Famílias que dão colo a crianças que um dia terão de deixar ir embora. "Enquanto cá estiver, é um de nós"

3 jul 2022, 08:00
Rosa Amado com quatro dos seus cinco filhos e o bebé Frederico

A Catarina e o Nuno e a Rosa e o João acolhem temporariamente crianças sem família ou cuja família está em processo de reestruturação. Sabem que, mais cedo ou mais tarde, terão de lhes largar a mão e deixá-los ir. Mas, enquanto os têm, não lhes negam colo: “Enquanto cá estiver, é um de nós”

As manhãs em casa da família Cardoso são agora mais agitadas. Há três meninas para acordar, dar o pequeno-almoço e preparar para ir para a escola. Além dos cabelos longos de Sofia e Maria para pentear, há agora os caracóis rebeldes de Mariana (nome fictício), que é preciso domar. Por isso, desde há um ano que as manhãs começam mais cedo em casa dos Cardoso. Ainda por cima, Mariana tem um acordar demorado.

“Vou lá, chamo, faço cócegas, dou beijinhos, dou colinho… Ela finge que se vai levantar, mas deixa-se ficar. Tenho de ter uma paciência…”, conta Nuno, que, juntamente com a mulher Catarina, acolheu Mariana.

A menina de cinco anos veio revolucionar os dias da família, mas, garantem, “não há um pingo de arrependimento”.

Nuno, Catarina e as filhas Maria e Sofia são uma família de acolhimento. Um recurso da Segurança Social para acolher crianças até as famílias de origem se reestruturarem e estarem prontas para as terem de volta, ou até seguirem para adoção. Nunca poderão adotar as crianças que acolherem. Sabem que, um dia, terão de lhes largar a mão, mas isso não os demove.

Crescimento familiar

Voltemos atrás na história, à infância de Catarina, para perceber como “esta aventura” começou. Catarina não esquece o dia em que a prima chegou à aldeia com as duas filhas gémeas que tinha adotado. Foram recebidas em festa pela povoação em peso. A experiência marcou-a para sempre e semeou nela o desejo de adotar uma criança quando fosse adulta. Cresceu e partilhou esse sonho com o marido Nuno.

“Da adoção sempre tive medo. Nem sei bem explicar de quê. Mas sempre foi uma ideia que me assustou”, confessa Nuno, um engenheiro de 45 anos que não fechou portas a outra soluções.

Catarina não desistiu e foi procurando soluções que encaixassem na sua família: “Cheguei a ver o apadrinhamento civil. E, em 2019, deparei-me com o acolhimento familiar. Ia na 2ª Circular e via os cartazes da campanha LX Acolhe, da Santa Casa da Misericórdia. Não sabia muito bem o que era e andava muito intrigada. Até que vi uma reportagem sobre o assunto e falei logo com o Nuno. A resposta dele foi logo 'Avançamos! Vê o que é preciso!'". 

Nuno e Catarina têm duas filhas e acolheram Mariana. (Imagem: arquivo família Cardoso)

Desde este primeiro passo até Mariana aparecer na vida desta família, decorreu cerca de um ano e meio. Depois de finalizada a candidatura a família de acolhimento, em maio de 2020, Catarina, Nuno, as filhas e a família mais próxima foram submetidos a entrevistas e sessões de esclarecimentos. Um processo enriquecedor, garantem:

“Foi um processo que nos deu muito e nos fez crescer muito. Fez-nos conhecer melhor a nossa família. Foi importante até para a nossa relação. Percebemos a importância que cada um de nós tem na vida do outro e quão bem nos conhecíamos mutuamente.”

O primeiro Natal com Mariana, ainda sem Mariana

Enquanto decorria o processo de seleção, as técnicas da Santa Casa da Misericórdia que acompanham a família foram “lançando umas sementinhas”. “Em setembro ou outubro de 2020, falaram-nos de uma ´Mariana muito trapalhona´. Começámos a gostar daquela menina ainda sem a conhecer. Em novembro, fui a uma feira dos brinquedos num hipermercado e comprei um unicórnio para a Mariana, sem sequer saber que ela vinha para nós. Já gostávamos tanto da Mariana que lhe quisemos dar um presente no Natal”, conta Nuno.

