Olá, pagamos €40 para sofrer. Por isso: na próxima greve deixem-nos entrar à borla (reportagem na linha de Sintra)

9 mar 2023, 22:00
Reportagem na linha de Sintra. Comboios, CP. Foto: Carolina Figueiredo/CNN Portugal

Sentem-se cansados de andarem sempre apertados, aos empurrões, às cotoveladas, enterrados no peito de alguém: a linha de Sintra é uma confusão por si só mas torna-se confusão ainda maior com as greves - como aconteceu há dias, quando os passageiros ativaram o travão de emergência num comboio sobrelotado porque não havia outros comboios para levar a gente toda de regresso a casa. A CNN Portugal foi ver como é um dia normal na linha de Sintra em vésperas de nova greve - marcada para esta sexta-feira. E normal é sempre anormal, dizem os passageiros, porque normal é nunca ter comboios suficientes nem condições dignas para a viagem. Ninguém questiona o direito à greve mas todos questionam o comportamento da CP - e pedem uma greve de zelo dos revisores, por exemplo, e pedem até mais: “Talvez a solução seja fechar isto tudo e abrir uma coisa nova, começar isto do zero”

Às seis da manhã de segunda-feira já há movimento na estação de comboios de Rio de Mouro. Um movimento lento, como que ainda embalado pela moleza de domingo: as bocas abertas em bocejos, meio escondidas pelos capuzes acolchoados; o polegar desatento a deslizar pelos ecrãs de telemóvel enquanto se fuma o primeiro cigarro da manhã. Antes de subirem à plataforma, vários passageiros fazem as primeiras paragens numa padaria e numa papelaria a meros metros das escadas de acesso à plataforma. “Vamos ver se é desta” – um homem de cigarro aceso no canto da boca pisca o olho e usa uma moeda para desvendar os segredos da raspadinha que acabou de comprar. Não foi desta. Abandona o cigarro e a lotaria adiada no lixo e entra no comboio.

Segundos depois, regressam outros passos já mais apressados e as vozes de quem sobe à plataforma com destino a Lisboa. “Então parece que sexta há greve outra vez?”, comenta uma senhora, de pé, voltada para a amiga sentada no banco. “Mais do mesmo”, recebe como resposta. Fevereiro, mês invulgarmente curto entre os restantes, teve metade da sua duração afetada por greves na CP e na IP – e serviços mínimos marcados por episódios dramáticos em comboios sobrelotados. Esta sexta-feira, os maquinistas voltam a contestar o impasse das negociações salariais entre sindicatos e administrações por sete dias, até 17 de março. Agora há passageiros que se questionam sobre se haverá serviços mínimos, outros começam a ponderar vias alternativas para cumprir o percurso obrigatório casa/trabalho-trabalho/casa. Mas as perturbações na circulação não são restritas aos dias de greve: mesmo neste curto período intercalado às paralisações, numa segunda-feira tão cinzenta e azafamada como o habitual, os utentes mantêm a insatisfação.

“Claro que as greves pioram tudo, mas o problema é recorrente. Não há luz ao fundo do túnel.” José Correia, vigilante, fala com o desencanto de quem percorre “há muitos, muitos anos” a linha de Sintra entre Rio de Mouro e Entrecampos. Reconhece que os comboios até são pontuais, mas que a frequência não consegue dar resposta ao enorme fluxo de trabalhadores que trabalham na Grande Lisboa e residem nas áreas suburbanas. “Na hora de ponta, em Entrecampos, não é suficiente haver comboios de 10 em 10 minutos porque vão sempre sobrelotados. A partir das 16:30 ou das 17:00 já não há lugares sentados e tem de ir toda a gente em pé, apertada, até pelo menos à Amadora.”

Mas José Correia é "privilegiado", como admite: tem carro e consegue assegurar as deslocações nos dias de maiores constrangimentos (embora, além da despesa com a gasolina, tenha de deixar algumas moedas no parquímetro da empresa). As greves, pelo menos, são anunciadas com alguma antecedência e permitem uma gestão mais eficaz dos recursos a utilizar nas migrações pendulares. As inconveniências que vão surgindo no quotidiano, sem aviso prévio, são bem mais disruptivas. “Uma vez cheguei à estação de Entrecampos e o último comboio tinha sido suprimido. Tive de ir para casa de Uber, que ficou por 20 euros. Não sou rico mas tive a possibilidade de pagar. E quem não tem, o que faria?”

