dar oportunidades”, explica a jovem, descrevendo-se a si própria como “uma socialista que preza a equidade”. Admite que o seu sonho, como pessoa politicamente ativa, é futuramente “poder ver um sem-abrigo e sentir que ele teve escolha”. Meritocracia, para si, “é uma grande brincadeira”, “quando há capital no meio não se tem meritocracia, porque o mérito é quem paga”.
“Há quem tenha de escolher entre trabalhar e meter comida na mesa ou estudar, não há uma escolha. Ou aquela pessoa que é imigrante e está a acabar a faculdade, mas precisa de um trabalho porque tem de pagar 600 euros por um quarto, também não tem escolha”, exemplifica.
Entre várias razões que a fazem discordar da direita, está o argumento de que “vivemos num mundo livre, num mundo de escolhas”. “Desculpa, mas nós não vivemos num mundo de escolhas. A partir do momento em que tens toda a cultura capitalista tu perdes o sentimento de escolha. Não há escolha, há capital”, conclui.
Lembra-se do momento em que optou pela licenciatura em Ciências Políticas e Relações Internacionais em detrimento de Filosofia, que não lhe permitiria “ganhar dinheiro nenhum”.
“O capitalismo é individualista e a longo prazo não faz sentido”, declara, sugerindo que a solução é “se calhar apostar primeiro na situação social e não na monetária”. Mas como? “Com estabilização económica”, e não crescimento exacerbado. “As pessoas abrem mão da qualidade de vida por dinheiro, porque acreditam que vão poder comprá-la no futuro. Isso não é uma opção, não é liberdade”, critica. “Porque é que em vez de eu ter 50 telemóveis a vida toda não fazem apenas um realmente bom, eu compro e vai durar 10 anos? Assim temos ecologia, estabilidade e todos têm a oportunidade de ter um iPhone."