Estive com uma pessoa, entretanto ela disse-me que tinha covid: fiz um teste mas deu negativo. Será que ganhei algum tipo de imunidade?

5 jun 2022, 09:00
Teste covid-19. Eric Lee/Bloomberg/Getty Images

A imunidade sem se ficar doente é “o cenário de sonho”. E depois há aquela pergunta: o que pode justificar não se ficar infetado quando se está com pessoas que pouco depois testam positivo?

Jantou com um familiar que dias depois ficou com covid-19 e ainda assim você continua a testar negativo? Alguns dos seus colegas de trabalho têm ficado doentes e mesmo assim continua a escapar à infeção? Se estes cenários lhe parecem familiares, fique a saber que estar com pessoas pouco antes de estas ficarem infetadas e mesmo assim não ter covid-19 não confere imunidade.

“A pessoa só adquire imunidade se entrar em contacto direto com vírus”, começa por explicar Miguel Castanho, investigador no Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa, frisando que a proximidade aumenta o risco de isso acontecer mas não implica que deixe a pessoa logo à partida infetada.

A imunidade conquista-se quando o sistema imunitário fica munido de anticorpos e para que haja anticorpos é necessário que o organismo esteja em contacto com o vírus, que fique ‘infetado’ por ele. E isso pode acontecer de duas formas: contágio, que causa infeção, ou vacinação, reitera Vítor Laerte, médico infecciologista no Centro Hospitalar de Setúbal, que destaca que a própria imunidade - seja natural ou adquirida - tende a “decair com o decorrer do tempo”. Mas quanto à imunidade por mero contacto próximo não tem dúvidas: “Não, se a pessoa não tem o vírus não adquire imunidade”.

“O que confere imunidade são as vacinas e a infeção natural, em que o vírus está nas mucosas e na via aérea respiratória”, frisa o infecciologista.

Num artigo assinado no site da The Atlantic, também o médico James Hamblin aborda esta questão e descreve a imunidade sem se ficar doente como “o cenário de sonho” mas destaca de imediato que a questão é bem mais complexa do que possa parecer e que essa possibilidade é improvável, assim como nem todos os anticorpos da covid-19 são iguais - e isso tem impacto direto na dita imunidade.

“Uma breve exposição a uma pequena quantidade de vírus num supermercado pode ser suficiente para tornar o seu teste de anticorpos positivo, mas parece menos provável que confira proteção significativa e duradoura do que se tivesse um caso grave de covid-19”, explica o médico norte-americano especializado em saúde pública e medicina preventiva.

O que pode justificar não ficar infetado quando se está com pessoas que pouco depois testam positivo? 

Segundo Vítor Laerte, esta é ainda a questão para um milhão de euros. “Pode ser a imunidade da própria pessoa, pode essa pessoa ter tido uma infeção assintomática e não saber”, diz, levantando o véu a algumas hipóteses, mesmo sabendo que as reinfeções são agora uma realidade mas muitas vezes assintomáticas. “Nas doenças infecciosas há pessoas que não são infetadas de todo por falta de um recetor, por exemplo”, continua, mas destaca: “o motivo real para isto acontecer ainda está a ser estudado”.

Para Miguel Castanho, o fator risco nem sempre se traduz em infeção, nem mesmo quando há proximidade. “Estar no mesmo local pode potencialmente deixar a pessoa exposta ao vírus, mas não quer dizer que haja passagem do vírus”, isto é, contágio, diz o investigador.

Além disso, tal como a CNN Portugal já tinha noticiado, são muitos os fatores em jogo que podem contribuir para a ‘habilidade’ de se escapar à infeção. E as possibilidades vão da pura sorte, como destacou o também investigador do IMM Miguel Prudêncio, a um sistema imunitário mais capaz - e as células T e B parecem ser a chave, segundo um artigo da Nature -, da dimensão da carga viral ao estado vacinal da pessoa que esteve ‘em risco’, por exemplo. 

A transmissão do SARS-CoV-2 dá-se através da “disseminação de gotículas respiratórias produzidas quando, por exemplo, uma pessoa infetada tosse, espirra ou fala e podem ser inaladas ou pousar na boca, nariz ou olhos de pessoas que estão próximas”, diz o Serviço Nacional de Saúde no seu site, mencionando uma distância igual ou inferior a dois metros. A transmissão indireta dá-se “através do contacto das mãos com uma superfície ou objeto contaminado com o vírus e que, em seguida, contactam com a boca, nariz ou olhos, ou através de inalação de aerossóis contendo o vírus”.

Imunidade à parte, o mais provável é que fique infetado

Antes da chegada da Ómicron, as vacinas e infeções prévias eram vistas como principais escudos-protetores - uma combinação chamada superimunidade. Mas a verdade é que esta nova variante veio mudar as regras do jogo e trazer as reinfeções para a equação. 

Embora o aumento dos contágios esteja, à sua maneira, a contribuir para a imunidade de cada pessoa infetada, ainda é uma incógnita quanto à sua eficácia face a variantes futuras, o que mostra que até a imunidade natural tem os seus limites, o que ajuda a entender as reinfeções que têm surgido com as novas variantes da Ómicron. Um recente artigo da revista Science, publicado em maio, diz que as três novas variantes “têm mutações que alteram um aminoácido-chave chamado L452, o que pode ajudar a explicar a sua capacidade de evitar a imunidade". "O L452 faz parte do domínio de ligação ao recetor, a parte da proteína spike que se prende às células, permitindo a infecção.”

Segundo Miguel Castanho, tendo em conta as características da Ómicron e a sua rapidez de transmissão e contágio, o mais provável é que, num contacto de proximidade como os exemplos acima mencionados, a pessoa fique também infetada ou reinfetada - e aí, sim, ganha alguma imunidade porque contraiu o vírus. 

“A transmissibilidade é muito elevada, cerca de quatro vezes superior às variantes iniciais”, o que aumenta a probabilidade de a pessoa não escapar à infeção, seja a primeira ou uma reincidente, afirma o investigador.

“Esta variante [Ómicron] tem um potencial de transmissibilidade muito maior, é muito pouco provável que uma pessoa não fique infetada, mesmo que já tenha tido covid com outras variantes, mas o mais certo é que tenha uma infeção mais leve e ligeira”, destaca também Vítor Laerte.

As vacinas continuam a ser uma forma de bloqueio para o risco de se desenvolver doença grave (independentemente da variante em causa), mas pouco ou nada fazem na hora de travar uma infeção ou contágio, sobretudo perante a Ómicron e mutações do vírus. 

“Os vírus sofrem mutações, adaptam-se e mutam. É como o vírus da gripe: a pessoa pode ter gripe várias vezes, o vírus muta e a pessoa passa a não ter imunidade completa. A parte boa é que a forma grave [de doença] é menos provável”, refere o infecciologista e professor auxiliar na Universidade de Lisboa, que diz ainda que a queda de imunidade “não é uma coisa 100% segura de que tenha um impacto negativo”, sobretudo face a uma variante como a que agora domina, que é mais contagiosa mas menos penosa para a saúde.

O investigador explica que “os anticorpos da vacinação funcionam por complementaridade de fórmulas, de encaixe". "Quando há mutações as formas do vírus mudam um bocadinho e o encaixe dos anticorpos não é tão bom, perdem um pouco de eficácia na ligação ao vírus com a chegada de novas variantes.” Mas Miguel Castanho não hesita em dizer que, mesmo assim, ajudam na proteção do desenvolvimento de doença moderada a grave.

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