Regresso das audições ao caso das gémeas ficou marcado por contradições nos depoimentos da diretora de pediatria e da neurologista do Santa Maria que deu o medicamento e por um novo reforço ao depoimento de Carla Silva, secretária de Lacerda Sales
A diretora de Pediatria do Hospital Santa Maria confirmou, esta terça-feira, que foi contactada por telefone e por e-mail por Carla Silva “em nome do senhor secretário de Estado” Lacerda Sales para que fosse agendada uma “consulta de neuropediatria e avaliação clínica” às gémeas lusobrasileiras.
Ana Isabel Lopes, médica chamada à comissão parlamentar de inquérito ao caso das gémeas tratadas com Zolgesma por ser o elo de ligação entre o Santa Maria e a secretaria de Estado da Saúde, negou, porém, qualquer “insistência” junto da neuropediatra Teresa Moreno para que esta desse seguimento à marcação, contrariando o que foi dito pela própria na sua audição, onde mencionou, tal como consta no relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), que recebeu três telefonemas de Ana Isabel Lopes para que desse seguimento à marcação da consulta.
“Da minha parte não existiram esses telefonemas, não fariam sentido. Houve conversas entre os elementos intervenientes, mas não houve qualquer insistência. Porque haveria insistência?”, questionou a diretora de Pediatria, que, por várias vezes, quis “deixar claro” que “em momento algum a doutora Teresa [Moreno] manifestou qualquer oposição em relação à marcação” da consulta, apesar de a neuropediatra ter sido uma das signatárias da carta assinada por vários médicos a contestar o tratamento às gémeas. “A indicação terapêutica foi colocada pela doutora Teresa Moreno, a prescrição terapêutica foi feita na plataforma eletrónica pela doutora Teresa Moreno”, disse.
“Em momento algum ocorreu alguma manifestação de discordância em relação à marcação das consultas e em relação ao subsequente processo. Estes foram os factos. Os factos que testemunhei são estes e existem uma plataforma onde foram registados”, vincou Ana Isabel Lopes, numa declaração contestada pela deputada Joana Cordeiro, da Iniciativa Liberal, que questionou a médica se estaria a tentar imputar qualquer responsabilidade a Teresa Moreno, dando até a entender que a neuropediatra mentiu na sua audição, em novembro. “Não estou a tentar imputar nada”.
Mas as três chamadas de insistência não foram o único aspeto de discórdia entre os depoimentos de Ana Isabel Lopes e Teresa Moreno. A diretora de Pediatria nega ter dito à neuropediatra que o pedido de marcação vinha de alguém acima de Lacerda Sales e nega ainda ter ouvido no hospital rumores de que as gémeas eram tratadas como “as meninas do Presidente”, declaração também feita por Teresa Moreno. “Eu não digo que mentiu, eu digo o que corresponde à verdade”, atirou a diretora de Pediatria, vincando que “não disse” que a ordem da marcação vinha acima de Lacerda Sales, pois, repetiu, “não tinha conhecimento” para tal afirmação.
Após o contacto por parte da antiga secretária de Lacerda Sales, a médica Ana Isabel Lopes enviou ao diretor clínico Luís Pinheiro uma “mensagem por telemóvel a dizer que tínhamos uma solicitação” e reencaminhou “a mensagem da doutora Carla Silva, aguardando resposta e solicitando orientação”. Em resposta, contou durante a audição, “a orientação do diretor clínico foi no sentido de uma resposta positiva à solicitação”, isto é, com “concordância à marcação da consulta”. Se fosse hoje, faria o mesmo, garantiu, apesar de, à data, ter olhado com estranheza para a situação. “Reconheci a natureza atípica desta solicitação, senti o sobressalto cívico”, adiantou Ana Isabel Lopes, explicando que, por isso, teve de “contactar o meu superior hierárquico”, não apenas devido à “grande vulnerabilidade” da situação das crianças e à “importância de dar resposta”, mas “sobretudo porque era uma solicitação que vinha da tutela”. A médica disse mesmo não ter dúvidas da solicitação do ex-membro do Governo PS: “absolutamente, foi essa a minha interpretação”.
“Se voltasse atrás faria o mesmo, comunicaria ao meu superior hierárquico, precisamente porque é um contexto fora do que é expectável. Não me senti confortável [com a situação], porque era um contexto extra clínico [de referenciação]”, garantiu a médica, que admitiu que em “40 anos” de experiência, nunca tinha recebido um pedido semelhante. “Foi absolutamente excecional. Em 40 anos de serviço nunca tinha tido uma solicitação desta natureza, considerei-a atípica”.
Não houve triagem à marcação da consulta, mas ninguém ficou sem acesso por causa das gémeas
Ana Isabel Lopes vincou que, apesar de não existir “lista de espera”, não houve um cumprimento da portaria para a marcação de consulta. Esta ideia já tinha sido destacada pela médica Ana Sofia Moreira Sá. “No nosso serviço, não houve crianças que ficaram por tratar” após gémeas receberem o medicamento, assegurou a médica, cuja especialidade são as epilepsias.
Questionada se a regras para a marcação da primeira consulta foram cumpridas, Ana Sofia Moreira Sá disse que, “à luz das normas de hoje, não”, considerando que “devia ter sido registada no processo de triagem”.
A médica, que foi chamada a esta CPI na qualidade de responsável pela marcação de primeiras consultas no Hospital de Santa Maria e co-autora da carta dirigida ao então diretor clínico do Centro Hospital de Santa Maria a contestar o tratamento, começou a sua audição por negar qualquer envolvimento no processo, sobretudo na marcação da polémica consulta. “Não tive responsabilidade nenhuma nessa marcação”, disse a médica, adiantando que “as consultas [das gémeas] não foram triadas por nenhum dos médicos triadores”, deixando no ar que a marcação aconteceu à revelia das normas. A médica adiantou ainda que pediu detalhes aos administrativos do Hospital Santa Maria sobre a marcação de consulta das gémeas e que lhe foi dito que “não houve esse pedido no sistema de triagem”.
“Eu não me deparei com este pedido de consulta. O pedido foi feito à minha colega Teresa Moreno. Como foi feita a marcação não sei dizer, não passou por mim”, voltou a dizer a médica, reforçando que desconhece a origem do pedido. “Não sei por quem [foi feito]”.
Quanto ao facto de ter sido co-autora da carta dirigida ao então diretor clínico do Centro Hospital de Santa Maria a contestar o tratamento, carta essa que Ana Sofia Moreira Sá diz que foi assinada por “todos os médicos de neuropediatria nessa altura”, a médica explicou que apoiou a missiva por causa da “despesa” do medicamento, que “seria uma questão cada vez mais frequente”, referindo-se “a uma situação que já na altura percebemos que se ia colocar repetidamente, e, de facto hoje, em dia vivemos a braços com questões destas diariamente, de doentes que não sendo residentes em Portugal procuram os nossos serviços de saúde por vias que nos parecem menos oficiais e quisemos chamar a atenção para isso”.