REPORTAGEM || No debate quinzenal desta quinta-feira, e ainda antes da reunião (com uma "proposta irrecusável") entre o primeiro-ministro e o líder do PS, Luís Montenegro disse acreditar que Pedro Nuno Santos vai chumbar o Orçamento do Estado, “porque quer governar”. André Ventura poderia viabilizar a proposta, mas parece não se esquecer da recusa de Montenegro para negociar em março último
O primeiro-ministro regressava esta quinta-feira aos debates quinzenais, mais de três meses depois.
Esperar-se-ia uma espécie de ensaio para o que será o Orçamento do Estado, a entregar no Parlamento já para a semana, a 10 de outubro. Esperar-se-ia de Montenegro que puxasse dos galões ao fim de seis meses de governação, assinalados na quarta-feira. Esperar-se-ia que se discutisse saúde, segurança, incêndios e bombeiros — que há não muitas horas irromperam pela escadaria da Assembleia em protesto —, impostos, salários, pensões, e de tudo se discutiu. Mas o que mais importará é sentir o pulso aos três partidos mais representados, ao primeiro-ministro e aos líderes Pedro Nuno Santos, que o PSD vê como radical e inflexível, e André Ventura, aquele sobre quem traçou uma linha vermelha de governação.
Feitas as contas, o Orçamento do Estado para 2025 só passará, evitando uma crise política e convocação de novas eleições, se o Chega votar a favor ou o PS acabar por se abster — e não se vai abster se Montenegro, entre promessas de “proposta irrecusável” (os dois, primeiro-ministro e líder socialista, reúnem-se após o debate), não deixar cair as propostas do Governo para o IRS Jovem e o IRC.
Montenegro, logo a abrir o discurso, falou de quem valorizou: professores, as forças de segurança, guardas prisionais também, forças armadas e enfermeiros, garantindo que não se esgotará nestas classes a negociação e prometendo um Orçamento para “resolver os problemas das pessoas”. Haverá mais habitação, e mais acessível, mais professores, mais pensões, transportes mais baratos, e muitos milhões (500 milhões em fundos europeus e outros 100 milhões do Orçamento) para cobrir os prejuízos dos fogos de setembro. O mote estava dado: Montenegro quer governar.
E Montenegro, que não se queria alongar inicialmente a falar de Orçamento, diz que a sua aprovação é uma questão de “interesse nacional” e de “sentido de Estado”. “Os portugueses não entenderão um chumbo. E cada um deve estar à altura das responsabilidades. Não queremos eleições antecipadas, mas se elas vierem a ocorrer, sabemos bem quem as provocou”, atirou o primeiro-ministro, falando (sem precisar de o referir) a Pedro Nuno, de quem espera já hoje “lucidez, bom senso, boa-fé e lealdade”.
Pedro Nuno respondeu lúcido, também ele não tem “vontade de não viabilizar o Orçamento e vir a ter eleições antecipadas”. Mas assegura que é ele, e não o Governo, quem tem uma “proposta irrecusável”, uma proposta de somente duas condições: o IRS Jovem cai, o IRS também cai.
Um deputado do Chega enraivece e grita: “CASEM! CASEM OS DOIS!” Da raiva ao riso vai esse deputado do Chega quando ouve de Pedro Nuno que o PS é “a principal alternativa às políticas do Governo” e que o primeiro-ministro só pode viabilizar o Orçamento de duas formas, “ou connosco ou com o Chega”. “Ouça, OUÇA-O!, é verdade…”, interrompe novamente o deputado à direita da direita no hemiciclo.
A "noiva" Chega parece sair de cena, a boda só se consuma ao centro entre esquerda e direita. Parecia, mas não. Montenegro usa novamente da palavra e acusa Pedro Nuno de não ser “um centrista”, de ser, isso sim, “um troikista”. Endurece o discurso. “O deputado [Pedro Nuno Santos] fala muito do FMI, das críticas do FMI ao IRS Jovem. Nós lemos os relatórios, mas não estamos aqui para cumprir as ideias do FMI; estamos aqui para cumprir o nosso programa. Para ouvir o FMI já bastam vocês, socialistas, que são sempre quem o chama. Não tenho nenhumas saudades do FMI”, atirou o primeiro-ministro. E ainda sobre esta medida atiraria, mais duro que antes: “O senhor deputado perdeu a paixão pelos jovens!” Montenegro parece certo de que o “senhor deputado” do PS “já tomou a sua decisão”, e irá chumbar o Orçamento, porque além do desamor pelos jovens, “também está zangado com as empresas”, diz, referindo-se ao IRC.
Ainda assim, assumindo já um chumbo, Montenegro promete ser “leal até ao fim” e vai apresentar a Pedro Nuno Santos “uma proposta que salvaguarda as suas preocupações, os seus princípios, e que é uma aproximação entre aquilo que defende e aquilo que o Governo defende”. Depois da “dura”, palavras serenas: o primeiro-ministro diz que tem “muita consideração política e pessoal” pelo líder do PS, mas ele tem de “ganhar consciência do resultado das eleições” e não obrigar o Governo a utilizar um Orçamento do PS. Pedro Nuno Santos parece ter ganhado consciência do resultado das eleições e encerrou a contenda: “A nossa bancada tem exatamente a mesma dimensão da bancada do PSD".
