Parecer sobre vacinação dos 5 aos 11 feito com dados errados sobre internamentos em Cuidados Intensivos

14 dez 2021, 07:00
Vacinação de crianças. Foto: AP

Afinal, houve mais crianças internadas nos Cuidados Intensivos por causa do Sars-CoV-2 do que as que constam no documento da Comissão Técnica de Vacinação. Ao todo, segundo um registo do INSA e da Sociedade Pediátrica dos Cuidados Intensivos, foram 30 as crianças encaminhadas para estes serviços hospitalares. "Isso mostra que a vacina é ainda mais benéfica", diz Carmo Gomes, um dos peritos que elaborou o parecer. Por esclarecer está a causa desta falha.

O parecer da Comissão Técnica de Vacinação para as crianças dos 5 aos 11 anos baseou-se em dados errados e desatualizados sobre os internamentos em Unidades de Cuidados Intensivos, o que pode alterar os valores definidos da relação de risco-benefício.

O parecer, que recomenda a vacinação, refere a existência de 20 internamentos em Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) por Sars-CoV-2 naquela faixa etária, desde o início da pandemia, mas afinal são 30, segundo o “Registo Nacional de Casos Pediátricos de Covid-19 com internamento hospitalar”. “Isso significa que a relação o beneficio ainda é melhor na sua relação com o risco”, reage Manuel Carmo Gomes, epidemiologista e um dos elementos que elaborou aquele parecer técnico explicando: “Nós dividimos os 20 casos por 217 que foi o número de crianças hospitalizadas para ver a percentagem dos que vão para os UCI, que ficou em 9,2%. Mas se forem 30 internamentos, então há mais crianças nos cuidados intensivos e percentagem sobe para 13,8%”. Ou seja, sublinha o especialista, “a vacina é ainda mais benéfica”.

A informação relativa aos 20 casos de internamento foi enviada para os elementos da comissão técnica pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde que regista os internamentos e altas nos vários hospitais do País.

Já os dados do “Registo Nacional de Casos Pediátricos de Covid-19”, chamado Epidecntre.pt, são da responsabilidade da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos Pediátricos e da Sociedade Portuguesa de Neonatologia, em colaboração com o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA).  

Cristina Camilo, presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos Pediátricos, confirma que, em “Portugal, desde 2 março existiram 30 crianças nos UCI”, tendo, aliás, a médica já enviado um email para a Direção-Geral de Saúde (DGS) a alertar para a diferença de valores entre os seus e os do parecer. “A base de dados dos cuidados intensivos é feita por nós, com o INSA e cada unidade regista os seus doentes. E a mim cabe-me confirmar que registaram bem”, detalha a especialista, garantindo que os dados que indicam 30 crianças entre os 5 e aos 11 anos em UCI são reais e verdadeiros.

Origem da falha por esclarecer

Nenhum especialista sabe explicar o que motivou esta diferença de números entre as várias instituições, podendo até ser um atraso no registo de dados no Ministério da Saúde.  

Certo é que a comissão técnica da vacinação da DGS, que teve de avaliar os riscos e benefícios da vacinação nas crianças, nunca teve nas suas mãos este documento com o registo que aponta para 30 crianças em UCI, apesar de uma das entidades que o elabora ser o INSA, tutelado também pelo Ministério da Saúde. E em causa está informação que pode alterar parte o parecer que causou polémica por inicialmente ter sido dado como sigiloso e que acabou por dividir a classe médica.

Manuel Carmo Gomes admite que ficou surpreso com estes novos dados de Cristina Camilo, uma vez que a 7 de dezembro, diz, a ouviu a falar na televisão e ficou com a ideia de que existiam números diferentes, mas no caso com valores muito inferiores aos de agora. “Nesse dia, a Dr.ª Cristina falou em quatro casos em UCI e eu achei estranho”.

Cristina Camilo, por seu lado, esclarece que estes quatro dizem respeito às crianças internadas em UCI apenas com Covid-19, e não contabilizam as outras 26 que desenvolveram o Síndrome Inflamatóra Multissistémica, uma inflamação de todo o corpo provocada pelo Sars-CoV-2, conhecida como MIS-C.

Toda esta situação mostra que a confusão que se instalou com a divisão entre os médicos quanto à vacinação das crianças, acabou por se alastrar à questão dos internamentos nos cuidados intensivos.  

Aliás, logo nos primeiros dias em que se começou a debater o tema da vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos, os dados focaram-se apenas na existência de quatro em UCI. Sabe-se agora que foram 30.

Esta diferença de números resulta do facto de se terem excluído todas as crianças e adolescentes que foram internadas nos cuidados intensivos com aquela síndrome MIS-C. Ou seja, a informação focou-se apenas nas crianças com apenas Covid-19 e não contou com as que desenvolveram este outro problema de saúde que também é provocado pelo mesmo coronavírus.

60 crianças e adolescentes nos UCI

Ao todo no país, segundo aquele registo Epidecntre.pt, desde que começou a pandemia, 74 crianças tiveram nos UCI por causa do Sars-CoV-2 e destas em 60 deveu-se ao MIS-C: 6 dos o aos 4 anos, 26 nos 5 aos 11 anos e 28 nos adolescentes dos 12 os 17.

