Descoberta misteriosa num quadro de Botticelli de 40 milhões de euros

CNN , Alison Cole
30 jan 2022, 12:00
"Cristo como Homem de Dores" de Sandro Botticelli

A pintura foi vendida na quinta-feira por mais de 45 milhões de dólares (cerca de 40 milhões de euros) num leilão em Nova Iorque. Mas ainda vai ter de ser bem analisada

O redescoberto e captado "Cristo como homem de dores" de Sandro Botticelli, que foi leiloado na Sotheby's esta quinta-feira por mais de 45 milhões de dólares (cerca de 40 milhões de euros), deverá ainda ser estudado minuciosamente, uma vez que esteve em mãos privadas desde o século XIX.

Mas as análises técnicas levadas a cabo pela leiloeira aquando dos preparativos para a venda já revelaram uma inesperada descoberta: uma intrigante imagem de uma Virgem com o Menino, sob as camadas de tinta.

Chris Apostle, o vice-presidente sénior e diretor dos quadros dos Grandes Mestres da pintura na Sotheby's em Nova Iorque, que teve a oportunidade de examinar a obra em profundidade, acredita ser uma composição abandonada de uma "Virgem da Ternura" (um género derivado dos ícones gregos), no qual a Virgem, em última análise, embala a cabeça do Menino Jesus contra a sua, face com face. As características faciais, especialmente o nariz, os olhos e a boca sorridente, que ele identifica como pertencendo ao Menino Jesus, estão muito visíveis na imagem de infravermelhos, se virada cabeça para baixo.

Uma imagem de infravermelhos revela o esboço ténue de uma Virgem com o Menino por baixo. Créditos: cortesia Sotheby's

Esta cabeça ocupa um espaço por baixo do peito de “Cristo como homem de dores", enquanto que o que parece ser um olho e uma sobrancelha, pertencendo à cabeça de uma mulher, sobressaem na área perto da mão direita do Cristo, segundo a Sotheby's. Há também evidências de uma subcamada de pintura a branco, possivelmente com cádmio, na parte inferior da figura. Outras partes visíveis da composição abandonada incluem o que parece ser um manto, com rebordo decorativo em torno do ombro e parte de uma manga e o braço gorducho do menino também se distingue.

Alguns traços no desenho subjacente são mais espessos do que outros, sugerindo que podem ter sido feitos num desenho padrão, e depois passados por cima com um pigmento líquido. Mas a cabeça do Menino Jesus, Apostle sugeriu, é feita de uma só vez: Não há réplica em qualquer outra obra de Botticelli nem trabalhos de estúdio para o que vemos aqui.

As linhas vermelhas numa imagem de cabeça para baixo do quadro mostra a Virgem com o Menino por baixo . Créditos: cortesia Sotheby's

Portanto, é invulgar encontrar tais desenhos subjacentes? Apostle diz que já encontrou este tipo de coisa. "A tela era um bem valioso na Renascença", explicou, portanto, no caso de uma obra descontinuada, neste caso, uma Virgem com o Menino, um tema a que Boticelli e o seu estúdio voltavam regularmente, "não era aconselhável deitar fora a tela.” E assim, parece, Botticelli pegou na tela, virou-a ao contrário e decidiu usá-la para uma extraordinária composição, que reflete a angústia religiosa quase milenar de Itália nesta época. O novo trabalho, provisoriamente datado à volta de 1500, altura em que as previsões do Apocalipse e as esperanças de salvação pessoal tinham atingido um especial nível de intensidade.

O painel de álamo que Botticelli usou era o suporte padrão na Florença renascentista. A análise técnica da Sotheby's revela uma fissura a meio e um nó antigo na madeira e mostra que o painel foi “reconfigurado algures no século XX", segundo Apostle. Está “ensaduichado” num painel moderno, com frente e verso e dos lados ("uma espécie de camuflagem," explicou Apostle). As camadas de tinta estão em "bastante bom estado", continuou, apesar de algo gastas nas pontas, e há acrescentos na parte de cima e de baixo do quadro.

A face do menino Jesus (rodada para obter clareza) é visível na imagem de infravermelhos. Créditos: cortesia Sotheby's

As imagens de infravermelhos também mostram que Botticelli fez certos ajustes à composição, segundo a análise da Sotheby's. Por exemplo, a ponta de um dedo que tocava a ferida aberta no Cristo está agora coberta pelo seu manto, e há uma mudança na posição da ferida e no perfil do polegar, com o resultante efeito de a ferida estar "menos evidente", disse Apostle. Há também evidência de Botticelli ter alterado o comprimento do cabelo de Jesus, o queixo e a colocação de alguns dos espinhos da coroa e também as sobrancelhas.

Em termos da técnica pictórica típica de Botticelli, Apostle disse "ele alterou-a" aqui, misturando têmpera e óleo. "É muito difícil, sem recolha de amostras, dizer qual o meio usado para as ligar", disse ele. "Mas a técnica parece bastante consistente com o que eu esperava ver. Temos tecnologia XRF para podermos ver, por exemplo, o elemento cádmio, e temos um mapa de chumbo, que mostra onde estão os enchimentos e as falhas. Os pigmentos incluem crómio, titânio e por aí fora, todos os pigmentos que se esperava encontrar."

Tal como na obra de Botticelli “Retrato de um Jovem a Segurar um Medalhão", vendida no ano passado pela Sotheby's em Nova Iorque por 92 milhões de dólares, é usada tinta branca de chumbo copiosamente em toda a composição, com alguma tinta misturada na base de gesso preparatória.

Créditos: cortesia Sotheby's

A minúscula cruz no topo da composição foi rebocada com linhas pontilhadas na superfície da pintura e depois deslocada (tais incisões são também visíveis na obra “Retrato de um Jovem a Segurar um Medalhão"). "Terá sido bastante mais para a direita", disse Apostle, apesar de a cruz e de o Cristo continuarem posicionados forma assimétrica. Esta assimetria contrasta com uma imagem contemporânea comparativa, "Salvator Mundi" de Leonardo (outra imagem anómala de um Mestre Antigo, que foi vendida 450 milhões de dólares Christie's Nova Iorque em 2017), em que o Cristo é apresentado rigidamente de frente, como no famoso Sudário de Cristo.

"O que acho tocante é o Cristo estar um pouco descentrado", disse Apostle. "Botticelli inclinou-lhe um pouco a cabeça, o que é mais humano."

Aos 55 anos ou mais velho na altura em que pintou esta obra, Botticelli estaria na última década da sua vida”, salientou Apostle. "Sinto que há algo no quadro que Botticelli está a projetar, uma compreensão de que todos vamos morrer, tem uma carga emocional profunda", disse ele. "Se ele tivesse representado o Cristo ao centro e rígido, isto seria mais um ícone, um pouco mais impenetrável."

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