Era tempo de André Ventura, que não queria prosseguir, palavras do deputado, “a novela” entre PSD e PS, e não ia para já falar de Orçamento. Ventura lembrou o Governo de que na quarta-feira ocorreu um triplo homicídio em Lisboa e que os suspeitos continuam a monte. Não demoraria a escalar a intervenção para a generalização e a xenofobia. “A comunidade cigana continua impune! É que é uma atrás da outra!” A bancada do Chega aplaude efusivamente. Ventura salta dos homicídios em Lisboa para outros cometidos pelo país — e ainda junta a estes crimes os de violação. Agita o que parecem ser notícias. Atribui a criminalidade à imigração, ainda que todos os relatórios, incluindo o último Relatório Anual de Segurança Interna, o desmintam. “O Governo nada tem feito para impedir estes crimes, que continuam impunes”, acusa Ventura, e agita sempre as folhas. “As nossas ruas não podem ser um faroeste, com sangue a correr”, dispara o líder.
Sobre os imigrantes, Ventura é taxativo: “Não podemos ter portas escancaradas, ser um asilo de impunes. Neste país quem comete crimes tem uma saída, a porta da rua!” O primeiro-ministro não alinha, diz que “a imigração é precisa e é preciso dignificar cada pessoa”.
Luís Montenegro diz, no entanto, que se “associa” ao Chega no pesar pelas mortes da véspera, “uma ocorrência trágica”, mas importa ao primeiro-ministro afastar-se do Chega “numa diferença”. “É que para nós não é a etnia que importa; vemos os criminosos todos da mesma maneira. É preciso combater e reprimir o crime, mas pela mão dos tribunais, tribunais independentes. Não queremos impunidade para ninguém”, alerta o chefe do Governo. Ventura não está satisfeito, “não chega!”, diz, e muda o assunto: “E os incendiários?” “Quantos andaram a incendiar este ano quando no ano passado foram soltos?”, pergunta, ainda e sempre agitando notícias impressas e ilegíveis. “Quem pega fogo à nossa terra é um terrorista e tem de estar preso! Vivemos da terra e temos que defender a terra, custe o que custar!”, atira.
Montenegro faz mea culpa, admite que Portugal “precisa de mais dispositivos, mais gente e rotatividade” no combate aos incêndios. No entanto, diz que em setembro “era impossível fazer melhor”. “Havia demasiados focos de incêndios em demasiados sítios, em simultâneo. Com tudo isto ao mesmo tempo, é muito difícil. Foi um acaso? Foram só razões naturais ou pessoas com desequilíbrios psiquiátricos? Não sabemos. Mas queremos saber. Houve demasiadas coincidências. Este crime é um crime que provoca terror. É injusto, porque coloca em causa a vida das pessoas. As sanções têm que ser dissuasivas”, avisa o primeiro-ministro. Um discurso que foi mel para os ouvidos dos deputados de André Ventura: “ORA BEM! ORA BEM, ORA BEM!”, repetiam.
Ventura e Montenegro prosseguiriam o debate, mas só após lembrar o primeiro-ministro que o preço dos combustíveis é o "mais alto do século” é que Ventura remeteu ao Orçamento do Estado. “Não pretendemos eleições, nem o país as quer. Nós tivemos preocupação com consensos logo no dia 10 de março e o senhor primeiro-ministro não quis, prefere negociar com o PS do que ter um orçamento transformador. Se formos arrastados para uma crise política, os responsáveis são o senhor e Pedro Nuno Santos”, lamenta Ventura, que ficou sem resposta, porque ao primeiro-ministro restavam poucos segundos e optou por não os gastar num bate-boca. À direita, do PSD ao CDS e Chega, todos se riram.
O que se seguiu no debate quinzenal foi uma constante aproximação, quase picardia, sempre indireta, do Governo ao líder do PS.
Primeiro, utilizando-se da Iniciativa Liberal e falando de jovens e de reter talento, Luís Montenegro lembra que são eles, jovens, “a pedra de toque”, razão pela qual o IRS Jovem não é uma medida a descurar. Depois, em resposta a Paulo Núncio, do CDS, e falando na diminuição da carga fiscal sobre as empresas, o primeiro-ministro diz “não querer mesmo acreditar” que a sua proposta irrecusável “já está a ser recusada antes de ser apresentada”. Em seguida, e a finalizar, em resposta a Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, mas falando efetivamente ao líder do PS, Montenegro avisa que os sociais-democratas já viabilizaram muitos orçamentos socialistas “noutras alturas da nossa história democrática”. “Se o atual PS tem ou não tem essa disponibilidade, vamos ver. Embora os indícios sejam francamente maus”, lamenta-se. Lamentando também que se Pedro Nuno Santos chumbar este Orçamento “é porque quer governar” — e utiliza o IRS Jovem e o IRS “como pretextos”. “Mas eu não quero acreditar nisso”, termina o primeiro-ministro.
A corte está feita. A reunião seguirá dentro de momentos.