Ajudar os filhos a lidar com o luto e prepará-los para a perda. "Levei a minha filha a despedir-se do irmão gémeo. Ela deu-lhe um beijinho, fez-lhe uma festinha e despediu-se”

27 nov 2022, 18:00
Criança

A inevitabilidade da morte atormenta muitos adultos e faz parte da vida de muitas crianças. O luto é vivido de forma muito particular por cada um e os mais novos têm nos mais velhos os pilares para suportarem as perdas. Contamos as histórias de quatro famílias em que os filhos se viram confrontados com o luto cedo demais e fomos procurar perceber se há formas de tornar este peso mais leve nos ombros dos jovens

Francisco partiu em paz, durante o sono, naquele fim de tarde de verão, na casa da família, em Lisboa. A irmã gémea, Maria, de 12 anos, brincava na sala com a mais nova, Aurora, de apenas dois. Quando a mãe Joana percebeu que o filho estava morto, teve um breve momento de choque.

“Na minha cabeça, quando a Maria veio ao corredor ver o que se passava, disse-lhe ‘querida, o mano não está bem, vá para a sala com a mana’. Mas, na realidade, o que saiu da minha boca foi ‘Maria, o mano morreu’”, conta.

Com a naturalidade com que sempre encarara os problemas de saúde de Francisco, Joana havia contado, com todas as letras, à filha mais velha que tinha perdido o irmão gémeo. Quando percebeu o que acabara de dizer, convidou a jovem a despedir-se do irmão: “Só lhe tapei os olhos, porque não queria que ela ficasse com a imagem do irmão morto na memória. Guiei-a e ela deu-lhe um beijinho, sempre de olhos tapados, fez-lhe uma festinha e despediu-se”.

A minha filha, com apenas doze anos e meio, foi um mulherão”, remata Joana.

A morte de Francisco foi sendo preparada. Os médicos sempre disseram que não chegaria à adolescência e já se surpreendiam com a sua sobrevida. Os gémeos foram prematuros e Francisco nasceu com uma mutação genética quase única (só havia mais um caso no mundo inteiro), que lhe causara graves problemas de desenvolvimento: tinha epilepsia, não falava, não andava, tinha problemas respiratórios e ósseos.

“Desde os seis ou sete anos que fomos preparando a Maria para esta inevitabilidade. E ela encarou a morte do irmão com muita naturalidade. Somos católicos e um dia a Maria perguntou-me se Deus existia. Quando o irmão morreu eu disse-lhe: ‘Maria, aqui estava a prova que Deus existe. Deus foi muito misericordioso connosco porque levou o mano enquanto ele estava a dormir e antes que ele sofresse’”, revela.

“Vou pedir ao mano que me ajude no teste”

Joana não tem dúvidas que a forma natural como a filha mais velha encarou o luto é um reflexo da forma como ela própria e o marido o vivem: “Eu tinha idealizado a morte do meu filho. No cantinho dele, no quarto onde ele gostava de estar, sem enfermeiras, sem reanimações, sem autópsias… e foi isso que aconteceu. Gosto de falar sobre ele. Faz-me bem falar sobre ele. O facto de sermos católicos influenciou a forma como lidamos com isto.”

Maria é uma adolescente alegre, confiante e feliz. “Excelente aluna”. Não se deixa abalar pelas avaliações na escola, por exemplo. Mas recorda o irmão em vários momentos do seu dia-a-dia. “Às vezes, quando tem um teste, diz ‘vou pedir ao mano que me ajude no teste’”, revela Joana.

Mas há ainda a pequena Aurora. Joana teve de lidar com o luto de duas filhas de idades muito díspares. “A Aurora era muito pequenina. Não creio que ela tenha memória dele. Eu é que nunca deixei morrer a memória dele e falo muito dele. Ela tinha dois anos, quando ele morreu. Chamava-lhe 'bebé'. Quando lhe pergunto pelo mano, ela diz que está no céu e aponta para o céu”, conta.

