Banhos de gelo, tortura e execuções. Por dentro do império do terror do "Urso da Penha", o homem que criou um país dentro de um país

31 out, 21:13
Complexo do Alemão (Bruna Prado/AP)

A maior e mais mortífera operação da história do Rio de Janeiro tinha um alvo principal: Edgar "Doca" de Andrade. Ele escapou, mas a investigação expôs a dimensão do seu império de terror

Comanda um enorme exército privado e tem nas suas mãos o poder de decidir quem vive e quem morre. Debaixo das suas regras estão centenas de milhares que são governados com punho de ferro e poucos são os que podem estar na sua presença. Edgar Alves de Andrade, conhecido nas ruas do Rio de Janeiro como "Doca" de Penha, era o alvo principal das autoridades brasileiras naquela que foi a operação policial mais mortífera da história do Brasil, mas conseguiu escapar sem deixar rasto.

No vasto submundo do crime brasileiro, todos o conhecem e o seu nome é temido. As autoridades consideram-no um dos mais cruéis criminosos do país, com 112 assassínios associados ao seu nome. Mas o seu cadastro é bem mais vasto, com acusações de tráfico de droga, sequestros, ocupação armada de territórios e até execuções de crianças. Ao todo, o Ministério Público brasileiro tem 329 investigações criminais ligadas a "Doca" desde 2003. 

"Doca" não só ordena execuções no território que controla, como insiste que estas sejam feitas da forma mais cruel possível, de forma a enviar uma mensagem aos seus inimigos. Durante o período da sua liderança, depois de ter saído da prisão em 2017, comandou a maior expansão territorial da história do Comando Vermelho (CV), através de uma campanha de assalto às posições dos rivais do Terceiro Comando Puro (TPC).

A brutalidade dos ataques ordenados por "Doca" aos rivais valeu-lhe a nova alcunha de "Urso da Penha". Os membros do CV escolheram este animal para a alcunha por ser o predador natural do peixe, uma vez que o líder da fação rival tem o nome de guerra "Peixão". Na favela que controla de forma incontestável é possível ver vários murais de grafitti com desenhos de ursos com coletes à prova de bala e armados, em homenagem ao comandante do CV. 

Na favela, o traficante de 55 anos é quase uma figura mítica. Rappers ligados ao mundo do crime, como Oruam, que é filho de Marcinho VP, um dos principais líderes da organização, ajudam a propagar a lenda do "Urso" com músicas em sua homenagem. O popular rapper brasileiro fez um vídeo para as redes sociais onde critica a megaoperação, insistindo que "o crime é o reflexo da sociedade". 

Mas as autoridades têm outra opinião. Em 2024, "Doca" foi acusado de ser o autor do homicídio de uma turista que entrou por engano numa favela. Apesar de não ter sido o autor do disparo, as autoridades consideram que o líder do CV é o responsável por autorizar estas mortes previamente, uma vez que "nada é feito sem a sua expressa autorização". No inquérito do caso, as autoridades sublinham que "Doca" "impõe o seu domínio através de extrema violência, medo e terror". 

Foi o caso do homicídio de dois irmãos moradores do Complexo da Penha, que foram mortos pelo CV, depois de a polícia militar ter usado a sua casa durante uma operação na favela. Segundo testemunhas, um dos irmãos foi baleado por um traficante nas pernas enquanto tinha o neto ao colo, antes de os dois serem levados à força para a região de mata no topo da favela conhecida por Vacaria, onde foram cobertos de pneus e queimados. Quando um dos familiares perguntou a um traficante onde é que eles estavam, o criminoso disse que "estavam a dormir e iriam acordar em breve". 

Outro exemplo da brutalidade imposta a moradores é o caso de três crianças da comunidade de Belford Roxo, que foram torturadas até à morte por terem roubado duas gaiolas de passarinhos do tio de um traficante. Fernando, Alexandre e Lucas tinham apenas 11, 10 e 8 anos. "Doca" terá sido quem deu a autorização para avançar com o castigo às crianças.

Tribunal do Tráfico

Todas as decisões de execução acontecem num núcleo muito restrito de criminosos conhecido como o Tribunal do Tráfico. Esta "instituição" criada pelos traficantes para impor as suas punições aos habitantes da favela foi um dos principais pontos de partida das autoridades brasileiras para a megaoperação de terça-feira, que resultou na morte de 121 pessoas, de acordo com os números oficiais.

Além de "Doca", o Ministério Público acredita que a organização ´w composta por famosos criminosos como "BMW", "Gadernal" e "Bafo", que eram os responsáveis por cumprir a sentença dos "julgamentos", com torturas e homicídios a moradores e rivais. Segundo as autoridades, o objetivo do tribunal faz parte de uma estratégia para manter o controlo territorial do Complexo da Penha e do Alemão. 

A investigação que levou à megaoperação mostra com grande detalhe as trocas de mensagens em grupos de Whatsapp, onde os líderes do CV gerem o tráfico de droga e determinam a execução de todos os seus inimigos. Juan Breno Malta Ramos Rodrigues, conhecido como "BMW", é um dos mais violentos membros da fação, estando hierarquicamente apenas um nível abaixo de "Doca", sendo o responsável pela orientação de castigos e ataques contra rivais.

"BMW" é suspeito de ser o chefe do grupo de homicidas conhecido como a "Equipa Sombra" e de promover treino de tiro dos seus "soldados" na região da Mata da Misericórdia, onde dezenas de traficantes foram mortos esta semana. As autoridades acusam-no de torturar de forma excessivamente sádica. Segundo o Minsitério Público, "BMW" tem como forma de tortura preferida atar a vítima algemada a um carro e arrastá-la ao longo da favela.