Uma pessoa paga o passe para sofrer

O comboio para o Rossio, em Lisboa, parte com um apito estridente, mas Sandra deixa-se ficar no banco com as pernas cruzadas. Vai apanhar o próximo, com destino ao Oriente. Trabalha numa companhia de seguros no Saldanha e também está acostumada à imprevisibilidade da linha de Sintra, mas assevera que o episódio do comboio imobilizado entre Sete Rios e Benfica foi inédito. “Os comboios vão sempre cheios, isso é verdade, mas ali foi diferente. Toda a gente queria ir para casa e não sabia se ia passar mais algum. É que os táxis são inacessíveis para a maioria das pessoas e, apesar de haver outros meios de transporte, nem tudo chega aqui…”

Sandra tem razão. A expansão suburbana da segunda metade do século XX foi ocupando a periferia de forma tentacular, ao longo das principais vias de comunicação e eixos de acesso à capital. Muito em função dos caminhos de ferro, portanto, que em 2023 são ainda o meio de transporte privilegiado para fazer a ponte entre os locais de residência e os locais de trabalho. Se o desenvolvimento dos transportes suburbanos permitiu a maior facilidade destas migrações diárias e o encurtamento do fator distância-tempo, a verdade é que qualquer problema na sua funcionalidade (incluindo greves mas não só) tem consequências opostas. Os congestionamentos da linha de Sintra são disso exemplo: uma viagem de menos de meia hora entre Rio de Mouro e Entrecampos pode demorar o dobro do tempo, como Sandra diz ter acontecido recentemente a uma colega de trabalho.

Quanto a si, tem conseguido evitar as multidões por sair sempre de casa e do emprego mesmo antes do pico da hora de ponta. “Se me atrasar… É para esquecer. É tudo ao molho e fé em Deus. Uma pessoa paga o passe para sofrer.” Viajar por toda a Área Metropolitana de Lisboa fica a 40 euros com o passe Navegante Metropolitano – montante que já foi bem mais caro mas que muitos utentes consideram exagerado face aos constantes contratempos. E, com o novo aviso de greve, são inevitáveis os cálculos do valor que podia ser descontado ao passe, da gasolina para aguentar as deslocações pendulares da semana que aí vem, dos táxis que têm de ser chamados em último recurso.

A solidariedade entre trabalhadores torna-se explícita quando se aborda o tema da greve, mesmo que pertençam a diferentes sectores. O direito à greve é inviolável, sublinham todos os entrevistados em uníssono, para logo argumentarem que a luta pelos direitos de alguns trabalhadores não pode significar o abandono total dos outros que de si dependem. “Uma empresa pública deveria ter mais sensibilidade em lidar com estes problemas, coisa que não tem”, diz José Correia, com o anúncio da chegada iminente do comboio para Alverca a soar nos altifalantes por cima da sua cabeça. “Desloco-me nesta linha há muitos anos e sempre me senti ao sabor da vontade dos sindicatos, que só pensam no próprio umbigo e não nos utentes.” A pressão devia ser exercida sobre a administração da CP, “mas vamos ser sinceros: para eles é indiferente”. Com os comboios parados, reduzem-se também “o desgaste das composições, as despesas de manutenção, as despesas de eletricidade”. O principal lesado, garante José Correia, é o trabalhador comum que apenas quer chegar ao destino.

“Deixem vir toda a gente à borla”

Sandra e José partem em horários diferentes, com um desfasamento de cerca de 15 minutos. Se tivessem chegado a dialogar, teria sido uma conversa interessante: as propostas que apresentam para contornar o problema partem de raiz comum. “A melhor forma de protesto seria continuarem em funções, mas abrirem as portas e deixarem vir toda a gente à borla”, propõe Sandra. Sem saber, José Correia pega nesta deixa e desenvolve-a. “Os revisores poderiam fazer uma espécie de greve de zelo e não verificar os passes durante um mês.” Faz um trejeito com os lábios, como se a ideia lhe soasse insuficiente aos próprios ouvidos. “Ou talvez a solução seja fechar isto tudo e abrir uma coisa nova, começar isto do zero. Abrir um concurso para privatizar, não sei. Ouço falar que o Grupo Barraqueiro está interessado em explorar uma das linhas – podiam experimentar para ver no que dá. Só sei que assim não funciona. São 6:44 e a estação já está cheia de gente - imagine como vai ser na sexta-feira”.

O tribunal arbitral decretou serviços mínimos de cerca de 30% para a paralisação desta sexta-feira, que certamente não vão conseguir acolher todos os que dependem da circulação eficaz da linha. Um homem sentado atrás da multidão das 7:15 garante já ter a solução. “Vou fazer como de costume. Em vez de apanhar aqui, vou para Sintra e já venho sentado para Lisboa.” José Camacho fala entre baforadas no cigarro, prestes a iniciar mais um dia de trabalho num hotel no Rossio. “Aqui passam cinco ou seis comboios e não consigo entrar em nenhum. E se consigo vou todo apertado, com pessoas a respirar e a tossir para cima de mim.” Esmaga o cigarro contra o cinzeiro da estação. “Não percebo: tanta preocupação com o bicho e agora ninguém passa cartão”. De facto, a viagem entre Rio de Mouro e Agualva-Cacém lembra a “normalidade” descontraída de que já não se usufrui em pleno há mais de três anos. As carruagens vão cheias, mas são poucos os que ainda cobrem o rosto com máscaras.

