"Não devemos esconder os sentimentos, o luto não pode ser escondido, tem de ser vivido": Cristiano/Georgina e todos os casos semelhantes

19 abr 2022, 08:00

Falar, falar, falar, falar, falar: o que os especialistas recomendam aos pais que passam por esse evento ultradoloroso que é a perda de um filho

Cristiano Ronaldo e Georgina Rodríguez anunciaram esta segunda-feira que perderam um filho durante o parto - o casal ia ter gémeos, uma das crianças nasceu, a outra morreu. A morte de uma criança na sala de parto é algo que acontece algumas vezes no Hospital de São João, onde Marina Mocho é diretora do Serviço de Obstetrícia. Por ela já passaram alguns casos semelhantes, inclusive de mães que também perderam um dos gémeos que carregavam na barriga. 

"É mais fácil de comunicar se na gravidez já foi detetada qualquer coisa. Tudo depende do contexto. Lembro-me de um caso em que a mulher sabia que o bebé ia morrer mas ele não teve uma morte imediata. Ganhou esperança, deu-lhes um bocadinho nada de esperança, que não tinham, e correu mal", conta, explicando que esta mãe ainda hoje tem dificuldades em falar sobre o assunto.

"A única coisa que podemos dar de esperança é explicar que acontece, que não acontece só a elas, que pode haver uma causa explicável mas que pode não haver, e que se vai fazer tudo para se tentar perceber o que aconteceu para ajudar numa futura gravidez", sublinha Marina Mocho.

E falar sobre o assunto é fundamental, sublinha o psiquiatra Daniel Sampaio, especialista em terapia familiar e que já lidou com situações em que os pais perderam os filhos: "Não se deve esconder os sentimentos. O luto não pode ser escondido, tem de ser vivido". O especialista lembra que há casos em que se diz que o melhor é tentar distrair a pessoa da situação, "vá ao cinema, distraia-se", dizem, mas Daniel Sampaio explica que "é exatamente ao contrário". "Se não fugirem e pensarem sobre o assunto acabam por ultrapassar a situação."

O contexto também oferece outras situações: é diferente ser uma criança mais velha e ser um recém-nascido, é diferente ser algo para o qual já se vai preparando e algo abrupto: "Obviamente que o sofrimento é enorme, mas não é igual ao sofrimento de um filho nascido e já visto. É um filho imaginário, ainda não existe".

Marina Mocho diz que, no caso de fetos ou bebés recém-nascidos, o mais difícil é quando as mães percebem que o filho morreu durante uma consulta. É a chamada morte in utero, em que, como explica a obstetra, a mãe fica a saber "quase ao mesmo tempo" que o médico que o coração do bebé não está a bater.

"Quando é uma morte in utero, quando as senhoras vêm à admissão porque não sentem o bebé mexer ou qualquer coisa assim, é uma coisa que apreendem ao mesmo tempo que nós porque veem na ecografia que o coração não está a bater e nós temos de lhes dizer na altura, explicar que acontece, que também há morte súbita in utero", diz a médica, que admite que há casos em que os clínicos não conseguem explicar às mulheres o que aconteceu.

Muitas vezes o pai sabe primeiro

Existem muitas situações que podem levar àquilo que aconteceu ao bebé de Cristiano Ronaldo e Georgina Rodríguez. Em grande parte delas, refere Marina Mocho, é o pai quem sabe primeiro. É o que acontece em casos de emergência, sendo que a mulher está quase sempre sedada e a notícia acaba por chegar primeiro ao companheiro de quem está na sala de parto.

“São situações de emergência médica e muitas vezes a mãe nem é a primeira a saber, é o pai. Se foi operada de urgência, é comunicado primeiro ao pai e depois à mãe", explica a obstetra, vincando que as mulheres podem por vezes já ter "alguma noção", até porque se apercebem do carácter de urgência do caso, nomeadamente quando são enviadas de urgência para o bloco.

No caso das cesarianas emergentes, Marina Mocho diz que o pai é sempre o primeiro a saber - é uma notícia que costuma ser dada pelo obstetra e pelo pediatra e onde também poderá estar presente um psicólogo. No Hospital de São João, por exemplo, existe uma psicóloga em permanência no serviço, uma profissional que é acionada de forma automática em casos do género: "Quando são cesarianas emergentes é comunicado primeiro ao pai pelo obstetra e pelo pediatra, que geralmente tenta sempre reanimar o bebé. Tem de se pedir o apoio à psicologia e a seguir eventualmente à psiquiatria", refere, acrescentando que "às vezes as mulheres têm alta médica mas continuam a ser seguidas pela psicóloga".

O fator gémeos

Daniel Sampaio não tem dúvidas: os pais e a família vão "sofrer muito menos do que noutros casos" quando se trata de gémeos. Isso deve-se ao facto de, apesar de a notícia trágica, uma outra criança ter nascido no mesmo parto.

O pedopsiquiatra defende que a comunicação da morte do irmão gémeo deve ser feita apenas mais tarde, apenas "muito tempo depois" do nascimento. Aí, e com uma "vida amparada, uma grande família", como diz ser o caso da de Cristiano Ronaldo e Georgina Rodríguez, tudo pode correr melhor.

Já Marina Mocho volta a recordar o caso descrito acima, o de uma mãe que "sabia que o bebé ia morrer mas que não teve uma morte imediata". A obstetra até admite que seja mais fácil lidar com a situação nos casos de gémeos, mas utiliza este exemplo para voltar a referir que tudo passa pelo contexto e, em última análise, também pela tal "personalidade" de que falava Daniel Sampaio. "É sempre muito mau, mas será uma coisa que com o tempo os pais vão ultrapassar", conclui.

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