Juntamente com Carlos da Costa Neves, conhecido como "Gadernal", coordena as ações violentas do grupo. Este criminoso, que conseguiu escapar à megaoperação policial, é considerado um general do CV e o chefe de segurança pessoal de "Doca". O Ministério Público brasileiro obteve trocas de conversas entre "BMW" e "Gadernal" que mostram os dois a fazer piadas com as vítimas durante torturas. Uma das torturas preferidas dos criminosos é o banho de gelo, que os criminosos descrevem como uma alternativa às agressões a crimes menores.

"Gadernal" é ainda o responsável do grupo por definir as estratégias nos confrontos com grupos criminosos rivais e nas táticas de confronto com a polícia. Este é o homem que as autoridades acreditam ser responsável pela "militarização" da fação, que introduziu a utilização de drones, camuflados, armas de alto calibre capazes de atingir e abater os helicópteros da polícia. 

Uma imagem anexada pelo Ministério Público no processo mostra uma mulher no interior de uma banheira cheia de gelo por ter provocado desentendimentos num baile de funk na favela. Os criminosos partilharam a fotografia com a mensagem: "Paizão não quer bater em morador, aí a melhor forma será essa", seguido de vários emojis, incluindo o de um urso. 

Entre a "elite" de confiança de "Doca" está ainda Washington César Braga da Silva, conhecido por "Grandão" ou "Síndico da Penha". Este homem é uma espécie de diplomata do crime do Comando Vermelho, responsável por negociar com a Polícia Militar das Unidades de Polícia Pacificadora o pagamento de subornos, para garantir que as autoridades reduziam a fiscalização e a repressão contra a atividade criminosa. "Grandão" tinha um telemóvel exclusivo para comunicar com polícias militares e chegou a ajudar um polícia militar a encontrar um carro roubado em três dias, depois de este ter pedido ajuda.

Segundo a investigação, apenas um grupo restrito tinha acesso direto a "Doca", entre eles Pedro Paulo Guedes, “Pedro Bala”, que divide o comando do tráfico na região. Num grupo de Whatsapp, a que as autoridades tiveram acesso, é possível ver os traficantes a atualizar as escalas de segurança diárias do líder do grupo. Os líderes da fação utilizam com frequência grupos no WhatsApp para emitir ordens sobre a venda de drogas para os subordinados, determinar escalas no pontos de venda, de monitorização e de segurança armada.

A investigação mostrou ainda que os grupos são usados para tratar de veículos roubados, monitorização de viaturas da polícia, contabilidade das vendas de drogas e até execução de pessoas que contrariem os “interesses criminosos” na comunidade.

Uma expansão sem precedentes

A brutalidade da liderança tem trazido muita riqueza ao grupo e um aumento considerável do poder do CV na cidade. Segundo a investigação, o Comando Vermelho tem levado à frente, nos últimos anos, um "projeto expansionista", concentrando ofensivas na região de Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro. As disputas para avançar nessa guerra sangrenta, segundo o Ministério Público, vêm "acarretando dezenas de mortes ao longo dos últimos anos, além de incremento da sensação de violência na região".

"É uma cadeia de comando rigidamente estabelecida e cumprida, com emissão de ordens, além de punições severas aos descumpridores das diretrizes", destaca a denúncia. A investigação interceptou trocas de mensagens e imagens que evidenciam uma rotina de abusos e transgressões, num ambiente onde vigora uma justiça paralela, com execuções e torturas.

O Comando Vermelho é um dos mais antigos grupos criminosos brasileiros. Foi criado no interior de uma prisão, durante a ditadura militar, na década de 70, com o objeitvo de combater a tortura e os maus tratos sofridos pelos presos. Mas o grupo rapidamente se expandiu para fora dos estabelecimentos prisionais e descobriu no tráfico de cocaína uma importante fonte de receitas.

Hoje a fação tem características que se assemelham a conhecidos esquemas de mafiosos, devido ao domínio da cadeia de produção da maioria das atividades ilegais em que atua. As principais fontes de rendimento do grupo são o tráfico de droga, mas, recentemente, o Comando Vermelho tem vindo a encontrar formas diferentes de obter rendimentos. Em particular, a fação criminosa ficou conhecida pelo "controlo territorial armado", no qual obriga os moradores das áreas que controla a optar por serviços e fornecedores escolhidos pelo grupo. 

Um estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em fevereiro de 2025 revelou que o tráfico de cocaína já não é a atividade que dá mais dinheiro ao crime organizado no Brasil. A investigação aponta que atividades como a venda irregular de combustível, ouro, cigarros e álcool são mais lucrativas. 

Esta "ultracapitalização" das fações criminosas é vista pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Flávio Dino, como a raiz do caos no Rio de Janeiro. "Foi-se o tempo em que as fações criminosas no Brasil viviam apenas de mercado ilegal", afirmou Dino, que as classifica hoje como "grandes operadoras de garimpo, no mercado imobiliário e de combustível".

Este poder financeiro permite a infiltração no Estado, um problema que, segundo o coronel Fernando G. Montenegro, transforma o território da fação num "enclave de micro-soberania" - um mini-país que defende a sua autonomia. O coronel aponta o dedo à fragilidade do sistema: “O Rio de Janeiro tem a polícia que mais prende, mas tem a justiça que mais solta. Existem sete desembargadores investigados pela venda de sentenças.”

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