Rio de Mouro, Agualva-Cacém e Massamá-Barcarena são as estações em que entram mais pessoas com destino a Lisboa. Só a partir de Entrecampos é que os passageiros seguem mais confortáveis e, quiçá, arranjam um lugar sentados - até lá, a maioria segue em pé e desamparada. Foto: Carolina Baltazar/CNN Portugal

Cansados dos empurrões, das cotoveladas (e falem dos autocarros, disso ninguém fala)

As portas abrem-se em Agualva-Cacém e desvendam um grupo de quatro raparigas que estendem os pescoços, espreitam para dentro da carruagem e entreolham-se em hesitação. Por fim, com o aviso do soar de portas, voltam a sentar-se.

“Íamos apanhar este comboio, mas como está cheio preferimos esperar pelo do Rossio”, explica Mariana, apoiada pelos acenos de cabeça das restantes raparigas. Estudam no Instituto Universitário Egas Moniz e ainda vão ter de atravessar o rio para Almada, mas preferem chegar atrasadas do que começar o dia com cotoveladas dos outros passageiros. Frequentar a universidade é desgastante o suficiente, dizem: “Para quem estuda, é cansativo ainda ter de vir em pé e levar empurrões. As pessoas não têm paciência nenhuma. Se não conseguirem entrar, pronto, que venham no próximo.” Ana, a estudante ao lado, interrompe a colega e intervém em defesa tímida daqueles que, tal como elas, só querem chegar ao destino sem demora. “Nenhum de nós quer perder tempo, não é?” E, por vezes, não se trata apenas de um desejo. Há horários e responsabilidades a cumprir, como ir buscar os filhos à creche ou aplacar um patrão intransigente.

Contam que as horas mais problemáticas são das 6:40 até às 9:00, da parte da manhã. O relógio marca agora as 7:30, mas esperam que o comboio para o Rossio venha um pouco mais vazio e que, na hipótese mais favorável, até garanta quatro lugares próximos. A viagem de regresso, por volta das 18:00, é sempre a mais complicada. Os comboios passam, sujeitos a um atraso ou outro – mas passam. “Só que, lá dentro, é para esquecer: na hora de ponta vamos sempre como sardinhas em lata.”

Se os comboios passam, e muitas vezes com a regularidade prometida, o que está em falta? Como explicar a certeza de um regresso a casa invariavelmente desconfortável, de ar saturado pelas respirações e suor alheios? “Eu acho que há demasiada gente para a oferta de comboios. É que se houvesse um comboio de dois andares…”, diz Mafalda, a única do grupo que vem trajada. “Sim, sim, o de Alverca costumava ter dois andares”, confirma Inês. “E nós vemos que na Fertagus há espaço, mesmo quando é hora de ponta e até vão pessoas em pé. Há sempre espaço.”

As jovens fizeram bem em esperar: o comboio para o Rossio vem menos apinhado e as quatro entram juntas para a carruagem do meio. Do outro lado da plataforma, também o comboio para o Oriente começa a partir. Uma mulher corre com a respiração ofegante e ainda tenta pressionar o botão, mas as portas não reabrem. Senta-se, derrotada, antes de se apresentar com um sorriso: chama-se Joana, cuida de uma idosa, e faltam-lhe apenas duas paragens para chegar a Monte Abraão.

O sobrolho franze-se quando repara no gravador de voz e na identificação com o logótipo da CNN Portugal. “Está a escrever um artigo sobre os comboios? Então fale também sobre os autocarros, porque disso ninguém fala.” E vai lamentando, mal recupera o fôlego: são as filas intermináveis, são os autocarros que enchem e obrigam a esperar “duas, três horas” pelo próximo, é a articulação deficiente entre um serviço de transporte e outro.

“Venho de Angola e a rede de transportes lá é péssima. Há quem diga que Portugal, atualmente, é a segunda África.” E concorda? Joana encolhe os ombros. “É… Faz lembrar. Há sempre dificuldades, apesar de pagarmos o passe todos os meses. Além desses 40 euros, também gastamos em Uber quando há greve ou atrasos. No final no mês, quanto gastamos?” Ouve o tremor dos carris ao longe e começa logo a levantar-se para tentar evitar o mesmo desfecho de há pouco. Despede-se com um aceno de mão e desaparece por entre o grupo de pessoas que se afunila na entrada para a carruagem, mas não antes de dizer: “do jeito que isto está”, se calhar vai começar a ir para o emprego a pé.

