EFEITO INVISÍVEL | Não há nada como a morte, o medo ou a insegurança para nos fazer dar valor à vida. A pandemia compilou tudo. E, se trouxe ao de cima muito trauma que parecia arrumado, também revelou novas preocupações no que respeita à saúde mental. Cinco anos depois, o diagnóstico é rápido: estamos piores. Menos tolerantes, mais propensos ao conflito. Com um SNS incapaz de dar resposta, o consumo de antidepressivos e de ansiolíticos bate recordes. Há mais casos graves a chegar às urgências dos hospitais, incluindo de tentativas de suicídio, algo que poderia ser evitado se antes tivesse havido apoio psicológico, dizem os especialistas. É sobretudo nas crianças e nos jovens que a saúde mental foi mais afetada pela covid-19. E há efeitos que só vamos conseguir ver quando esta geração chegar à idade adulta. Os pediatras estão a identificar, em consultas de rotina, mais casos de sofrimento mental
Nota do editor: se você ou alguém que conhece está a debater-se com pensamentos suicidas ou questões de saúde mental, procure apoio especializado ou recorra aos contatos disponibilizados no final deste artigo.
Nada abala mais a vida do que a morte de um filho. Quando Jackson Varjão recebeu a notícia, em 2018, percebeu que aquele momento era um peso demasiado grande para carregar sozinho. “Tornou-se um desafio claramente muito grande para mim. Foi ali, pela primeira vez, que percebi que precisava de um apoio tanto psicológico quanto psiquiátrico”.
Não era a primeira vez que Jackson, hoje com 42 anos, olhava para a sua saúde mental. Os episódios de bullying durante a escola deixaram marcas profundas, daquelas que só o tempo ajuda a revelar. “É expetável que, enquanto homens, nos resolvamos. Então nunca sabemos se pedir ajuda é expor uma limitação ou se simplesmente temos de nos resolver sozinhos”.
Jackson nasceu no Brasil, em São Paulo. Só depois da pandemia de covid-19 é que se mudou para Portugal para começar uma nova vida. E uma nova vida implicou também um novo emprego. Neste caso, como gestor de engenharia de software na Volkswagen Digital Solutions, empresa onde também encontrou soluções e recursos no que respeita à saúde mental - e onde tem sido uma “voz ativa” nesta matéria, inclusive em palestras para os colegas.
“No trabalho, encontramos um propósito. Podemos impactar a vida de outras pessoas. Sobretudo porque este tema continua a ser um tabu ou a ser visto como uma fraqueza”, conta.
Pandemia: trazer ao de cima o que parecia arrumado
A pandemia de covid-19, para Jackson Varjão, foi uma fase que acabou por trazer cima muita coisa que parecia arrumada no passado. O stress, a mudança de rotinas, a incerteza quanto ao futuro. E a vida que insistia em não se organizar.
“Tive covid-19 de uma forma moderada para forte. Isso mudou a forma como funciona o meu sistema nervoso. Tive burnout, crises de ansiedade, quase de pânico”. E há coisas que, por mais que o tempo passe, por mais que a “normalidade” tenha regressado, ficam embrenhadas na pele. Ou melhor, na cabeça.
“Na semana passada, a minha esposa disse-me para irmos ao teatro. O meu primeiro impulso foi ficar em casa. A minha primeira vontade é de me isolar, de ficar com os meus em segurança”, exemplifica.
Diagnóstico: estamos piores (e porquê?)
Este não é um caso isolado, bem pelo contrário. Cinco anos depois da pandemia, o diagnóstico sobre o impacto que teve a covid-19 é complexo, mas relativamente simples de traçar. “Há muita gente que ainda não se libertou da máscara, não se libertou do medo, não conseguiu retomar a sua vida”, descreve a psicóloga Catarina Lucas.
Contudo, o impacto vai muito para lá destes sinais que permitem uma associação direta com a pandemia. Os especialistas ouvidos pela CNN Portugal são unânimes: no que respeita à saúde mental, estamos piores, embora mais conscientes sobre a sua necessidade.
“Globalmente, estamos piores. E é uma coisa que se sente muito na nossa prática clínica: um aumento do sofrimento mental provocado ou exponenciado pela pandemia”, resume o psiquiatra João Pedro Lourenço, que trabalha no Hospital de Santa Maria em Lisboa e é membro da Sociedade Portuguesa de Psicossomática.
Certamente que já identificou – e comentou – alguns sinais entre as pessoas que conhece ou sobre os comportamentos no trânsito. O retrato feito por Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos, traz uma visão especializada sobre essa sensação. “Temos pessoas que estão nos seus locais de trabalho mais insatisfeitas, temos conflitos que surgem com muito mais facilidade, porque as pessoas estão mais impacientes, têm menos tolerância”.
