"Sou um daqueles pais malucos?" Como podem os pais manter o desporto divertido para as crianças

CNN , Matt Villano
11 set 2022, 15:00
O desporto juvenil oferece muitos aspetos positivos, mas a autora Linda Flanagan diz que a indústria precisa urgentemente de mudanças.

O desporto juvenil deve ser divertido, fortalecer o caráter e melhorar a forma física. No entanto, em muitos casos, também causa lesões, ansiedade social e problemas de saúde mental para os atletas e os pais.

A autora Linda Flanagan aborda esse enigma no seu mais recente livro, “Take Back the Game: How Money and Mania Are Ruining Kids' Sports - and Why it Matters”. Flanagan alega que a indústria do desporto juvenil, que vale 19 mil milhões de dólares, se tornou descontrolada, e esse é um problema grave, tendo em conta que cerca de 60 milhões de crianças e adolescentes norte-americanos, entre os 6 e os 18 anos, estão envolvidos anualmente num desporto organizado, segundo o Conselho Nacional do Desporto Juvenil.

Segundo Flanagan relata, a questão já foi muito além do mau comportamento dos pais nos bastidores. A conclusão dela? Embora o desporto juvenil tenha aspetos positivos, a indústria precisa urgentemente de perspetiva e de mudança.

Flanagan conhece bem os meandros do desporto juvenil. A autora de 59 anos, de Summit, Nova Jérsia, tem três filhos adultos, um dos quais gostava muito de desporto. Ela também foi treinadora de desporto feminino entre 2002 e 2019. A CNN conversou com Flanagan para discutir o trabalho dela e aprender mais sobre o que os pais podem fazer para garantir que os seus filhos se envolvam em programas desportivos juvenis, à maneira deles.

Esta conversa foi editada e condensada para maior clareza.

CNN: Quais são os pontos positivos do desporto juvenil?

Linda Flanagan: São tantos. O exercício é positivo. A cada semana, aprendemos mais e mais sobre como o movimento é essencial e, para as crianças, é muito importante que se comecem a exercitar enquanto são jovens. Desenvolver um compromisso vitalício com o movimento e o exercício. O desporto fomenta a camaradagem. Ensina sobre o trabalho em equipa. Numa época em que as crianças são obcecadas pela tecnologia, o desporto também as afasta dos seus telemóveis. O desporto oferece oportunidades para as crianças conhecerem outras crianças de outras origens. Nesse sentido, o desporto juvenil pode ser uma grande fonte de equilíbrio.

CNN: Que aspetos negativos surgiram em torno do desporto juvenil?

Flanagan: O desporto juvenil tornou-se um sistema baseado em classes. A participação é determinada pelo rendimento familiar. Quem tem um rendimento baixo, tem menos hipóteses de participar. Um terço das crianças de famílias com rendimentos baixos é inativa, não pratica qualquer desporto. Nesta extremidade inferior do sistema há muito pouca (participação), e na extremidade superior - entre as famílias que podem pagar - há muita participação. Existem vários tipos de equipas.

É uma situação de banquete ou fome: fome nas áreas de rendimentos baixos e banquete entre os de rendimentos altos. As famílias com rendimentos mais altos também tendem para a especialização desportiva numa idade mais jovem. Os pais começam a pensar (que) esta é a única forma de fazê-lo. E pressionam muito. Portanto, as crianças praticam demasiado e magoam-se, ficam esgotadas e acabam por querer desistir. Muitas crianças desistem antes mesmo de chegarem ao ensino secundário. Para eles, a alegria do desporto desapareceu.

CNN: Da sua pesquisa, o que está a corromper o desporto juvenil?

Flanagan: Identifico três grandes causas principais. A primeira é o dinheiro. O desporto juvenil é uma indústria enorme - uma indústria de 19 mil milhões de dólares. É mais do que a Liga Nacional de Futebol Americano, que (foi) estimada em 15 mil milhões (em 2019). A indústria do desporto juvenil cresceu 90% desde 2010. Isso significa que muitas pessoas estão a lucrar com isso.

A segunda causa é a mudança de perspetiva sobre a infância. Esta é uma mudança cultural. A dado momento, entre as décadas de 1970 e 1990, as crianças passaram de nossos “funcionários” para nossos “chefes”. A ideia daquilo que os pais devem fazer pelos filhos e aquilo que os filhos significam para os pais, mudou. Agora, o sucesso de uma criança no desporto juvenil traz consigo algum estatuto. Os meus pais não ligavam o estatuto deles ao desempenho dos filhos no desporto. Eles tinham as suas próprias vidas.

Pais e filhos podem estar demasiado envolvidos no desporto juvenil se a participação estiver a consumir a vida familiar. Robert Decelis Ltd/Stone RF/Getty Images

A terceira causa é a mudança nas faculdades e nas universidades. As propinas são tão altas, nos EUA, e há a ideia de que é mais difícil entrar nas melhores escolas. Ser um atleta pode ajudar a cobrir esses custos. (A Associação Nacional de Desporto Universitário distribui mais de) 3,6 mil milhões de dólares todos os anos em bolsas de estudo desportivas. É uma grande recompensa para as crianças que se destacam no desporto.

CNN: Como é que os pais são cúmplices neste problema?

Flanagan: Aquela secção do meio, o problema de as crianças terem passado de “funcionários” a “chefes” - esse é o grande problema para os pais. Hoje em dia, tudo o que os nossos filhos fazem parece ser refletir sobre nós. É difícil resistir à pressão de fazer tudo o que pudermos pelos nossos filhos. A maioria dos pais começa com boas intenções. O problema ganha vida própria quando as crianças começam a ter sucesso.