A história da família de Joana encerra vários aspetos da experiência de luto na infância que é importante sublinhar. “É uma dupla experiência. É a morte de um irmão, que não é normal, tendo em conta a idade. E é um irmão gémeo. Isto intensifica a experiência. O facto de acontecer no período da adolescência, em que se experienciam muitas oscilações emocionais e mudanças físicas também é muito relevante”, alerta a psicóloga Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses.

A especialista sublinha ainda que o luto vivido em família, com todas as particularidades de cada família, se torna muito mais fácil. “As famílias são todas muito diferentes umas das outras na forma como gerem o luto. A linguagem deve ser adaptada à idade da criança, mas deve ser sempre verdadeira. A família tem normalmente as suas referências religiosas, sociais e culturais. Se o adulto tem determinado tipo de crenças, essa é a verdade do adulto e é assim que deve ser contada à criança”, aconselha Sofia Ramalho.

“Tive uma infância terrível, revoltante, por causa de todas estas perdas”

Marta Celorico viveu ela própria o luto na infância. Aos nove anos, perdeu o pai, que foi atropelado. Aos 13, perdeu a avó. Aos 16, perdeu a bisavó.

A bisavó já era velhinha e estávamos à espera. Mas o pai foi muito repentino e inesperado. Apesar de ter muito apoio da mãe e dos avós, foi muito difícil. Passava muito tempo sentada no muro do cemitério. A maneira que eu tinha de estar mais perto dele era ir para lá e ficar sentada no muro a olhar para a campa”, recorda Marta Celorico

A mãe fez “o melhor possível”. Ficou viúva com 35 anos e teve de criar dois filhos sozinha. Na altura, quis levar os filhos a um psicólogo, mas as crianças recusaram: “Achávamos que nada ia ajudar, porque o tínhamos perdido e nada o ia trazer de volta”. Mas o tempo foi passando, as crianças foram crescendo e as ausências faziam-se sentir. O mais difícil para Marta eram os domingos à tarde na aldeia, quando todos se encontravam no largo e as amigas estavam com os pais e ela não tinha o dela.

“Refugiei-me na comida e engordei imenso. Por volta dos 15 anos, procurei ajuda psicológica. Parei os estudos com 17 anos, porque psicologicamente não conseguia gerir tudo. Veio uma depressão. Aos 18 tive mesmo de ir ao psiquiatra e comecei a tomar medicamentos”, resume, convicta que os vários lutos mal geridos estiveram na origem de todos estes problemas.

A forma como Marta viveu o luto na infância e na adolescência influenciou o modo como ela própria ajudou os filhos a lidar com a morte da avó, há oito anos. Tinham na altura nove, sete e três anos. Não foi de um dia para o outro, mas também não houve tempo “para se habituarem”. “É habituar mesmo, porque preparados nunca estamos”.

“A minha mãe começou a emagrecer muito. Foi ao médico e foi-lhe descoberto um cancro no estômago, só que já estava instalado em todo o lado. Trouxe-a para casa, porque os médicos disseram que já não havia nada a fazer. Os meus filhos foram vivendo essa inevitabilidade. Viram-na a tomar morfina”, lembra.

Marta procurou que os filhos vivessem a partida da avó com naturalidade. E, ainda assim, há arrependimentos: “Arrependo-me de os meninos não terem ido ao funeral. Os dois mais velhos ficaram magoados comigo por não os ter levado. Eles dizem-me que, como não a viram morta, parece que é mentira.”

A importância de deixar a criança decidir

Este é um aspeto do luto sublinhado por Sofia Ramalho: a participação nos rituais fúnebres. A psicóloga considera que, “se a criança quiser participar no ritual, deve participar. Se não quiser, não se deve obrigar”. “Crianças de seis, sete ou oito anos já são capazes de tomar essas decisões. Deve-lhes ser dada essa oportunidade. Mas deve-se sempre explicar o que é e a intensidade com que são vividos esses momentos para que estejam preparados”, aconselha a especialista.