E isso, avisa Catarina Lucas, também tem impacto nas próprias relações amorosas: “Estamos muito menos disponíveis para trabalharmos em conjunto com outra pessoa numa relação, num projeto de vida. É mais fácil sairmos e libertarmo-nos desse peso que estamos a sentir, que muitas vezes seria temporário, porque todas as relações têm crises”.
A “sorte” de ter ajuda ao pé
Muitas vezes passamos a vida a cuidar dos outros. Esquecemo-nos de olhar para nós. Foi exatamente isso que aconteceu com Mariana Madeira Rodrigues, hoje com 51 anos. Quando a pandemia de covid-19 se instalou em Portugal, dedicava-se à Terra dos Sonhos, associação focada no bem-estar de crianças com doenças crónicas, graves, algumas em estado terminal.
“Enquanto empreendedores sociais, temos uma personalidade de dar muito aos outros. E esquecemo-nos de nós. Diria que o primeiro momento, em que percebi que, de facto, tinha de tratar da minha saúde mental, foi tarde. A pandemia trouxe-me uma oportunidade de olhar para mim”, conta.
“Tive a sorte de estar numa organização que me foi permitindo ter esse apoio de especialistas que trabalham para o bem-estar e para a saúde mental dos outros. Foi uma sorte muito grande poder ter passado a pandemia com estas ajudas”. Ajudas, no plural. Porque Mariana encontrou também refúgio na Casa do Impacto, a incubadora de empresas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que durante a pandemia criou um programa de saúde mental – o Target - para este ecossistema do empreendedorismo, muito marcado por tentativas falhadas e frustrações.
Uma das coisas que Mariana Madeira Rodrigues guarda com mais carinho desses dias foram as sessões de partilha em grupo.
SNS a falhar (e o “risco para a saúde pública”)
Os especialistas não hesitam em classificar a pandemia de covid-19 como o “maior desafio de saúde mental” do último século. “Uma adversidade extrema”, classifica a pedopsiquiatra Inês Pinto, que trabalha no Hospital Beatriz Ângelo e no Hospital da Luz.
Com a pandemia, não faltaram promessas de mais psicólogos, de linhas de apoio e de respostas de proximidade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Segundo os especialistas, demoram a chegar. E quando chegam, são insuficientes para as necessidades, que são crescentes.
“O número de psicólogos que temos em Portugal [no SNS] é manifestamente reduzido”, lamenta a bastonária da Ordem dos Psicólogos. Vejamos os números: no país existem cerca de 27 mil psicólogos, mas apenas 1.200 estão integrados no serviço público. Nos centros de saúde, a resposta de maior proximidade, não vão além dos 350.
“Estamos a falar de listas de espera para a primeira consulta de seis meses, às vezes um ano. Pior do que este tempo de espera são, depois, os espaçamentos entre consultas, já depois de iniciada a primeira consulta. O intervalo coloca em causa a qualidade da intervenção psicológica. Muitas vezes, os próprios psicólogos têm de ponderar se vale a pena iniciar uma intervenção se depois não for possível dar a continuidade desejável. Isso pode pôr em risco a saúde pública. Se ativarmos determinado tipo de sentimentos, emoções, comportamentos, é natural que depois tenhamos de dar continuidade”, clarifica Sofia Ramalho.
Segundo o Portal da Transparência do SNS, o número de consultas de psicologia em Portugal tem vindo a aumentar. Em 2023, o último ano de que há registo completo, foram cerca de 2,3 milhões de consultas. As primeiras consultas pesam menos de 20% do total.
Antidepressivos e ansiolíticos a bater recordes
As dificuldades de resposta no SNS no campo da saúde mental têm efeitos noutra área, no consumo de antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos. Depois da pandemia, superou-se a barreira dos 25 milhões de embalagens prescritas no país. E desde então, os números não baixam.
“A medicação acaba por ser um penso rápido. É mais fácil ter uma consulta de psiquiatria do que de psicologia no serviço público”, admite o psiquiatra João Pedro Lourenço, insistindo que, em muitos casos, seria possível evitar a medicação com recurso a um tratamento psicológico prévio, que impediria o sofrimento mental de passar para a “etapa seguinte”, em que são necessários fármacos.
“Através do acompanhamento psicológico, conseguiríamos evitar o consumo de muitos antidepressivos e ansiolíticos”, atesta Catarina Lucas.
