As duas inspetoras frisaram que o alvo da investigação era o acesso e os cuidados de saúde prestados às gémeas e “não averiguar o funcionamento de um órgão de soberania”, rejeitando as acusações dos deputados
“Vou fazer uma investigação sobre o inverno e digo que o verão é muito quente” - é desta forma que André Ventura coloca a ausência de uma possível pressão política, sobretudo vinda da Presidência da República, no caso das gémeas luso-brasilerias tratadas no Santa Maria com o, à data, medicamento mais caro do mundo, o Zolgensma. E foram mesmo os rumores das “meninas do Presidente” e os e-mails trocados com o médico Levy Gomes o foco da audição desta sexta-feira às duas inspetoras da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde.
A audição ficou marcada por momentos de tensão da deputada socialista Ana Abrunhosa que, depois de a inspetora Maria de Lurdes Lemos ter dito: “Daquilo que percebemos, não houve aqui intervenção do senhor Presidente da República, foi informado ou foi questionado pelo filho e pronto. Mas esse não era o nosso objeto [de investigação], a Presidência da República” -, questionou: “Porque raio diz que não houve intervenção do Presidente da República?”. “Não tenho elementos nenhum [para justificar]”, admitiu a inspetora.
Maria de Lurdes Lemos disse que o papel da Presidência da República não era o objeto da investigação e negou qualquer pressão para proteger Marcelo Rebelo de Sousa ou o filho, Nuno Rebelo de Sousa. “Não tivemos qualquer intenção de proteger quem quer que fosse”, vincou a inspetora, que esclareceu que o relatório se focou na eventual pressão do ex-secretário de Estado Lacerda Sales por este ser funcionário do Ministério da Saúde, que tutela o SNS. Maria de Lurdes Lemos vincou ainda que o objeto da IGAS “não foi averiguar o funcionamento de um órgão de soberania”, mas sim “o acesso e prestação de cuidados de saúde”. Ainda assim, “ficamos com um vazio, com pontas soltas”, acusou a deputada Joana Cordeiro, da Iniciativa Liberal.
Quanto ao facto de o médico António Levy Gomes, coordenador da unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, não ter sido alvo de investigação, uma vez que há uma troca de e-mails com o Presidente da República, a inspetora Marta Gonçalves defendeu que o especialista foi inquirido e que entregou cópias da correspondência trocada com Marcelo Rebelo de Sousa e uma cópia do abaixo-assinado pelos médicos do Santa Maria sobre o caso, mas que, ainda assim, não suscitou dúvidas para que fosse investigado. “Essa interferência [de Levy Gomes] acontece, e todos esses contactos [com Marcelo Rebelo de Sousa] acontecem, posteriormente ao e-mail vindo da Secretaria de Estado [para o Santa Maria]”, justificou a inspetora Marta Gonçalves, a primeira a ser ouvida.
Sobre o facto de a assessora da Presidência da República, Maria João Ruela, ter contactado o Hospital Santa Maria para obter informações, inclusive sobre uma lista de espera, Marta Gonçalves defendeu que tal não resultou numa investigação porque já havia contactos com o hospital, referindo-se aos da Secretaria de Estado e que resultaram na marcação da consulta. “[Tal pedido de informação por parte da Presidência da República] Mereceria investigação se tivesse desencadeado por parte do Centro Hospitalar Lisboa Central algum tipo de atividade que permitisse a entrada das meninas no sistema, o que não se veio a verificar. Os contactos que existiam com o [Centro Hospitalar] Lisboa Central já existiam, continuam a ser trocas de informação, não há nenhuma evidência que o Lisboa Central tivesse diligenciado para marcar consulta, ponderado sequer o tratamento, porque nem sequer houve um pedido de consulta”, disse Marta Gonçalves, sublinhando: “Achamos que não ficou nada por investigar, conseguimos apurar o acesso e os cuidados de saúde.”
Já no que diz respeito ao Hospital Dona Estefânia, a inspetora Maria de Lurdes Lemos defendeu que esta unidade não foi alvo de uma investigação porque “as crianças não acederam, não beneficiaram de qualquer tratamento na Estefânia”, ideia também defendida por Marta Gonçalves. Mas, mais uma vez, houve acusações de a IGAS ter ignorado uma possível pressão política, “Não podem concluir que não houve uma interferência da Presidência da República no Hospital Dona Estefânia”, acusou a deputada da Iniciativa Liberal.
A inspetora Marta Gonçalves deixou claro que “não ficou nada” por investigar e Maria de Lurdes Lemos acrescentou que cabe agora ao Ministério Público averiguar o peso político que este caso pode ter tido. “Enviámos o que tínhamos para o Ministério Público, que fará a investigação que entender”, disse.
As duas inspetoras frisaram que o alvo da investigação era o acesso e os cuidados de saúde prestados às gémeas e sobre o primeiro ponto não hesitaram em apontar o dedo ao secretário de Estado da Saúde de então, António Lacerda Sales.
“Há uma irregularidade no acesso, as crianças entram no sistema de saúde não pela porta normal de entrada”, vincou Marta Gonçalves, destacando que, porém, não foi possível determinar se as gémeas tiveram algum tipo de atendimento especial no Hospital Santa Maria, onde tiveram a primeira consulta a 5 de dezembro de 2019 e a administração do medicamento em junho do ano seguinte. “A partir do momento em que as crianças entram e têm a primeira consulta, não conseguimos identificar que tenha havido um comportamento diferente”, explicou, adiantando que “as crianças eram elegíveis para o medicamento” e que apenas o acesso ao hospital apresentou irregularidades.
Quanto à polémica marcação da consulta - e que já levou a versões diferentes por parte do secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, e da sua secretária, Carla Silva -, Marta Gonçalves afirmou que, “das provas” recolhidas, “efetivamente, houve uma indicação superior [a Carla Silva] para que aquela consulta fosse marcada” e que o próprio Lacerda Sales reconheceu que Carla Silva não teria autonomia por, sem ordem superior, fazer o pedido de consulta, tal como Marta Temido e os respetivos chefes de gabinete. Quanto a quem deu tal ordem, a inspetora Marta Gonçalves defendeu que “o encadeamento dos factos” levou a IGAS a entender que o pedido de marcação de consulta veio de alguém acima do diretor clínico à data dos factos, Luís Pinheiro.
Na mesma linha de pensamento, a inspetora Maria de Lurdes Lemos destacou que “não foi o doutor Luís Pinheiro o promotor da consulta, mas sabendo da intervenção do secretário de Estado, não se opôs à marcação da consulta”.
“Temos uma série de documentação, temos depoimentos, é a junção de todos esses fatores que nos leva a concluir que houve uma intervenção do senhor secretário de Estado da saúde e que a consulta foi marcada pela secretária a seu pedido”, disse Maria de Lurdes Lemos, embora tenha reconhecido que “o senhor secretário de Estado de Saúde não assumiu que tivesse feito um pedido nesse sentido”.