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Comentadora CNN

O caso Daniel Alves e a urgente necessidade de ensinar os homens a não violar mulheres

28 jan 2023, 13:04

As vítimas existem. Muitas vezes não denunciam justamente porque sabem que serão vistas como culpadas, aproveitadoras, provocadoras. Os homens, em geral, vão encontrar alguma maneira de culpar a vítima e não o violador

A prisão preventiva do jogador brasileiro Daniel Alves, acusado de estupro em Barcelona, possui todos os elementos para contrariar o senso comum machista de que as mulheres inventam ser vítimas de crimes para ganhar fama. A jovem de 23 anos que acusa o futebolista, não quer dinheiro nem aparecer.  Quer apenas justiça.

O caso, amplamente repercutido internacionalmente, serve para várias reflexões importantes sobre a violência contra as mulheres: protocolos efetivos de proteção, profissionais treinados e comprometidos para lidar com as situações de agressão sexual, encorajar denúncias, o machismo no mundo do futebol e o debate urgente a respeito de como todos os homens precisam entender que estupro é crime e que as mulheres não são objetos à disposição do prazer masculino. Os detalhes da investigação contra Daniel Alves reúnem todos esses elementos. 

A Espanha, onde o caso é investigado, possui uma série de leis e protocolos que são essenciais para apoiar as mulheres e preservar provas dos crimes. A recente lei espanhola “Só sim é sim”, é um marco importante para entender o conceito de consentimento. 

A legislação não é à toa. Foi criada pelo governo após o estupro coletivo de uma jovem de 18 anos em Pamplona, no ano de 2016. A lei prevê que qualquer interação sexual sem o consentimento da outra pessoa é considerada agressão, com pena de prisão entre 1 a 4 anos. 

Além disso, as regiões podem ter protocolos adicionais que reforçam a proteção às vítimas. É o caso de Barcelona, onde o “No Callem" existe desde 2018 para combater agressões sexuais em espaços de lazer, com foco em apoiar as vítimas. 

No caso Daniel Alves, a vítima, ao sair do banheiro chorando e abalada, o protocolo foi imediatamente acionado pelos funcionários da casa noturna. Isso demonstra a importância de ter profissionais treinados e humanizados para agir nestas situações gravíssimas. Imaginem se a situação acontecesse em um local onde não existem tais procedimentos? Ou se não fossem seguidos pelos trabalhadores?

Poderia acabar como tantos outros crimes pelo mundo, com mulheres agredidas verbalmente, psicologicamente, sexualmente e fisicamente por homens, famosos ou anônimos, que ficam impunes e com liberdade para continuar violando outras vítimas. Um bom exemplo é o do jogador brasileiro Robinho, que foi condenado por agressão sexual em todos as instâncias dos tribunais italianos, mas segue livre no Brasil, sem pagar pelo crime e com uma vida normal, sendo idolatrado pelos fãs. 

Curiosamente, o que ambos os casos têm em comum, além de serem jogadores de futebol brasileiros famosos e idolatrados, são casados, se intitulam “pais de família”, super religiosos e adoradores do lema “Deus, Pátria e Família”. A diferença essencial, é que, diferente de Robinho, tudo aponta que Daniel Alves seja punido pelo crime, caso a investigação e a justiça assim o comprovem, com direito à ampla defesa ao acusado. 

Portanto, a divulgação de como a vítima foi atendida deve servir de exemplo para outros países, afinal, onde estão homens e mulheres, o risco de sermos violadas e agredidas existe. Com iniciativas como “No Callem", muitas mulheres podem ter mais chance de buscar justiça e apoio e muitos estupradores podem ser punidos.

É preciso ensinar

Mas, só isso não basta. Porque estamos falando de situações após a consumação dos crimes, quando a vítima já foi violada teve a sua vida marcada para sempre. Muitas não conseguem nunca se recuperar do horrível trauma que é o estupro.

Por isso, é essencial uma mudança na sociedade. Especificamente, no mundo do futebol, ainda totalmente masculino, é preciso normalizar a presença das mulheres: na arbitragem, no jornalismo, na narração, no campo, no comando dos times, na torcida. Não para serem vistas como objetos sexuais, mas como seres humanos desempenhando suas funções com profissionalismo e talento ou desfrutando da paixão pelo futebol.

Aliás, o silêncio de outros jogadores, de instituições do setor e de jornalistas esportivos de renome demonstram que, não importa quantas provas existam, a vítima será sempre vista como culpada e o agressor como vítima. Vi recentemente a opinião de que tudo é uma “conspiração demoníaca diabólica” e que “acabaram com a carreira dele” na sequência de o time ter rescindido o contrato. Ora, é muito simples para evitar: não cometam crimes. 

A defesa ferrenha dos criminosos sexuais e a culpabilização das vítimas diz muito sobre como funciona a cultura do estupro, institucionalizado na sociedade ocidental, que se diz tão evoluída. Se são raros os casos em que as mulheres realmente tentam se aproveitar dessas situações, não são raros os casos em que as vítimas são verdadeiramente vítimas. Elas existem. 

Muitas vezes, sofrem em silêncio e não denunciam os crimes justamente porque sabem que serão vistas como aproveitadoras, provocadoras e culpadas. Sabem também que os homens, em geral, vão encontrar alguma maneira de culpar a vítima, seja o comportamento ou a roupa, enquanto só existe um culpado: o agressor sexual que não respeita o corpo alheio.

Os números oficiais mostram que a geração atual não foi ensinada sobre consentimento e respeito. No mundo, 1 em cada 3 mulheres sofre violência física ou sexual, segundo a Organização Mundial da Saúde. No Brasil, em 2021, uma mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública. Em Portugal, o Relatório Anual de Segurança Interna relata um aumento de 82 casos de estupro em 2021, totalizando 397 crimes, ou seja, pelo menos um por dia. Isso sem contar os que nunca chegam às autoridades. 

Por isso, é essencial e urgente que as escolas, as instituições públicas, os governos e as famílias ensinem crianças e adolescentes sobre o que é consentimento, sobre o respeito a todos os seres humanos. Especialmente, que nós mulheres não somos seres inferiores e não estamos sempre à disposição para satisfazer todo e qualquer desejo. 

Quanto aos adultos, queria mesmo ser esperançosa em relação à mudança, mas as notícias diárias, os relatos que escuto das minhas amigas, meus estudos em violência de gênero e minha própria vivência, com ameaças diárias nas redes sociais por simplesmente ser uma mulher jornalista em um país onde não nasci, me fazem crer que será preciso muito esforço para uma transformação significativa. 

Mas não podemos desistir nem deixar de insistir.  Precisamos de uma sociedade que acredite nas vítimas e não tenha receio em responsabilizar os homens pelos seus crimes, não importa o quanto dinheiro tenham ou o quão famosos sejam, de atores a jogadores de futebol. Precisamos de uma sociedade que ensine os homens a não estuprar e não uma sociedade que ensine as mulheres como se proteger dos homens. 
 

* Amanda Lima escreve a sua opinião em Português do Brasil

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