Nos primeiros segundos do debate, Kamala Harris deixou claro quem jogava em nível presidencial. Ao caminhar até Trump para o cumprimentar, evidenciou a diferença entre a compostura de quem está pronto para liderar e a arrogância de quem vive de bravatas. Era uma postura simples, mas que remetia à imagem de uma estadista, diante de 50 milhões de telespectadores, prontos para ver quem realmente tinha algo a oferecer. Enquanto Trump cairia nos velhos chavões, sem profundidade ou substância, Harris estava prestes a jogar no campo da realidade, contrastando a sua trajetória de classe média com o privilégio de um magnata herdeiro. O resultado? Ela não precisou de grandes novidades, apenas de uma postura firme e segura, que deixou claro quem estava preparado para o desafio.
O grande trunfo da noite, por parte de Harris, foi antecipar à audiência a previsibilidade de Trump, desmontando o seu discurso populista antes mesmo que ele pudesse ganhar força. Enquanto a democrata discutia temas reais e urgentes para o eleitorado, Trump enredava-se em acusações genéricas e fantasias sem fundamento, apostando em mais um espetáculo de desinformação que era corrigido pelos moderadores. Para o público, a distinção deve ter sido nítida: de um lado, uma líder preparada; do outro, um agitador sem nada a oferecer além de nostalgia vazia. A vitória de Harris não veio apenas pelos argumentos, mas por uma postura presidencial que, pela primeira vez, ficou evidente, algo que Trump nunca chegou a alcançar.
O primeiro tema do debate, como era de esperar, foi a principal preocupação dos eleitores norte-americanos: a economia. Uma sondagem da CBS News, realizada entre 3 e 6 de setembro nos estados-pêndulo da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, já indicava que esse seria o foco central. Kamala Harris, sem trazer grandes novidades, reciclou as suas propostas habituais: “economia de oportunidade”, apoio à habitação e um crédito fiscal de 6 mil dólares por criança – propostas que, na América Latina, eu não hesitaria em classificar como clientelistas. Como esperado, fez questão de reforçar a sua origem de classe média, numa tentativa de se distanciar de Trump, que retratou como um magnata herdeiro, desligado das preocupações da classe média americana.
Faltou detalhar as propostas e esquivar-se das críticas de populismo económico feitas por alguns órgãos de comunicação social? Sim, faltou. No entanto, o que Kamala Harris apresentou ainda teve muito mais apelo para o eleitor médio do que o previsível espetáculo de Donald Trump, que mais uma vez apelou para a velha cantilena de que o resto do mundo deveria pagar aos Estados Unidos por tudo o que o país fez por eles. Em vez de detalhar como as suas tarifas comerciais melhorariam a vida do cidadão comum, ele rapidamente desviou para o discurso ultrapassado de que os empregos estão a ser "roubados" por estrangeiros – e, claro, sem qualquer dado que sustentasse essa afirmação. Nos primeiros minutos do debate, já ficou claro o despreparo de Trump. Ao invés de se aprofundar nas propostas de Harris ou debater os possíveis efeitos colaterais, ele, talvez confiante demais nas sondagens que ainda lhe dão vantagem em questões económicas, recorreu ao mesmo discurso batido e vazio que acabou por dominar o restante do debate.
Ciente do que estava por vir, Harris adotou uma estratégia simples, mas brilhante: antecipar ao eleitorado exatamente o que ouviriam de Trump ao longo da noite. Pode parecer óbvio, mas ao fazer isso, Harris transformou o que poderia ser interpretado como frustração vinda de Trump numa confirmação do que ela já havia previsto. Em outras palavras, ela expôs a previsibilidade do oponente, algo que, para o eleitor indeciso, poderia soar mais como um sinal de liderança capaz de interpretar bem o cenário. Para aqueles que não partilham da visão apocalíptica de Trump, o alarmismo do republicano deixou de ser uma ameaça e passou a ser apenas uma validação do alerta feito por Harris.
