Exótico, "new age" ou pacifista: pode o budismo ignorar as polémicas de Dalai Lama?

11 abr 2023, 22:22
Dalai Lama. 20 setembro 2018 Foto: Marijan Murat/picture alliance via Getty Images

Dalai Lama chocou o mundo ao pedir a uma criança que lhe chupasse a língua. As reações foram duras e lembraram que o budismo, como outras religiões, não escapa a polémicas, apesar de ser normalmente considerado "exótico" e as suas tradições escaparem ao entendimento do mundo ocidental

Se, em grande parte do mundo, mostrar a língua a alguém é considerado desrespeitoso e sinal de protesto, no Tibete este gesto é uma forma de cumprimento. Segundo a BBC, que compilou vários cumprimentos pouco habituais mas ainda presentes em algumas culturas, a tradição de mostrar a língua para cumprimentar no Tibete remonta ao século IX, ao período do rei Lang Darma, pouco popular e que era conhecido pela sua língua negra: os tibetanos acreditam na reencarnação e, para provar que não eram este rei, mostravam as línguas uns aos outros. Alexandra Correia, coordenadora do Grupo de Apoio ao Tibete-Portugal, confirma: nas zonas rurais do Tibete, mostrar a língua pode ser um sinal de respeito por uma pessoa mais velha ou mesmo um "olá". "Até as crianças, quando fazem algum disparate e querem pedir desculpa, mostram a língua", acrescenta a fundadora do grupo.

Não se sabe qual foi a intenção de Dalai Lama, líder espiritual budista, no passado mês de fevereiro, quando foi filmado a mostrar a língua a uma criança durante um evento público em Dharamshala, na Índia - onde vive no exílio desde 1959, depois de o Tibete ter sido anexado pela China. Mas é inequívoco o que aconteceu depois: o rapaz pediu-lhe inicialmente um abraço e Dalai Lama pediu-lhe em troca um beijo na bochecha, depois nos lábios e, em seguida, mostrou-lhe a língua, pedindo-lhe que a chupasse. As imagens tornaram-se entretanto virais e na, segunda-feira, o Dalai Lama veio desculpar-se pela interação com o menor, descrita como inapropriada e perturbadora.

"Sua santidade deseja pedir desculpa ao rapaz e à sua família, bem como aos seus amigos, pelo mal que as suas palavras possam ter causado", lê-se num comunicado, que acrescenta que "sua santidade costuma provocar as pessoas que conhece de maneira inocente e divertida, mesmo diante de público e diante das câmaras".

Em declarações à CNN Internacional, a organização para os direitos das crianças HAQ Centre for Child Rights, com sede em Nova Deli, veio condenar "toda a forma de abuso infantil", frisando que "algumas notícias referem-se à cultura tibetana de mostrar a língua, mas este vídeo certamente não é sobre nenhuma expressão cultural e, mesmo que seja, tais expressões culturais não são aceitáveis”. 

Para Alexandra Correia, do Grupo de Apoio ao Tibete-Portugal, a explicação é simples: "Qualquer tibetano com quem falasse ia dizer a mesma coisa: ninguém viu malícia alguma, por mais difícil que possa ser acreditar. Apesar de viver no século XXI, o Dalai Lama é um monge e vive rodeado de monges. São mundos distintos e a sua vivência é distinta", afirma, em declarações à CNN Portugal. "Numa família tibetana, é muito comum os pais beijarem as crianças na boca", recorda ainda, frisando que o Dalai Lama, devido à idade avançada - tem 87 anos - tem já alguma dificuldade em compreender conversas e pede frequentemente ajuda a intérpretes. "Quando o menino pergunta se pode dar-lhe um abraço, ele nem compreendeu", justifica. Para Alexandra Correia, as reações acesas na generalidade do mundo ocidental para com o gesto de Dalai Lama, nomeadamente em Portugal, têm ainda outro fundamento: a divulgação recente de vários casos de abusos sexuais de menores na Igreja Católica. "Estamos com isso muito fresco", conclui.

Vídeo: Dalai Lama "lamenta o incidente" após vídeo polémico com menor de idade

As incongruências de Dalai Lama

Helena Ferro Gouveia, especialista em assuntos internacionais e comentadora da CNN Portugal, escreveu no Twitter sobre o gesto inusitado de Dalai Lama. 

