"Fui insultado, cuspiram-me, tentaram agredir-me": há um "agravamento da ameaça" de grupos extremistas em Portugal - uns são "neonazis", outros querem "a terceira vaga do terrorismo global"

5 jun, 07:00
Protesto do grupo 1143, liderado por Mário Machado (Diogo Baptista/Getty Images)

São "neonazis" e "fascistas" ou "anarquistas" e "anticapitalistas". Os grupos extremistas estão de volta "após um período de estagnação" e parecem ter regressado com força, ao ponto de as autoridades alertarem para "um agravamento da ameaça" destes movimentos. Para já é uma "ameaça residual", mas “de um momento para o outro pode crescer”, desencadeando “ações mais violentas ainda”

“Senti na pele a ira das pessoas. Fui insultado, cuspiram-me, tentaram agredir-me. É uma coisa absolutamente surreal confrontarmo-nos com pessoas que parecem animais”. Hugo Costeira, presidente do Observatório de Segurança Interna, relata assim o dia em que um grupo de ativistas pró-Palestina se manifestou contra a celebração do 76.º aniversário da fundação do Estado de Israel, no Cinema São Jorge, em Lisboa, e que ficou marcado por momentos de tensão entre as forças policiais e os ativistas. O responsável participava no evento como convidado e diz que nunca imaginou ver um comportamento daqueles, por parte dos ativistas, “tão de perto”, obrigando à atuação do Corpo de Intervenção da PSP.

Este episódio, contado na primeira pessoa à CNN Portugal, é um dos exemplos que o especialista dá para ilustrar o “agravamento da ameaça” de grupos extremistas em Portugal, sobretudo da extrema-direita mas também da extrema-esquerda, conforme conclui o mais recente Relatório Anual da Segurança Interna (RASI), de 2023.

Segundo o relatório, “após um período de estagnação, as organizações tradicionais e os militantes dos setores neonazi e identitário retomaram a sua atividade, promovendo ações de rua e outras iniciativas com propósitos propagandísticos”.

Mas também na extrema-esquerda “o movimento anarquista e autónomo” retomou a atividade, associando-se a manifestações de massa, quer pelo direito à habitação ou pelo combate às alterações climáticas, entre outras, mas “imprimindo-lhes um cunho ideológico anticapitalista”, promovendo “atos de vandalismo e provocações às forças de segurança” que, segundo o RASI, visam, “em última análise, mobilizar os demais participantes para uma luta contra o sistema”.

O relato de Hugo Costeira não terá sido, por isso, um caso isolado. De acordo com o relatório, “no último trimestre de 2023, a causa palestiniana também foi apoiada por estes setores, através da participação em manifestações, mas sem registo de incidentes relevantes”.

Os especialistas acreditam que a retoma da atividade destes grupos extremistas após “um período de estagnação” se deve à altura da pandemia de covid-19, quando os elementos destes grupos aproveitaram o online para estabelecer ligações - ou, como o politólogo José Filipe Pinto descreve, para criar “a teia” de ligações através das redes sociais. “Uma vez libertos do confinamento, passaram para o espaço público”, diz o especialista em movimentos extremistas, explicando assim o crescimento deste fenómeno.

Apesar deste agravamento da ameaça dos grupos extremistas, o presidente do Observatório de Segurança Interna diz não estar “objetivamente preocupado” com estes dados, uma vez que reconhece em Portugal “uma capacidade muito boa em lidar com estes fenómenos” extremistas, nomeadamente ao nível dos serviços de informações. Segundo Hugo Costeira, perante esta ameaça, “o que as autoridades podem fazer nestes casos é assumir um papel muito preditivo”, ou seja, acompanhar e monitorizar a atividade destes grupos que, a partir do momento em que se constituem como “uma ameaça credível à nossa segurança interna, por causa das ações disruptivas que promovem, automaticamente constituem-se como alvos legítimos do serviço de informações e da inteligência doméstica, como o Serviço de Informações de Segurança (SIS).

“A partir do momento em que é detetada uma ameaça, ou seja, quando a informação é concreta e está maturada, o caso passa para outros serviços de segurança, por exemplo à Polícia Judiciária, nomeadamente à Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo”, explica o especialista.

José Manuel Anes, ex-presidente do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), confirma que é o Serviço de Informações de Segurança (SIS) quem tem “a obrigação de acompanhar a atividade desses grupos e de lançar os alertas quando vê caso disso”. Pese embora admita que as autoridades “têm controlado” estes grupos extremistas, o especialista reconhece que “devia haver mais controlo” dos mesmos.