Nos últimos anos, e perante a falta de uma resposta efetiva, segundo os especialistas, têm chegado às urgências casos mais graves. É a única porta que se abre, o tratamento dado no fim da linha. “Faço urgências, posso verificar isso. Há uma afluência maior à urgência com quadros depressivos, às vezes com ideação suicida mais marcada e quadros psicóticos também”, descreve o psiquiatra João Pedro Lourenço.
Há uns anos, antes de ter apoio especializado, o suicídio também parecia ser o único caminho que se abria para Jackson Varjão. “Era a fala de possibilidades de ser feliz. Quando todos os caminhos levavam a algo ruim, pensamos ‘Porquê continuar?’. Quando tudo à nossa volta está a cair, pensamos que não faz mais sentido seguir em frente”.
Só que Jackson Varjão seguiu em frente, ao ponto de conseguir retirar a medicação que estava a tomar. “A medicação faz-nos perder a vontade de estar em sociedade, de sermos produtivos, de fazer desporto. Evita que cometamos suicídio, mas não nos permite seguir a vida com energia”.
Uma longa lista de problemas
Numa das consultas, um paciente conta à psicóloga Catarina Lucas que, desde a pandemia, não consegue usar a roupa da rua em casa. Ao regressar do exterior, as roupas são retiradas quase como num ritual. Outro paciente continua a fazer toda a sua vida de máscara. “Sentimos os quadros de ansiedade, de burnout e as hipocondrias com uma expressão muito grande neste pós-pandemia”, refere.
A pandemia de covid-19 deixou mais vincadas várias realidades no que respeita à saúde mental. Fobia social. Solidão urbana, hiperatividade, défice de atenção, dependência da tecnologia, vício em jogos online, desejos de evasão, transtornos obsessivo-compulsivos e dificuldade em assumir compromissos são algumas das que mais se repetem. E são a prova de que a doença mental, quando surge, não é algo apenas pessoal, é reflexo de um contexto social.
Perante a procura crescente, a resposta no privado também começa a sentir limitações. Há profissionais que se sentem sobrecarregados. “O que leva à sobrelotação dos profissionais” e coloca em risco a própria qualidade da terapia.
Uma maior consciência sobre o tema
“A pandemia trouxe mais consciência da importância de cuidarmos de nós. Não sei é se nos deixou melhor”. Mariana Madeira Rodrigues reconhece que, no passado, teve sinais de alerta sobre a sua saúde mental. Só que as prioridades tinham de ser outras: os cinco filhos, a família, os estudos, o emprego.
“Se olhasse para trás, se me visse a mim própria, teria dito ‘ups, estás a precisar de uma ajuda. Está aqui uma crise muito grande e precisas de ajuda’”. Mariana foi encontrando respostas na fé. É à sua crença em Deus que se segura quando as dúvidas começam a tomar conta dela.
“É um trabalho inacabado sempre. Enquanto vivemos, precisamos de olhar para dentro de nós. E ir questionando ‘Está tudo certo? Estou no caminho certo?’. Percebi que preciso mesmo deste espaço para trabalhar aquilo que sou, os meus medos, aquilo que me desassossega”.
Porque as memórias, essas, nada as apaga. Como as lembranças de um dos filhos, então com 13 anos, em pleno confinamento, a dizer-lhe que não se podiam abraçar.
Há impactos que só vamos sentir nas gerações futuras
Na casa de Mariana, foi preciso criar uma lista de distribuição de tarefas para garantir que o tempo em confinamento – e a catadupa de tarefas que ele implica – era passado com o maior equilíbrio possível. Estes filhos são exemplo de uma geração que aprendeu a estudar, mas também a conviver, através dos ecrãs dos computadores e dos telemóveis.
São também a prova, avisam os especialistas, de que há efeitos da pandemia que só vamos sentir daqui a uns anos. “Não podemos esquecer que os jovens hoje serão os adultos de amanhã, serão os pais de amanhã, serão os profissionais de amanhã. Dessa forma, vão estar também a influenciar as gerações que se seguem”, resume Sofia Ramalho.
Mas há impactos que já são bem percetíveis nos consultórios dos psicólogos. “Dificuldade em relacionar-se, dificuldade em sair de casa, dificuldade em comprometer-se, às vezes em coisas simples como eventos sociais”, completa Catarina Lucas.
Nas escolas portuguesas, a presença de psicólogos continua a ser muito residual. Há, em média, um profissional por cada 800 alunos. Neste ano letivo, segundo dados do Ministério da Educação, são 1.672 os psicólogos nos estabelecimentos de ensino.
Em simultâneo, em consultas de rotina, os pediatras estão a diagnosticar – e a reencaminhar para os pedopsiquiatras – mais casos de sofrimento mental entre as crianças. São, segundo Inês Pinto, o primeiro recurso paras as famílias.