"O Dalai Lama sempre gozou de boa imprensa, porque o budismo é «exótico», zen, muito new age, porque é «pacifista» e porque se sabe pouco dos abusos cometidos contra crianças nos mosteiros. Desde 2017, altura em que estive nos campos de refugiados de Cox's Bazar, Bangladesh, e vi crianças Rohingya com braços amputados à catanada por budistas e mulheres violadas por budistas que mudei radicalmente a percepção que tinha desta religião."

Contactada pela CNN Portugal, Helena Ferro Gouveia apontou mesmo algumas "incongruências" à figura do Dalai Lama, "líder religioso mas também político" que, nas últimas décadas, tem protagonizado "momentos menos felizes". 

"Ele considerava que a Alemanha não devia abrir portas aos refugiados sírios", recorda. "É algo que não posso esquecer. Temos toda a compreensão pela situação do Tibete, mas acho que qualquer pessoa que defenda direitos humanos tem de ter sensibilidade também para a questão síria", sublinha. 

Em 2016, numa entrevista ao jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung, Dalai Lama defendeu que a Europa, "a Alemanha em particular, não se pode transformar num país árabe", fazendo referência ao grande número de migrantes de países árabes, como a Síria ou o Iraque, que pediam asilo no continente europeu. O líder espiritual tibetano - que foi Nobel da Paz em 1989 - defendeu ainda que os refugiados deveriam ser recebidos na Europa de forma temporária e que teriam de regressar para ajudar a reconstruir os seus países. Uma posição inesperada para quem também é refugiado e fugiu como milhares de tibetanos para a Índia, perante a imposição da presença chinesa após confrontos no Tibete.

Sobre os refugiados Rohingya no Bangladesh, Helena Ferro Gouveia recorda que esteve em Cox's Bazar mais do que uma vez, a primeira em 2017, precisamente o ano em que o exército de Myanmar - antiga Birmânia - lançou uma campanha militar contra a população Rohingya no norte do estado de Rakhine, que provocou o êxodo de mais de 700 mil refugiados para o vizinho Bangladesh - muitos dos quais permanecem até hoje no maior complexo de campos de refugiados do mundo, na região de Cox's Bazar, no sudeste do país.

Os Rohingya, minoria étnica muçulmana, nunca coexistiram pacificamente com os compatriotas budistas no estado de Rakhine. Mas, em 2012, as autoridades  identificaram como muçulmanos os agressores de uma jovem budista, levando ao início de uma onda de violência contra a minoria Rohingya. Alguns budistas chegaram mesmo a reinterpretar textos religiosos para incentivar os locais à limpeza étnica dos Rohingya, ainda que a maioria não tenha aderido.

Em 2017, Helena Ferro Gouveia participava num projeto de cooperação e desenvolvimento que a levou ao Bangladesh. "Aquilo que vi, a violência investida sobre aquelas mulheres, crianças, a amputação de membros... boa parte dos militares da Birmânia são budistas e isso não os impediu de cometer atos horrendos sobre os Rohingyas", recorda. "Chocou-me porque foi contra a perceção que eu tinha, que era errada, confesso, do budismo. Não digo que todos os budistas são assim, como não digo que todos os católicos são pedófilos ou os muçulmanos são terroristas. Mas no Ocidente temos uma versão romantizada do budismo", reflete. "Eu sabia pouco, mas temos a imagem que nos chega pelos filmes, algumas imagens que vamos vendo. Quem é que não se lembra do Brad Pitt em 'Sete Anos no Tibete'"?, acrescenta. "Tem um lado distante, exótico, também porque houve um conjunto de personalidades ligadas à moda, ao cinema, que adotaram esta coisa new age do budismo", resume.

Sobre os casos que viu, "de perseguição religiosa e genocídio, de apagamento de identidade", recorda o de uma criança Rohingya que fugira com os tios de Myanmar. "Os tios foram mortos e a ela cortaram-lhe o braço, só porque sim, gratuitamente". A menina conseguiu fugir e, com a ajuda de uma mulher, que lhe estancou a hemorragia, chegou ao Bangladesh, onde ficou em Cox's Bazaar."Havia miúdos queimados, atirados a fogueiras. Tudo documentado. Uma violência atroz", lamenta. 