Mariana só chegaria lá a casa seis meses depois. Não é nada do que imaginavam e é tudo o que desejavam.

“Fazíamos apostas aqui em casa de como seria a Mariana fisicamente. Se tinha cabelo curto, comprido, liso ou aos caracóis... Não sabíamos nada dela. Chegou o dia de irmos à Santa Casa, ver a Mariana. Levaram-nos a ver os quartos e, em todos, havia fotografias das crianças que ali dormiam. Passámos a visita toda a pensar qual daquelas fotografias era a da Mariana. Foi uma ansiedade muito grande, porque era algo que desejávamos muito”, confessa Catarina.

A felicidade dos quatro era tanta que quiseram partilhar. Em plena pandemia, Mariana foi apresentada à família e aos amigos mais chegados, mesmo que apenas à varanda. Recebeu presentes e muitos abraços, ainda que à distância.

“É o nosso maninho”

Experiência idêntica vive a família Amado. Com quatro filhos biológicos, entre os três e os 11 anos, e uma filha adotiva de 27, tornaram-se família de acolhimento e receberam nos braços um bebé recém-nascido.

“Agora, enquanto cá estiver, é um de nós. Para os miúdos, é o ´nosso maninho´, sem esquecerem que ele se vai embora um dia. No dia-a-dia, isso não importa. O que importa é que está ali um bebé que precisa do nosso colo”, conta Rosa Amado, gestora de marketing, 38 anos.

Rosa tornou-se “mãe” temporária de um bebé que não gerou e cuja chegada a gravidez não preparou. Mas vive com resiliência as noites mal dormidas e todo o caos que um recém-nascido traz. “Podia ter tirado a licença de maternidade, que é um dos direitos da família de acolhimento. Mas, profissionalmente, não me dava jeito na altura. Então fiquei em casa a trabalhar full time, mas em teletrabalho. É evidente que a privação de sono foi difícil. Mas, se nós não acordarmos durante a noite por ele, quem vai acordar?”, pergunta.

Rosa Amado com o bebé Frederico. (Imagem: arquivo família Amado)

Agora, os planos que eram feitos a seis, são feitos a sete. A filha mais velha casou e já não vive com os pais. Mas, desde o jantar de domingo às férias em família, tudo envolve o pequeno Frederico (nome fictício). “Nós planeamos tudo a contar com ele. Mas com a consciência de que quando os nossos planos se concretizarem ele pode já não estar connosco, porque pode já ter regressado à família de origem ou ter sido adotado”, revela Rosa, que vai relatando o seu dia-a-dia na página do Instagram @rosinhananet.

Proibidos de adotar

Rosa e João sabem que não podem adotar Frederico, a quem deram a primeira colher de sopa, de quem ouviram a primeira gargalhada, que viram bater palmas ou gatinhar pela primeira vez. Nuno e Catarina sabem que não podem adotar Mariana e que, um dia, será a mãe biológica ou uma família adotiva a fazer o ritual do despertar matinal.

Esse é, aliás, um dos requisitos: para se ser família de acolhimento, não se pode ser candidato à adoção.

“Uma das razões é proteger a prioridade de famílias candidatas a adoção há muitos anos, que ficaria prejudicada. Prevenir que uma família candidata a adoção não se socorra do mecanismo acolhimento para ‘passar à frente de outros candidatos’”, explica Ana Gaspar, coordenadora do acolhimento familiar da SCML.

A criança acolhida não pode ficar para sempre com a família de acolhimento, mas também não lhe é arrancada dos braços, garante Ana Gaspar: “A transição de uma criança entre uma família de acolhimento e uma família de adoção é muito gradual. A criança acaba por não sentir que seja mais um abandono e a família de acolhimento, se assim o entender, nunca sai da vida da criança. Procuramos sempre que as famílias de adoção ou as famílias de origem integrem sempre a família de acolhimento na vida da criança.”