Mas, para lá chegar, é preciso que os pais prestem atenção aos filhos, algo difícil num mundo onde anda cada um agarrado ao seu ecrã. Sinais de alerta houve muitos: “deixar de brincar, falar sobre a morte e a ausência de sentido da vida, sentir-se extremamente preocupada, ter algum tipo de comportamentos autolesivos. Outra das áreas que exponenciaram imenso a partir da pandemia foi dos sintomas do comportamento alimentar”.
Há estudos que apontam que 15% das famílias tem hoje de lidar com problemas de saúde mental entre as crianças e jovens.
E o verdadeiro problema é que, nestes últimos anos, não aconteceu só a pandemia. Houve guerras a despontar e a sugar a atenção do mundo, eleições que mudaram o rumo dos países, alterações climáticas que se tornam mais evidentes.
“A adversidade continua. E isso traz uma perspetiva de violência, de insegurança constante. Para uma criança que pensa na sua vida, num projeto de vida, a segurança fica muito abalada”, conclui Inês Pinto.
Portugal, um mau exemplo
O retrato da saúde mental em Portugal é preocupante. E os estudos têm, precisamente, confirmado essa urgência. Uma em cada cinco pessoas tem problemas de saúde mental. Trata-se de uma incidência superior à da média comunitário. Mais recentemente, confirmou-se a posição enquanto o pior país da OCDE.
Uma das faixas etárias que mais tem gerado preocupação é a dos jovens até aos 35 anos, daí que o Governo tenha apostado nos cheque-psicólogo para os estudantes universitários, permitindo-lhe aceder a consultas gratuitas desta especialidade.
Outro número preocupante é o dos suicídios: todos os dias, em média, três pessoas tiram a própria vida. O aumento neste indicador tem-se verificado sobretudo entre os jovens.
“É por isso que, assim como qualquer pessoa deve ter direito ao médico de família, também deve ter direito ao psicólogo”, argumenta a bastonária da Ordem dos Psicólogos.
Com o estigma em relação à saúde mental a perder força, o custo assume-se como a principal barreira à terapia. Multiplicaram-se as consultas inclusivas, a preços mais acessíveis, algumas fora das paredes dos consultórios, para desconstruir esta realidade. Mas está longe, muito longe, de cobrir todas as necessidades.
“Deparamo-nos com pessoas a precisarem de fazer este acompanhamento, a darem até o primeiro passo, mas a não conseguirem manter, precisamente porque o custo é elevado. E porque as próprias seguradoras ainda não são muito eficazes nesta área”, conclui Catarina Lucas.
(Re)Começar?
Ao sofá do psicólogo, juntam-se muitas outras estratégias para melhor a saúde mental. Para Mariana, foi a fé. Para Jackson, é o desporto: tornou-se maratonista. E daí tirou uma lição mais abrangente: “se não praticamos diariamente, não temos evolução. É a mesma coisa com a nossa mente. A saúde mental para mim é uma maratona, a maratona mais longa de se correr”.
É um correr bom, saudável. A contrastar com uma outra correria, a do dia a dia, que voltou a tomar conta de nós após a pandemia. Aquelas promessas de que ia ficar tudo bem, de que íamos sair melhores da adversidade, lembra-se? Onde é que elas ficaram?
“Assim que passou a pandemia, parece que voltámos a uma determinada forma antiga de estar – de fazer, fazer, fazer e menos de sentir o que estamos a viver”, resume a pedopsiquiatra Inês Pinto.
É o chamado “medo de perder alguma coisa”, confirma Catarina Lucas. “As pessoas querem chegar a todo o lado, querem fazer tudo, ter todas aas experiências, como se estivéssemos a deixar alguma coisa para trás”. E isso, pura e simplesmente, impossível.
Cinco anos depois, talvez esteja na altura de voltarmos a parar. Para (re)começar, de outra maneira.
Recursos de Saúde Mental: linhas de apoio
Linha SNS24
808 24 24 24 (opção 4)
SOS Voz Amiga
15:30 – 0:30
213 544 545 | 912 802 669 | 963 524 660
Telefone da Amizade
16:00 – 23:00
222 080 707
Conversa Amiga
15:00 – 22:00
808 237 327 | 210 027 159
Voz de Apoio
21:00 – 24:00
225 506 070
Email: sos@vozdeapoio.pt
Vozes Amigas de Esperança de Portugal
16:00 – 22:00
222 030 707
SOS Estudante - Linha de apoio emocional e prevenção ao suicídio
20:00 - 01:00
969 554 545 | 915 246 060 | 239 484 020
Emergência Médica
112
Atendimento Psicossocial da Câmara Municipal de Lisboa
800 916 800