"O número de casos que começaram a surgir com esta síndrome preocupou e preocupa os pediatras”, admite à CNN Portugal Cristina Camilo, garantindo que o número total de internamentos nos UCI por Sars-CoV-2 nunca foi escondido.

Aliás, o número de crianças que desenvolveram MIS-C é ainda superior aqueles 60, pois estes apenas dizem respeito aos casos que acabaram nos cuidados intensivos e não incluem os que se conseguem tratar sem recorrer a estes serviços.

Só no Hospital Dona Estefânia, por exemplo, e segundo Fátima Pinto, diretora do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, em Lisboa (do mesmo centro hospitalar do Dona Estefânia), já deram entrada, até dia 10 de dezembro, 62 crianças com MIS-C, tendo algumas ficado apenas na enfermaria.

“Até 70% das crianças com MIS-C podem precisar de cuidados intensivos”, acrescenta, por seu lado, Maria João Batista, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia Pediátrica e diretora clínica do Centro Hospitalar Universitário São João no Porto, onde 33 crianças deram entrada com MIS-C e 9nove tiveram de ir para os intensivos.

De acordo com aquele relatório (Epidecntre.pt), na idade dos 0-4 anos, registaram-se 11 internamentos em UCI relacionados com o Sars-CoV-2: seis devido ao MIS-C e cinco com covid-19. E entre estes, foi registado um óbito de uma criança com doença crónica. Já nas idades dos 12-17 anos, o novo coronavírus causou 33 internamentos nos Intensivos, tendo 28 sido originados por aquele síndrome.

Apesar de poder afetar adolescentes mais velhos e adultos jovens, de 20 anos, Maria João Batista garante que atinge em especial “crianças entre o ano de idade e os 14 anos, sendo mais frequente entre os 9 e os 12 anos”. Por isso, para a médica, este é um argumento a favor da vacinação desta faixa etária. “A forma de evitar o MIS-C é evitar a infeção com o Sars-CoV-2, pelo que todas as medidas que permitam diminuir a transmissão do vírus contribuem para diminuir o número de casos. Teoricamente, ao conferir proteção para o vírus, a vacina contribui para evitar o MIS-C”, explica, admitindo, porém, que ainda não há “dados concretos que permitam saber se é assim”.

É esta falta de dados finais que levam Cristina Camilo a ter uma posição diferente. “Vamos ver primeiro na faixa dos 12 ao 17 que já foi vacinada se há impacto na redução do MIS-C. Se houver, então faz sentido avançar com vacina nos mais novos”, defende, acrescentando que apenas se trata de “esperar” um pouco mais.

Mas para Fátima Pinto, diretora do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital do Hospital de Santa Marta não há razão para indecisões: “Sendo uma forma de Covid-19 não é mais do que uma estupidez dizer que a vacina não atua no MIS-C”.

Maria João Batista, por sua vez, lembra ainda que tendo em conta que a incidência nas crianças está a aumentar, isso pode traduzir-se num crescimento de casos deste problema de saúde: “Os dados que temos demonstram que a doença aumenta paralelamente ao número de casos positivos para Sars-CoV-2. Ou seja, em alturas em que há mais pessoas positivas, sobretudo crianças, é mais provável surgirem mais casos de MIS-C. Mas a proporção parece manter-se ao longo do tempo, desde o inicio”.

O primeiro caso de MIS-C detetado em Portugal ocorreu, no início de 2020, num adolescente de 14 anos que ficou internado no Hospital Dona Estefânia, adiantou Fátima Pinto, acrescentando que foi até referenciado para um estudo internacional da Associação Europeia de Cardiologia Pediátrica.

Esta doença rara tem sido, de acordo com as médicas, o grande problema do Sars-CoV 2 nas crianças e adolescentes. “A doença covid-19 típica dos adultos é muito rara nas crianças. Para percebermos o verdadeiro impacto da infeção pelo Sars-CoV-2 neste grupo etário temos que conhecer os números das formas da doença mais frequentes nas crianças, como o MIS-C”, explica Maria João Batista, sublinhando que a doença foi descrita pela Organização Mundial de Saúde pela primeira vez em maio de 2020, tendo sido desde aí identificados casos pelo mundo todo.

Quanto a Portugal, diz, surgiram “mais casos no final de 2020 e início de 2021, tendo sido os mais graves na fase inicial em que ainda não se conhecia bem a doença e a importância de a identificar e tratar rapidamente”.

O que é esta doença?

O MIS-C é uma doença “em que existe inflamação de vários órgãos, incluindo coração, pulmões, rins, cérebro e órgãos gastrointestinais”, explica a presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia Pediátrica, contando que “surge em algumas crianças e adolescentes que estiveram expostos ao vírus SARS-CoV2”.

O que não se sabe ainda é porque motivo “só algumas crianças desenvolvem esta doença". “Mas parece ser uma resposta inflamatória exagerada do organismo ao vírus, que acaba por ser prejudicial”, adianta Maria João Batista, lembrando que apesar de o MIS-C poder “ser muito grave, até fatal, “a maior parte das crianças melhora se a doença for detetada e tratada precocemente”.

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