Quando o debate entrou no segundo tema, aborto e direitos reprodutivos, Trump voltou a insistir na falsa alegação de que democratas, como um ex-governador da Virgínia, apoiavam o aborto no nono mês de gestação. A própria moderadora, Linsey Davis, da ABC News, precisou intervir e corrigir, explicando que nenhum estado norte-americano permite abortos tão tardios. Harris, por sua vez, foi muito mais hábil. Ela não só falou ao público progressista e pró-escolha, como também trouxe exemplos que tocam na realidade, como adolescentes em risco de vida que podem precisar do procedimento.
Além disso, Harris soube falar com subtileza ao eleitorado religioso, mencionando que “alguns casais rezam para terem um filho” e que “não importa qual é a sua fé”. Ela deixou claro que considerava as preocupações de todos. Mas o verdadeiro golpe de mestre veio quando afirmou que Trump assinaria um projeto para monitorizar a vida de todos, referindo-se ao controlo sobre o corpo das mulheres. Com isso, tirou a discussão do clássico embate entre ser contra ou a favor do aborto e levou-a para o campo da privacidade e do controlo estatal. Uma jogada inteligente que reposicionou o debate em termos mais amplos, transformando a questão numa sobre liberdade individual, colocando Trump numa posição difícil.
Quando o tema imigração surgiu – um possível calcanhar de Aquiles para Kamala Harris, dado o seu papel como vice-presidente responsável por liderar os esforços diplomáticos na questão da migração latino-americana – ela soube esquivar-se com habilidade. Questionada sobre a demora do governo Biden em adotar uma postura mais firme para conter o fluxo migratório no sul do país, Harris não hesitou em elevar o tom contra Donald Trump. Além de usar a justificação dos democratas de que Trump teria sabotado um acordo bipartidário, orientando os senadores republicanos a bloquearem o projeto para evitar que Biden tirasse proveito eleitoral, Harris foi além, destacando a sua experiência no combate ao tráfico de drogas e criminosos, colocando-se como a única no palco com esse tipo de conhecimento.
Ela ainda reforçou a sua tática de "vacinação" contra Trump, alertando o público de que ele voltaria ao tema várias vezes durante o debate, antecipando o argumento do oponente. A cereja no topo do bolo, porém, foi o deboche calculado quando sugeriu que os eleitores assistissem aos comícios republicanos, onde Trump frequentemente menciona personagens fictícios como Hannibal Lecter – o serial killer interpretado por Anthony Hopkins. Com isso, Harris deixou clara a sua estratégia: provocar Trump a ponto de fazê-lo perder o controlo e adotar a sua postura agressiva, aquela que afasta os eleitores moderados – os mesmos que, segundo sondagens do The New York Times e Siena College, representam 60% dos indecisos e são o público-chave para vencer a eleição.
A campanha republicana estava tão preocupada em manter Trump contido que, na hora de combinar as regras do debate, insistiram para que os microfones fossem desligados enquanto o oponente falava – uma estratégia que funcionou em parte. Embora isso tenha limitado algumas interrupções, Trump não resistiu às provocações de Harris e rapidamente voltou à sua habitual megalomania, com o discurso do "o meu é melhor que o teu". Como uma criança no jardim de infância a competir com o colega, ele gabou-se de que os seus comícios eram os maiores, os mais incríveis, e ainda acusou Harris de pagar para que as pessoas comparecessem aos dela.
Mas o ponto mais absurdo ainda estava por vir: a fake news da noite. Trump afirmou que imigrantes haitianos estavam a comer cães e gatos em Springfield, Ohio – uma informação falsa, vinda de uma publicação no Facebook, que não foi confirmada por nenhuma autoridade local. O moderador, David Muir, prontamente o desmentiu, informando que os meios de comunicação social haviam contactado as autoridades de Springfield, que negaram completamente o ocorrido.
Quando perguntado como pretende deportar mais de 11 milhões de imigrantes sem documentação, Trump descaradamente evitou a questão. Em vez de oferecer qualquer plano ou política pública concreta, deu uma guinada absurda, afirmando que a criminalidade na Venezuela caiu porque o país enviou os seus criminosos para os EUA. Como de costume, culpou o governo de Harris pela "pior crise de segurança da história" dos EUA. O moderador teve que intervir novamente, esclarecendo que, de acordo com o FBI, a criminalidade no país está em queda, desmentindo mais uma vez Trump.