Volte a meio do mês, aí sim não se consegue respirar

Os dias de inverno parecem alongar-se com a chegada de março e a prova é a luz natural que ainda abunda na estação de Entrecampos. Pouco passa das 18:00 e as plataformas enchem-se com trabalhadores, estudantes, adolescentes, adultos, idosos. A linha número dois, a que liga Lisboa-Oriente a Sintra, é a mais agitada.

Quando os comboios travam e os segundos de portas escancaradas começam a contar, ninguém hesita. Quem está na plataforma avança logo com um pé confiante para o degrau da carruagem, mesmo que colidindo com aqueles que tentam sair, só para tentar assegurar um lugar sentado. Ou, pelo menos, amparado em alguma extremidade do comboio. Os que insistem numa fila ordeira vão ficando para trás e, se conseguirem entrar, nem sequer às pegas de apoio conseguem chegar. Vão amparados pelos corpos em redor.

“Isto não é nada. Volte a meio do mês: aí sim, não se consegue sequer respirar.” Catarina Desterro trabalha num restaurante na Avenida de Berna há três anos e sabe que, nos primeiros dias de cada mês, muitos trabalhadores optam por ir de carro para o emprego e os comboios seguem mais leves. Nunca verdadeiramente confortáveis, porém, como o dia de hoje é exemplo.

Admite que haveria espaço para si naquele comboio mas teria de ir “enterrada no peito de alguém” ou “sufocada pelas mochilas que, pelos vistos, toda a gente traz às costas”. Faz questão de ir sentada ou apoiada nas paredes do comboio, nem que para isso tenha de esperar pelo próximo. “O stress do trabalho já é suficiente. Não preciso de mais ansiedade no caminho para casa”, diz enquanto vai inserindo moedas na máquina de venda automática para tirar um cappuccino.

Os rostos do final de dia em Entrecampos são mais vincados do que os da manhã em Rio de Mouro. Terminado o horário laboral, pesa agora a consciência de que parte do horário de lazer será passado em transportes fechados que não permitem um simples espreguiçar. “E que nem sequer têm wi-fi, diga-se de passagem.” Catarina já viveu em três países europeus, incluindo o de nascença, e pode atestá-lo: as infraestruturas portuguesas são incomparáveis às francesas e às suíças. Falta-nos a eficiência, a segurança, a pontualidade.

Em direção a Sintra, os comboios chegam a Entrecampos já com todos os lugares sentados ocupados. Os passageiros têm de encontrar espaço nos lugares em pé para si próprios, para os outros que também querem entrar, para mochilas, para trolleys, para carrinhos de bebé - e ainda deixar espaço. Em Sete Rios, a estação seguinte, entra outra multidão. Foto: Carolina Baltazar/CNN Portugal

“Veja: era suposto ter vindo às 18:17.” Aponta para o relógio digital por cima das escadas rolantes que marca as 18:19 a vermelho, com o comboio já a surgir ao longe. Mas será que dois minutos fazem assim tanta diferença? “Claro que fazem. Basta dois minutos de atraso para já não conseguir apanhar o autocarro na Portela de Sintra e depois é mais meia hora à espera.” Não teve oportunidade de acabar de beber o cappuccino e leva-o consigo quando se dirige para os degraus do comboio mais espaçoso, embora já irremediavelmente atrasado.

“Mas é precisamente isto que está errado com o nosso país. Vamos supor que o atraso não faz diferença nenhuma na minha vida. É por isso que devemos tolerá-lo? Porque é que não somos como os japoneses, que pedem desculpa quando o comboio parte com um único minuto de atraso?” Catarina encontra uma vaga na esquina do comboio e levanta o polegar, triunfante, antes de pedir licença para passar. Na entrada para outra carruagem, três pessoas ajudam uma mãe a levantar um carrinho de bebé.

Sílvia, de 22 anos, chega antes do comboio emitir o aviso final e partir. Mas não tenta sequer entrar. Vai direta para os bancos e leva a mão ao bolso, à procura do telemóvel que a vai entreter nos dez minutos que faltam para o comboio seguinte. “É uma rotina cansativa mas pelo menos é temporária.” Em paralelo à licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, está também a tirar a carta de condução na Amadora.

“Antes de entrar na faculdade, cheguei mesmo a acreditar naquelas políticas de sustentabilidade e mobilidade limpa. Até disse aos meus pais para venderem o carro antigo porque nunca iria aprender a conduzir.” Eram tempos diferentes, em que fazia a pé o caminho para a escola secundária e não vivia de perto a realidade dos transportes públicos da linha de Sintra. Agora? “Agora já só quero chegar a casa.”

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