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30 jun 2022, 23:20
António Costa e Pedro Nuno Santos

Foram das horas mais estranhas da política recente em Portugal. E da não recente

Uma das principais perguntas continua sem resposta: porque decidiu o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, confirmar os novos aeroportos no Montijo e em Alcochete se o Governo já tinha explicado, em praça pública, que queria falar com o novo líder do PSD para tomar a decisão final?

António Costa atirou a resposta para o ministro que decidiu não demitir, apesar de o país ter passado o dia a acreditar numa saída. Já Pedro Nuno Santos, quando fez o “mea culpa” (sem nunca usar a palavra “desculpa”), cerca de hora e meia antes e com uma expressão visivelmente desconfortável, não deu margem aos jornalistas para qualquer pergunta.

O foco era arrumar a crise política nascida no seio de um governo com maioria absoluta. “Falha grave”, afirmou Pedro Nuno Santos. “Um erro grave, felizmente prontamente corrigido”, rematou Costa.

Meia hora

O país passou o dia a aguardar o desenlace enquanto os principais protagonistas se mantinham em silêncio. De agenda cheia e praticamente incontactável, Costa foi surpreendido com os movimentos do seu ministro enquanto estava em Madrid, na cimeira da NATO. Aí, não quis quebrar a regra de não falar de política interna quando está fora de portas. E insistiu no comunicado partilhado pelo seu gabinete, de manhã, a solicitar que o despacho assinado apenas pelo secretário de Estado das Infraestruturas Hugo Mendes fosse anulado. Para mais, tinha de se aguardar o seu regresso.

Pedro Nuno Santos falhou o Conselho de Ministros. Ao início da tarde, enquanto Costa viajava de Madrid para Lisboa, Pedro Nuno Santos chegou a São Bento. Ficou à espera do primeiro-ministro para uma reunião rápida, de cerca de meia hora.

O advérbio

Ainda antes de confirmar que se mantinha no Governo, Pedro Nuno Santos, numa declaração sem direito a perguntas no Ministério das Infraestruturas, defendeu-se como pôde - mas pareceu uma "humilhação". Nessa mesma declaração lembrou que foi ele quem trabalhou com António Costa na solução que lhe permitiu governar, a geringonça.

Para o ministro, a “relação profissional” e “de amizade” não sai “manchada” por um “momento infeliz”. “Uma falha na articulação e na comunicação”, classificou Pedro Nuno Santos, no seio de um governo que há semanas nomeava um diretor de comunicação para falar a uma só voz.

“Queremos obviamente ultrapassar este momento, retomar o nosso trabalho em conjunto, construir a nossa relação de confiança, de trabalho”, insistiu. E com um advérbio, confirmou que não era desta que saía do governo. “Obviamente.” 

A revelação: "até os políticos são humanos"

“Foi cometido um erro grave, felizmente prontamente corrigido. A orientação do governo está restabelecida.” Foi assim que António Costa, mesmo com uma reprimenda e depois um aviso – “espero que não aconteça mais nenhum erro” - a Pedro Nuno Santos o segura no Governo e evita uma remodelação numa pasta difícil.

Mas, perante a insistência dos jornalistas, lá acabou por admitir que “não sabia da essência daquele despacho, que já está devidamente revogado”. Para Costa, até “os políticos são humanos” e têm direito a errar. A conversa com Pedro Nuno Santos, diz, foi “muito franca”, “esclarecedora” e deixou a sensação de que o ministro “não agiu de má.fé”. Mas porque o fez desta maneira? O chefe de Governo não arriscou outras explicações.

Marcelo deixa Costa sozinho a defender Pedro Nuno Santos

À terceira, para Marcelo, foi de vez. De manhã, numa conferência conjunta com o presidente da Nigéria, evitou o tema. À tarde, junto de Emmanuel Macron, avisou que era “preciso saber esperar”. À noite, já depois de ter conversado com António Costa, o Presidente foi claro: espera uma decisão “rápida”, “consensual” e “consistente” quanto aos novos aeroportos.

Marcelo foi Marcelo, que é dizer que foi claro sendo algo críptico: "O primeiro-ministro escolhe os colaboradores e é o primeiro-ministro que deve, em cada momento, olhando para o passado e para o presente, ver se são aqueles que estão em melhores condições para terem êxito nos seus objetivos. E o primeiro-ministro é naturalmente responsável por isso. Pela escolha mais feliz ou menos feliz, pela avaliação que a cada momento faz mais feliz ou menos feliz dos seus colaboradores".