Os pais estão relutantes em admitir o quanto isto é importante para eles. Às vezes, até demasiado. Tornámo-nos demasiado envolvidos. É quando passa do amor pela criança à gratificação do ego dos pais. É quando priva o desporto juvenil daquilo que o torna divertido. Devemos ajudá-los no seu desenvolvimento, não ser os principais recetores das recompensas deles. É um caminho perigoso.

CNN: Como é que os pais podem saber se a sua própria obsessão pelo desporto juvenil se está a tornar descontrolada?

Flanagan: Os pais podem começar por questionar-se: “Sou um daqueles pais malucos? Como me sentiria se o meu filho decidisse parar? Ficaria destroçado? Quantos minutos demoro, numa festa ou quando me cruzo com alguém, para falar sobre o desempenho do meu filho no desporto?”. Todas estas são perguntas importantes que devem ser respondidas.

Se é daqueles que ficaria arrasado com a desistência do seu filho, talvez esteja demasiado envolvido. Se falar sobre as conquistas do seu filho antes de falar nas suas, talvez precise de se afastar. Segundo um estudo que analisei, 19% das (famílias) gastam 20 horas por semana ou mais no desporto dos filhos. Quando toda a nossa vida está a ser engolida pelo desporto juvenil, esse é um sinal de alerta. Estamos demasiado envolvidos.

CNN: O que acontece quando uma criança se especializa num desporto?

Flanagan: As maçãs fazem bem às crianças, mas se o seu filho quiser comer maçãs o dia todo, vai deixá-lo? Nem pensar. É demasiado de uma coisa só. Não é saudável que uma criança se especialize numa coisa. As crianças precisam de amplas experiências de desenvolvimento.

A especialização num desporto pode não ser boa para o desenvolvimento físico ou emocional, antes da adolescência. Maskot/Getty Images

Falei com muitos especialistas médicos e há um consenso absoluto entre eles de que a especialização desportiva não é boa para as crianças. Não é bom para o desenvolvimento físico e não é bom para o desenvolvimento emocional. Os treinadores universitários querem jovens que pratiquem vários desportos. Os melhores atletas praticam vários desportos. As pessoas que defendem isso são as que lucram com isso.

Não é do melhor interesse das crianças especializarem-se antes de serem adolescentes. Quando tiverem 14 ou 15 anos, talvez tenham idade suficiente para decidirem por si mesmos. Ainda assim, a maioria tende a ficar esgotada. Depois, há as consequências a longo prazo do exagero no desporto infantil.

Todos os anos, na minha cidade, ouço falar de meninas do ensino preparatório que romperam os ligamentos do joelho a jogar lacrosse. Normalmente, têm 12 ou 13 anos. Alguns estudos dizem que metade das pessoas que rompem os ligamentos do joelho terão artrite no espaço de 10 anos. Estamos a falhar em alguma coisa, aqui.

CNN: Qual é a solução? Como podem os pais “recuperar o jogo”, como diz o título do seu livro?

Flanagan: Ofereço quatro princípios para orientar os pais. O primeiro é olharem para os filhos e reconhecerem que o interesse e a paixão por tudo isto deve partir deles. Têm de ser eles a decidir o quanto querem jogar. Se for o adulto a exigir a participação desportiva, não vai acabar bem. Não significa que não os possamos incentivar um pouco, mas devemos permitir que, tanto quanto possível, sejam eles a tomarem as decisões.

O segundo princípio: mantenham a vossa família unida. A indústria do desporto juvenil vai tentar separar-vos. Se entrarem nessa onda, vão dar por vocês num fim de semana em que a mãe vai para Maryland para um torneio com um filho, enquanto o pai vai para Nova Iorque com outro filho. Não tem de ser assim. Comecem mais tarde, mantenham o desporto a um nível local e oponham-se às coisas idiotas. Os pais devem reconhecer que têm poder de decisão e têm de exercê-lo para se manterem sãos.

O meu terceiro conselho: tentem manter as coisas em perspetiva. Tudo no desporto juvenil parece sempre mais importante do que realmente é. Não é assim tão importante. Conversem com adultos mais velhos que já passaram por isso para terem algumas dicas. Imaginem como irão encarar esse dilema daí a cinco anos. Não faz mal o seu filho faltar a alguns jogos. Não faz mal se o seu filho quiser desistir.

Por fim - e isto é importante - os pais devem dar exemplos do que eles querem que os filhos aprendam. Muito disto tem que ver com seguir uma imagem positiva da idade adulta. Perdemos a noção daquilo que estamos a dar como exemplo aos nossos filhos. Tudo o que fazemos é cuidar deles. Não admira que eles não queiram crescer - tudo o que estamos a fazer é levá-los de carro a todo o lado e preencher todas as suas necessidades. Não tem de ser assim.

CNN: Como podem os pais ultrapassar as inevitáveis discussões sobre a redução?

Flanagan: Os pais não são impotentes. Podem proteger a sua própria família e cuidar dos filhos de uma maneira que lhes permita praticar desporto como os pais quiserem. Os pais não podem esperar que o sistema se corrija. Devem ser eles a travá-lo, a colocar a bandeira no chão e a dizer: “Não vamos fazer mais isto.” Muito disto tem como base a ansiedade e a preocupação com o futuro. Não faz mal os pais afastarem-se um pouco e deixarem as crianças serem crianças.

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