O debate sobre imigração deixou claro que Harris sabe navegar em terreno complicado, especialmente quando comparada à postura repetitiva e sem substância de Trump. No entanto, nem todas as questões foram tão bem conduzidas por ela. Quando questionada sobre um dos seus pontos mais frágeis – a sua constante mudança de postura em temas como o fracking, uma técnica controversa de extração de petróleo e gás natural, mas crucial para a economia da Pensilvânia – Harris afirmou ser a favor da medida e garantiu que os seus valores não mudaram. Ela destacou que, em 2022, deu um voto decisivo no Senado para aprovar um projeto que incluía uma provisão controversa, permitindo a expansão de concessões de terras e águas federais para a exploração de petróleo e gás, favorecendo o fracking.
No entanto, Harris perdeu uma grande oportunidade de fortalecer a sua imagem. Há registos, inclusive em vídeo, de que, no passado, ela se opôs ao fracking, e ao agora afirmar que é a favor, a postura soou mais como uma adaptação política do que uma convicção genuína. Aqui, ela poderia ter transformado o problema em vantagem, admitindo que mudar de opinião faz parte da evolução política, especialmente ao reconhecer as necessidades económicas de certas regiões. Ao invés de soar defensiva, Harris poderia ter reforçado a sua flexibilidade em ouvir a sociedade, destacando o quanto isso a diferencia da rigidez de Trump. Foi uma resposta que, embora não tenha sido negativa, desperdiçou a chance de fortalecer a sua imagem e marcar um contraste mais claro com o seu oponente.
Sobre os ataques contra a democracia norte-americana, quando questionado se tinha algum arrependimento sobre os ataques de 6 de janeiro de 2020 ao Capitólio, Donald Trump, previsivelmente, não conseguiu assumir a responsabilidade. Em vez de responder, ele desviou o foco, repetindo as suas falácias sobre "milhões de criminosos" vindos de fora e, claro, voltou a atacar o sistema eleitoral e judicial americano – algo que já virou a sua cartilha. Harris, por outro lado, não perdeu tempo. Lembrou que estava presente como senadora no dia do ataque e foi clara ao acusar Trump de ter instigado diretamente a violência.
Harris não perdeu a chance de contrastar a sua postura com a de Trump, usando exemplos e dados para expor o lado antidemocrático do ex-presidente. E foi além: trouxe de volta os eventos de Charlottesville, relembrando a vergonhosa marcha de supremacistas brancos e, pior ainda, o comentário absurdo de Trump de que "havia pessoas muito boas de ambos os lados". Ao conectar esses factos, Harris deixou claro que o golpismo e a conivência de Trump com discursos de ódio não são deslizes – são parte do seu padrão de comportamento.
Kamala Harris fez um apelo claro ao público, pedindo que o país finalmente vire a página e deixe para trás essa mentalidade retrógrada. Sem rodeios, deixou claro que, na sua campanha, há espaço para quem acredita nos valores democráticos, repetindo o que outros líderes já destacaram na Convenção Democrata. O golpe final veio quando soltou, com ironia, que Trump "foi despedido por 81 milhões de pessoas", usando contra ele o famoso bordão de The Apprentice, só que desta vez para lembrar quem realmente saiu a perder na corrida eleitoral.
Quando o assunto foi política externa, Kamala Harris acertou onde Trump tentou atacar. Além de reafirmar o compromisso de defender Israel, algo já esperado, ela trouxe uma mensagem clara para dois grupos importantes – os jovens e os descendentes de árabes –, defendendo a solução de dois Estados. Isso foi especialmente relevante para o estado-pêndulo de Michigan, onde os árabes representam mais de 2% da população. Já Trump, na sua típica abordagem exagerada, acusou Harris de "odiar tanto os judeus como os árabes" e disse que, se ela chegasse à presidência, "Israel deixaria de existir". Harris não perdeu tempo e respondeu com precisão, chamando Trump de um fantoche, facilmente manipulado pelos elogios de ditadores como Putin e Kim Jong-Un. Para fechar, ainda lembrou que líderes militares que trabalharam com ele o consideram digno de pena.