As filhas de Vanda, com seis e 11 anos, não tiveram essa oportunidade e a mãe não acha que fizesse grande diferença. Perderam os dois avôs em plena pandemia e as contingências da proteção contra a covid-19 ditavam que a presença em funerais devia ser muito limitada. Um dos avôs morreu precisamente de covid. Esteve internado até ao último dia e não se despediu das netas. O outro era um bisavô que tinha estado muito presente nas vidas das crianças, mas que estava institucionalizado e com visitas muito limitadas por causa da pandemia há mais de um ano. Também não houve adeus.

Mas Vanda procurou que a perdas fossem encaradas com naturalidade. “Cá em casa não há floreados. A morte é um assunto que faz parte da vida. Elas já têm idade para perceber que estar no céu é metafórico. A mais nova é muito emocional e pergunta muitas vezes pelo avô e porque é que ele não está cá. É mais de exteriorizar. Do nada, vai no carro e começa a chorar porque tem saudades do avô. A mais velha é mais explosiva num primeiro momento e depois interioriza mais. Respeitamos muito essas diferenças. Se sentir vontade de falar fala. Se não sentir também respeitamos isso”, conta Vanda, que diz já ter vivido “lutos suficientes para perceber que é um processo que temos de se ter ali muito arrumadinho”.

“Quando contei à mais velha do avô, andei mais de uma hora à procura das palavras. Disse-lhe: ‘olha, tenho uma coisa para te dizer que possivelmente te vai deixar muito triste e estás à vontade para desabafar e exteriorizar. Não há outra forma de dizer isto: o avô faleceu’. Ela chorou, gritou e depois interiorizou.”

Tem consciência que “nas crianças o que afeta mais é a saudade, saber que não o pode ir ver, porque ele já não está lá”. A despedida, essa, “não tem de ser obrigatoriamente num velório, num cemitério”. “Acho que é demasiado pesado para uma criança. Sempre há um arco-íris, uma borboleta, procuramos vê-los nesses sinais”.

Respeitar a individualidade e partilhar sentimentos

Vanda agiu como ditou o coração. Não há um modo certo ou errado de ajudar uma criança a lidar com a perda. É necessário respeitar a individualidade de cada um, sem nunca escamotear a realidade ou ocultar a verdade.

Deve sempre contar-se e essa conversa deve acontecer de forma contingente com o acontecimento. Não devemos deixar passar todo o tempo de rituais para depois contar à criança, por exemplo”, alerta Sofia Ramalho.

É importante que o luto seja vivido em família. O facto de a criança perceber que os adultos da sua rede de apoio também sofrem é importante para normalizar aquilo que sente. E os abraços e os afetos são mais importantes do que nunca. “A forma calorosa e sensível com que se vive esta circunstância em família é importante. Abraçar, chorar, estar presente é fundamental. Também não devemos forçar. Devemos pensar que cada um tem a sua forma de expressão do luto. O que importa é dar essa oportunidade a quem desses afetos necessita”, acrescenta a psicóloga.

Olga tentou nunca mostrar sofrimento à frente do filho de 10 anos. A criança perdeu o avô, vítima de cancro, e um tio, vítima de um AVC fulminante, em menos de três meses. Era neto único e os dois homens eram presença assídua e importantes referências na sua vida.

A forma como o menino viveu os lutos foi evoluindo ao longo do tempo: “Uma primeira fase foi de proteção para connosco. Acho que assumiu que tinha de cuidar de nós, muito preocupado se chorávamos. Depois teve a fase de querer fazer tudo o que o avô fazia, de ir ao supermercado e querer levar coisas que o avô comprava, mesmo que não gostasse. E eu deixava sempre comprar. Depois foi passando.”

“Tentei nunca chorar muito ao pé dele. O psicólogo perguntava-lhe, ‘mas a mamã chora?’ e ele dizia ‘Não, mas vejo nos olhos dela’”, conta Olga, que assume que foi de extrema importância ter procurado ajuda profissional para o filho.