Famílias perseguidas por militares budistas

A organização governamental Save The Children, de defesa dos direitos das crianças, divulgou em novembro de 2017 um relatório com testemunhos de menores Rohingya que fugiram de Myanmar - lembrando que metade dos 700 mil refugiados são crianças. Com o título "Horrores que nunca esquecerei", o documento da Save The Children elenca vários casos de violência sobre crianças, nomeadamente o de uma criança que foi retirada dos braços da mãe e queimada numa fogueira.

"Um soldado arrancou um bebé dos braços da mãe e atirou-o para o fogo. O nome dele era Sahab e não tinha sequer um ano. Nunca esquecerei os gritos deles", lê-se no relatório. A história foi contada por Rehema, uma mulher Rohingya de 24 anos. 

"O budismo tem um lado muito violento também", diz Helena Ferro Gouveia. "Também há relatos de maus-tratos infantis, não estou a falar de abuso sexual, a crianças que são colocadas nos mosteiros. São questões menos faladas mas existem, tem a ver com as características próprias do budismo", admite. 

Joacine Katar Moreira, antiga deputada, também escreveu no Twitter sobre o caso mais recente que ensombra o budismo: "Dalai Lama precisa, no mínimo, de ajuda espiritual. Precisa também que o Nobel da Paz lhe seja retirado e de ser investigado. A um líder da sua envergadura, não se fazer nada, nem sequer a nível do simbólico, é normalizar a violência e abuso sobre as crianças de todo o mundo".

A ex-deputada partilha ainda o artigo de um jornal sul-americano de 2018, sobre o facto de Dalai Lama ter admitido que sabia que sabia de casos de abusos sexuais perpetrados por líderes religiosos budistas.

"Já sabia dessas coisas, nada de novo", terá dito Dalai Lama durante uma reunião com estudantes de budismo. A informação sobre os abusos, que remontavam aos anos 90 do século passado, ter-lhe-ão chegado através de cartas que explicavam como os monges budistas abusavam da sua posição para terem uma vida de luxo, manipulando os menores e convencendo-os de que os abusos eram o caminho para a iluminação.

Vida de serviço público

O Grupo de Apoio ao Tibete-Portugal, que Alexandra Correia coordena, enviou às redações um comunicado reproduzindo a declaração divulgada pelo gabinete do Dalai Lama em resposta ao gesto com a criança indiana. "É lamentável e sua santidade pediu desculpas", lê-se na primeira frase, remetendo-se em seguida para o comunicado do líder espiritual tibetano. 

"Quem acompanhou de perto sua santidade o Dalai Lama sabe que ele é uma pessoa bem humorada e empática. Sabemos que as suas intenções não eram nada para além de jovialidade e não queria fazer mal ou causar dano. Existem incontáveis horas de filmagem online dos compromissos públicos de Sua Santidade nas últimas quatro décadas e elas mostram os seus encontros com pessoas de todas as origens possíveis, de todas as idades e demonstram claramente que ele é aberto e alegre de uma maneira não convencional para um líder mundial - ele é conhecido pela sua natureza lúdica no palco - como beliscar o nariz das pessoas ou as orelhas, puxar barbas e fazer caretas para o público", acrescenta a declaração.
 
"Embora seja compreensível que este incidente tenha causado preocupação entre o público geral, acreditamos que a vida inteira de serviço público do Dalai Lama e o seu histórico de defesa incansável pela paz mundial e promoção da compaixão falam, por si só, sobre a pessoa que ele é", conclui o comunicado. 

Alexandra Correia acompanhou Dalai Lama em Portugal e noutros périplos internacionais e admite que existe um "grande desconhecimento da cultura" tibetana que possa ter levado a uma "má interpretação, fora do contexto", de toda a situação com a criança. Lamenta sobretudo que se "anule toda uma vida" que o líder tibetano dedicou à promoção da paz no mundo desde que está no exílio. "Ele até se propôs a viver sob o jugo chinês desde que dessem liberdade ao seu povo", sublinha, recordando que, em 1987, Dalai Lama desencorajou a luta armada tibetana pela independência porque ia contra os princípios pacifistas do budismo.

Sobre as acusações de perseguição religiosa, apressa-se a explicar que o budismo tibetano "é muito específico" e nada tem que ver com o que é praticado noutras regiões. "São votos distintos, hierarquias diferentes, até as vestes são diferentes", atalha. E a perseguição às minorias muçulmanas, como os Rohingya? "Condenamos", garante.

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