Quando questionado sobre a guerra na Ucrânia, Trump evitou responder diretamente se queria que a Ucrânia vencesse. Em vez disso, fugiu à resposta, afirmando que era importante preservar vidas em ambos os lados. Além disso, tentou culpar Harris, alegando que a guerra só aconteceu porque ela falhou como negociadora, sendo, segundo ele, ainda pior do que Joe Biden. Harris, com uma postura mais presidencial e diplomática, destacou a importância de defender regras e princípios internacionais. Ela afirmou que os aliados da NATO permanecem unidos graças ao facto de Trump não ser o presidente, e que, se ele estivesse no poder, Putin já estaria em Kiev. Foi uma jogada inteligente de Harris, que conseguiu capitalizar os acertos do governo Biden na política externa, ao mesmo tempo em que se distanciou de temas mais impopulares, como a retirada das tropas do Afeganistão.
Ao ser pressionada sobre a caótica retirada de Cabul, Harris tentou minimizar os danos, afirmando que os EUA já não estão a gastar 300 milhões de dólares por dia com a guerra e culpando um acordo mal negociado por Trump durante a sua presidência. Harris também não perdeu a oportunidade de lembrar que Trump chegou a convidar o Talibã para Camp David, um local com forte significado histórico, reforçando a ideia de que ele não tem o menor respeito pelos símbolos nacionais. Com isso, ela conseguiu colocar a culpa da retirada nos ombros de Trump, enquanto evitava aprofundar-se num tema que ainda gera muita dor de cabeça.
E então veio o tema raça. Quando confrontado sobre os seus comentários a respeito da cor de Kamala Harris, Trump, como de costume, fugiu pela tangente, dizendo que "ela pode ser o que quiser". Harris, por outro lado, evitou entrar no identitarismo, o que poderia ter sido uma oportunidade de se conectar mais com a população negra trabalhadora, que muitas vezes a vê como parte da elite negra californiana. Mesmo que essa abordagem possa parecer um erro estratégico no futuro, Harris claramente seguiu um plano: em vez de se apresentar como uma mulher negra concorrendo à presidência, preferiu jogar luz sobre o racismo de Trump, lembrando o seu histórico de recusar alugueres para negros. Ao invés de elevar a sua própria história, ela decidiu baixar o nível do oponente, expondo Trump como racista e polarizador. Se essa estratégia vai funcionar ou não, só o tempo dirá.
Por que Kamala Harris venceu o debate? A resposta está nos detalhes da sua postura e nas questões estratégicas. Desde o início, Harris demonstrou compostura presidencial, destacando-se como alguém preparado para o desafio. O seu objetivo era claro: furar a própria bolha e conquistar os indecisos, especialmente os moderados. E foi nisso que ela brilhou. Enquanto Trump se repetia nos ataques pessoais e pintava um cenário de "nação decadente" sem oferecer soluções, Harris conseguiu transmitir uma mensagem de esperança e direcionamento para o futuro.
Mas fica uma pergunta: os eleitores moderados estão realmente interessados nas propostas, ou será que a postura e a compostura são mais decisivas? Será que o eleitorado está cansado da ladainha negativa e procura uma liderança mais equilibrada, ou os ataques de Trump ainda ressoam em algum nível emocional? O grande trunfo de Harris foi a habilidade de não só responder aos ataques, mas também de antecipar os golpes previsíveis de Trump e transformá-los numa oportunidade de se diferenciar. No final, o debate faz-nos refletir: será que a estratégia de Harris, focada em serenidade e confiança, é o que os eleitores indecisos realmente querem? Por mais que Harris tenha dominado o debate, com uma postura firme e uma mensagem de esperança, vencer o debate é apenas uma batalha. A guerra real é nas urnas, onde nem sempre a razão prevalece e onde Trump, com os seus ataques vazios, ainda pode ter força. No fim das contas, ganhar no palco não garante a vitória no jogo sujo da política.