Portanto: Costa não demitiu Pedro Nuno Santos porque não quis e Marcelo deixou o primeiro-ministro sozinho a defender essa decisão. Mas mais: o primeiro-ministro vai ser julgado por isto à luz da Constituição, que é a luz pela qual um Presidente avalia um Governo: "Despacho [do novo aeroporto] revogado. Solução o mais rápido possível. Consensual e clara e consistente. Para que se possa acreditar nela. E a equipa escolhida pelo primeiro-ministro que tenha as melhores condições para prosseguir estes objetivos, sabendo que, se assim for, os objetivos são atingidos; se assim não for, os objetivos não são atingidos e a responsabilidade da escolha é, pela Constituição, do primeiro-ministro".

Novela mexicana

Ainda não tomou posse como presidente do PSD e Luís Montenegro já começou, ainda que de forma indireta, a criar dificuldades ao Governo. Isto porque, sendo a construção de um novo aeroporto um tema que atravessa diferentes legislaturas, António Costa faz questão de dialogar com os sociais-democratas antes da decisão final, assente numa “base sólida e estabilizada”.

“A dois dias de um congresso do principal partido da oposição não se anuncia uma decisão assim”, atestou Costa. Na véspera, Pedro Nuno Santos insistia que era altura de avançar porque Montenegro se tinha “posto de fora” do tema ao destacar a “incompetência” do Governo, esperando que fosse o PSD “a dar uma solução para esses problemas”.

Montenegro reagiu para dizer que “não foi informado” de nada quanto aos planos dos novos aeroportos. Já Rui Rio, mesmo com um pé de fora da liderança, não quis deixar o assunto passar em claro. Com duas declarações no Parlamento: a primeira para pedir a intervenção de Marcelo na demissão, a segunda para falar numa “situação absolutamente caricata” e na “falta de coragem” política de Costa.

Na roda viva de reações políticas ao longo do dia não faltou criatividade para descrever este episódio de crise política. “Uma república das bananas que se transformou numa novela mexicana” para a Iniciativa Liberal. “Um circo” para o Chega. “Um caos político incompreensível” e um “pântano político” para o Bloco de Esquerda. Um Governo “a brincar com os portugueses” para o PAN”. “Imbróglio e descoordenação” para os comunistas.

No Parlamento, da esquerda à direita, fica uma certeza: Pedro Nuno Santos está fragilizado, o que é um risco para alguém que tem de lidar com pastas tão prementes como a ferrovia ou a habitação.

A reforma de Costa

Os desentendimentos entre António Costa e Pedro Nuno Santos não são novos, mas este episódio elevou tudo a um novo patamar. A TAP foi o motivo para as outras duas vezes em que António Costa desautorizou publicamente o ministro. Primeiro quando Costa obrigou Pedro Nuno Santos a retirar o convite a Miguel Frasquilho para continuar à frente da TAP. A segunda quando o ministro queria levar a votação no Parlamento o plano de reestruturação da TAP, acabando a admitir a derrota publicamente.

Esta quinta-feira, Pedro Nuno Santos fez questão de lembrar o seu papel na geringonça, na qual assumiu o papel de negociador com o PCP e o Bloco de Esquerda. Foi precisamente quando deixou de ser secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares e promovido a ministro que as relações entre ambos começaram a azedar – mesmo que Costa continuasse a apostar no governante para negociar dossiês difíceis, como a greve dos motoristas de matérias perigosas que praticamente parou o país.

Nos congressos dos PS não faltam também histórias que evidenciam um certo mal-estar entre ambos. Em 2018, quando Pedro Nuno Santos apresentou uma moção própria na reunião magna do partido, Costa sentiu necessidade de deixar um aviso aos potenciais sucessores: “Não meti os papéis para a reforma”. Postura diferente teve no último congresso, em agosto do ano passado, onde o tema da sucessão marcava as conversas de bastidores. Pedro Nuno Santos chegou atrasado e não falou – algo que foi interpretado como um novo sinal de desconforto. Já na última campanha eleitoral, no seu discurso em Aveiro, Pedro Nuno Santos não fez qualquer referência ao secretário-geral do PS.

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