Não há um tempo limite ou sequer um tempo médio para a duração de um acolhimento familiar. A responsável da Santa Casa recorda um caso em que o acolhimento durou apenas duas semanas. “A mãe necessitava de uma cirurgia e não tinha a quem deixar o filho e colocámo-lo numa família de acolhimento durante o período de convalescença da mãe”, conta Ana Gaspar.

Um “crivo muito apertado”

Ser família de acolhimento é para quem quer. Para quem quer muito. Mas é também para quem pode. O processo de seleção é moroso, envolve várias etapas e, muitas vezes, leva a uma auto-exclusão. “Durante o processo, as famílias concluem que esta solução não é para elas. E está tudo bem”, diz Ana Gaspar.

Após uma candidatura, o casal é convidado a assistir a uma sessão de esclarecimento, onde todo o processo é explicado. Depois, vêm as visitas técnicas à habitação e o envolvimento da restante família. Foi assim com Maria e Sofia, as filhas biológicas de Nuno e Catarina: “Foi um processo muito pensado e gradual e elas participaram sempre. Houve sessões de esclarecimento direcionadas para elas. Foi crescendo devagarinho e elas reagiram muito bem.”

Agora, Maria e Sofia cumprem o papel de irmãs mais velhas e ajudam em toda a rotina de cuidados de Mariana.

O nível de exigência das entidades promotoras do acolhimento é bem encarado pelas famílias candidatas. “Nem podia ser de outra maneira”, asseguram.

“Até acho que esse nível de detalhe foi importante para nós termos a consciência da nossa rede de suporte, de quem eram e de como eram os nossos amigos”, conta Catarina, garantindo que nunca se sentiu invadida, apesar de toda a ansiedade que as visitas das técnicas da SCML lhe provocavam no início.

Quando a família candidata está aprovada, a entidade promotora, como é o caso da SCML, faz uma espécie de match com crianças a necessitar de acolhimento e que, normalmente, são sinalizadas pelas instituições onde residem ou pelas quais são acompanhadas.

“A família é referenciada para determinado perfil de criança e, quando há uma sinalização para aquele perfil, promovemos o encontro”, explica Ana Gaspar.

As famílias de acolhimento em números

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é uma das entidades promotoras de acolhimento familiar, um mecanismo utilizado pela Segurança Social para solucionar temporariamente a situação de crianças em risco, evitando a institucionalização. A SCML promove o acolhimento familiar desde 2019. Nestes dois anos e meio, já promoveu o colo temporário de 97 crianças. Dessas, 23 já viram o seu projeto de vida definido: foram adotadas ou regressaram à família de origem.

Há atualmente, só sob alçada da SCML, 75 famílias de acolhimento. Setenta e quatro têm atualmente crianças a seu cargo, três delas com grupos de irmãos, que “nunca são separados”.

As famílias de acolhimento não são abandonadas à sua sorte quando recebem uma criança. Contam sempre com a disponibilidade de uma técnica de serviço social e de um psicólogo “24 horas por dia” e têm reuniões de acompanhamento periódicas.

Se há deveres a cumprir, há também direitos. Desde logo, o direito a um apoio financeiro no valor de 1,2 vezes o indexante dos apoios sociais. Qualquer coisa como 526 euros. A este montante, acresce uma majoração de 15%, no caso de crianças até seis anos ou de crianças ou jovens com deficiência ou doença crónica.

A família de acolhimento tem ainda benefícios nas deduções do IRS e alguns direitos laborais garantidos. Têm direito a faltas para assistência à criança e, no caso de acolhimento de bebés até um ano, podem ainda usufruir da licença parental, como qualquer pai de recém-nascido. Pode ver toda a informação no site da Segurança Social

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