Isto porque, embora estes grupos ainda representem “uma ameaça residual”, no entender de José Manuel Anes, a verdade é que “de um momento para o outro pode crescer”, desencadeando “ações mais violentas ainda”. “Porque são sempre os mesmos, mudam às vezes o nome do grupo, mas são praticamente os mesmos e o que interessa é que tem de haver vigilância sobre esses grupos neonazis, mas também sobre extrema-esquerda anarquista”, defende.

"Neonazis” ou “anarquistas": afinal, quem são os extremistas de direita e de esquerda?

O RASI identifica os grupos extremistas de extrema-direita como “neonazis”, mas José Manuel Anes também os descreve como “fascistas”, apontando como exemplo o movimento 1143 liderado por Mário Machado. Ainda assim, o especialista afasta estes grupos do partido político Chega, que identifica como um partido de “direita radical e populista”. É certo que “o discurso [de André Ventura] pode contribuir para a ameaça dos grupos de extrema-direita, mas são duas coisas distintas”, sublinha José Manuel Anes.

José Filipe Pinto, professor catedrático da Universidade Lusófona que se dedica ao estudo destes movimentos extremistas, corrobora as afirmações do ex-presidente do OSCOT. “A extrema-direita bebe muito de ideologias como o nazismo e o fascismo, são movimentos que se consideram ultranacionalistas e que procuram reacender aquilo que eles chamam patriotismo”.

Na prática, prossegue o especialista, estes grupos da extrema-direita “pretendem desafiar o sistema e criar uma cultura antissistema de perseguir os grupos que consideram ser os responsáveis pela degradação das culturas nacionais, tendo como alvos prioritários os imigrantes, os negros - e aí temos uma questão de racismo - e os islâmicos - e aí temos uma questão de xenofobia religiosa.”

Já do lado dos grupos de extrema-esquerda, o RASI identifica-os como “anarquistas” - uma definição com a qual José Filipe Pinto não concorda. No entender do especialista, estes grupos extremistas associados à extrema-esquerda ambicionam “um regresso à terceira vaga do terrorismo global” ou “terrorismo da esquerda contestatária” - um fenómeno que, segundo o professor, surgiu na Europa na década de 60 e que “teve como principais expoentes as Brigadas Vermelhas em Itália [uma organização paramilistar comunista] e o grupo Baader-Meinhof na Alemanha”. “Portanto, não é um grupo apenas anarquista, é mais do que isso - é anticapitalista”, identifica José Filipe Pinto.

Além disso, continua, os grupos da extrema-esquerda têm a particularidade de conseguirem “juntar-se com a população que reclama contra o sistema, infiltrando-se em manifestações de movimentos orgânicos e servindo-se de causas sem as defender apenas para lutar contra o seu grande inimigo, que é o capital”.

Exemplos disso são os movimentos climáticos que têm promovido ações de protesto em Portugal, sobretudo nas grandes cidades. Segundo o RASI, “à semelhança do que se verificou no plano internacional, foi no seio do movimento ambientalista de matriz anticapitalista que se observou uma maior radicalização, através do recurso reiterado a ações ilegais e a atos de vandalismo, bem como de uma tentativa de sabotagem de uma infraestrutura crítica”. 

Hugo Costeira manifesta-se “intolerante” perante estes episódios de violência por parte dos ativistas climáticos. “Estão há meses a causar o caos onde quer que vão, a criar situações indecentes do ponto de vista da ordem pública. Param o trânsito, partem montras, vandalizam infraestruturas. E, da parte das autoridades judiciárias, sente-se uma apatia e uma dificuldade em condenar porque quase que se encara isto como manifestações de natureza cultural e de liberdade de expressão”, critica o presidente do Observatório de Segurança Interna, admitindo que, enquanto cidadão, não se identifica com este “ideal de contestação”.

O relatório da segurança interna vai mais longe e diz mesmo que “a causa ambientalista continuou a revelar-se fundamental para o recrutamento de jovens para diferentes setores da extrema-esquerda”. E é por esse motivo que Hugo Costeira defende que a radicalização dos mais jovens passa essencialmente pela educação, quer nas escolas, quer no seio familiar, encarando-se esta questão como “um fenómeno sociológico” que cresce sobretudo entre os mais jovens na internet.

Neste contexto, o especialista destaca a importância da visita de elementos das forças de segurança e dos serviços de informações às escolas, de modo a terem “contacto com estas instituições” e perceberem o que está em casa. Hugo Costeira não descarta, porém, o papel dos pais nesta questão, aconselhando-os por exemplo a monitorizar os conteúdos que os seus filhos assistem na internet.

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