A importância da palavra certa para a idade certa

Muitas vezes, é precisamente na ajuda profissional que está a chave para fechar a gaveta do luto. O apoio da família e da rede mais próxima pode não ser suficiente e arrumar sentimentos desta envergadura em idades tão precoces é fundamental.

Muitas vezes confundem-se adolescentes e crianças com adultos, mas não são. São adolescentes e são crianças. Aquelas expressões como ‘tens de ser forte’ ou ‘não podes chorar’ não devem ser usadas. Devemos é precisamente dizer que é normal chorar, que é normal estarem a sofrer. A criança mais pequena e o adolescente têm formas naturalmente diferentes de trabalhar esses sentimentos. O adolescente pode ficar mais revoltado, mais conflituoso e é necessário aceitar estas experiências de conflito e de revolta”, sublinha Sofia Ramalho.

Na verdade, a palavra certa para a idade certa é fundamental. “A partir dos seis ou sete anos, a linguagem deve ser objetiva. Usar expressões mais reais, mais diretas. Nas crianças mais pequenas, também podemos usar as expressões reais, mas usar também expressões comuns na família, para enquadrar essas expressões reais”, aconselha a psicóloga.

E se é que há conselhos que se podem dar de forma genérica para viver situações e sentimentos tão particulares, Sofia Ramalho resume os principais:

  • Partilha

O luto deve ser vivido em família e é importante a partilha de sentimentos. “É importante a conversa dentro da família. É fundamental que se encorajem perguntas e a expressão de sentimentos. Não se deve evitar estar com outras pessoas da família que também estão a sofrer, para evitar o sofrimento das crianças, por exemplo”, aconselha a especialista.

“O que não seria normal é passar por uma experiência de luto como se nada fosse. É normal haver dor”.

  • Dar à criança o poder de decisão

A criança deve ter poder sobre o que fazer e com quem quer estar. “Deve-lhe ser dada a oportunidade de tomar decisões sobre rituais, por exemplo, sobre a participação nesses rituais em família. Não se deve tomar decisões pela criança”, insiste a psicóloga.

  • Validar a dor e dar espaço para se exprimir

É importante reconhecer o sofrimento da criança e dar-lhe espaço para se exprimir, sem pressões e sem distrações. Um abraço e uma palavra de conforto como “eu sei que estás a sofrer” podem ser de grande ajuda.

A dor da criança é única e nem o pai, nem a mãe, nem qualquer outra pessoa sabem como ela se está a sentir.

  • Ser sempre verdadeiro

Dizer sempre a verdade à criança, adequando a linguagem à faixa etária. Só deve transmitir à criança aquilo em que realmente acredita: “As metáforas como ‘agora é uma estrelinha’ ou ‘está no céu a olhar por nós’ ajudam a criança a lidar com essas vivências. Mas se o adulto não acredita, se não é algo real para ele, não deve usar essas expressões com a criança.”

“Muitas vezes as crianças mais novas têm dificuldade em perceber a experiência de perda e culpabilizam-se face a essa perda. Pensam que podem ter alguma responsabilidade, que a pessoa desapareceu e pode ser por ter feito algo que tenha levado a isso e é preciso trabalhar esse sentimento de culpa também”, acrescenta a psicóloga.

  • Ser um exemplo

Os filhos são o espelho dos pais e vivem a vida à luz da sua experiência e dos seus exemplos. A psicóloga lembra que “a forma como os adultos lidam com as perdas é relevante”. “Se o adulto evita falar do assunto, se tenta esconder o seu sofrimento da criança, vai fazer com que a criança não se expresse ela própria emocionalmente, por exemplo”, explica Sofia Ramalho.

  • Antecipar o inevitável

A morte faz parte da vida e é o que se tem de mais certo. Por isso, é importante que se fale dela mesmo quando ela não atinge diretamente a família. “Falar sobre as experiências de vida ou de morte nas famílias, independentemente de já se terem vivido essas perdas ou não, é importante. Famílias que nunca falam de perdas têm mais dificuldade em lidar com uma experiência efetiva de perda.”

Relacionados

Patrocinados