Luís consome canabinóides, Sara faz exercício cinco vezes por semana. Estas oito pessoas nunca apanharam covid e têm as mais diversas explicações para isso

13 ago 2022, 08:00
Há quem esteja a conseguir escapar à covid-19 (Pixabay)

Há quem já tenha tido covid-19 e jure a pés juntos que não sabe como ficou infetado com o SARS-CoV-2. E há quem, passados 29 meses, continue sem sinais do vírus e apresente as mais variadas justificações. Da sorte à alimentação, do consumo de canabinóides ao distanciamento social, do teletrabalho à super imunidade são muitas as teorias apresentadas. E qual é que a ciência defende?

“Acho que é por causa do consumo de canabinóides porque é a única coisa que faço diferente da maior parte das pessoas”. Luís Martins, de 31 anos, tem conseguido escapar à covid-19 ao longo destes mais de dois anos e meio de convivência com o vírus e acredita que este seu hábito “diário” pode ser o responsável. “Sou cozinheiro, fiz muitas consultorias no início da pandemia, já mudei de cidade duas vezes e tive sempre de fazer testes por causa do trabalho”, conta.

Um estudo publicado em janeiro deste ano na revista Journal of Natural Products revelou que dois ácidos canabinóides - o ácido canabigerólico (CBGA) e o ácido canabidiólico (CBDA), que se encontram em variedades de cânhamo - são capazes de se ligar à proteína Spike do coronavírus - a proteína que o vírus usa para entrar nas células e, aparentemente, . impedir que o vírus infecte as células. No mesmo mês, um outro estudo publicado na revista Science Advances veio mostrar que, em experiências em laboratório, o canabidiol, ou CBD, pode ajudar a conter o SARS-CoV-2 em células infectadas. Depois dos ensaios em laboratório, seguiram-se os ratinhos e o efeito foi semelhante.

“As nossas descobertas não dizem que isto funcionará em pacientes. As nossas descobertas são um forte argumento para um ensaio clínico”, disse a investigadora Marsha Rosner, da Universidade de Chicago, citada pela Reuters

Paulo Paixão, virologista e professor assistente na Faculdade de Ciências Médicas da NOVA Medical School, diz que a teoria do consumo de canabinóides é curiosa, mas mostra-se cético quanto à sua eficácia, seguindo a linha de pensamento da investigadora norte-americana. “Há 'n' coisas que encontramos, produtos que têm ação, mas [a ciência] é como um funil, quando se começa a testar em células de animais começa a não funcionar bem e quando chega aos humanos não funciona, por isso é que há poucos antivirais aprovados [para a covid-19], por exemplo”.

“É muito comum as pessoas dizerem 'eu não tenho covid-19 porque tomo um chazinho', é muito comum as pessoas acharem que é por isto ou aquilo que não têm uma determinada doença, e até podem ter razão”, diz o especialista.

“O que temos de dizer é que não temos evidência científica de que aquilo que está a dizer tem atuação. O que costumo fazer é explicar o seguinte: se faz desporto, muito bem, se toma um chá, muito bem, se toma as cápsulas, muito bem, mas não pode abdicar do que é aconselhado, como a vacina, a máscara, etc.”, continua. Mas, e quanto à canábis? Sobre isto, Paulo Paixão é taxativo: “a dependência de canabinóides não é assim tão ligeira quanto isso, há riscos e haverá teorias mais inócuas do que os canabinóides”.

Pode um estilo de vida ser anti-vírus?

Essa é a crença de Sara Leirosa,  Susana Barros e Vanessa Viana. Embora as três admitam que o fator sorte - do qual falaremos à frente - pode também estar em jogo, acreditam que cuidar do corpo é meio caminho andado para conseguirem resistir a um vírus e entrar no grupo dos chamados NOVID (junção da palavra "não" em inglês com o termo "covid").

“Eu emagreci cerca de 20 quilos, passei a ter um equilíbrio, como de tudo mas nas quantidades certas. E passei a fazer exercício cinco vezes por semana, coisa que não fazia. E penso que isso pode ter ajudado”, conta Sara Leirosa, de 32 anos. A residir em Coimbra e “a trabalhar longe de família e amigos próximos, grande parte do tempo em teletrabalho”, acredita que as mudanças de hábitos que fez na pandemia podem estar a servir de escudo protetor, até porque tem uma filha na creche, onde já houve casos positivos, e nenhuma das duas ficou infetada.

“Tenho poucas teorias, mas a primeira é o meu estilo de vida: eu como bem e treino bem e levo isso a sério 360 dias por ano”, assegura Vanessa Viana, também de 32 anos. Ao seu estilo de vida, junta o facto de não ter um histórico de problemas, “nem respiratórios, nem doenças” e acredita que isso, a par do seu estilo de vida e com o facto de ter crescido com animais - “os meus pais não tinham problema em me expôr” - ajudam a explicar como, mesmo a trabalhar num escritório, tem conseguido escapar ao vírus.

A própria Organização Mundial da Saúde coloca a alimentação e os hábitos saudáveis na linha da frente para a prevenção da covid-19 pelo reforço imunitário que dá e há estudos que colocam mesmo a vitamina C - a eterna aliada do sistema imunitário - na linha da frente, mas a eficácia não é tão linear quanto isso, até porque o efeito preventivo está no desenvolvimento da doença e não na infeção em si. Trocando por miúdos: comer bem e treinar pode ser uma mais-valia para reforçar o sistema imunitário na hora de combater o vírus, mas não impede que o vírus entre no organismo.

No entanto, défices nutricionais podem, na verdade ser um gatilho, tal como diz a nutricionista Susana Barros, com 35 anos e também ela a escapar ao SARS-CoV-2 há mais de dois anos e crente que, a par da sorte, uma boa alimentação pode ser aliada. “Está provado que ter um corpo bem nutrido está relacionado com o tipo de alimentos que ingerimos, os estudos têm mostrado que pacientes com covid tem défices de zinco, selénio e vitamina C. Impacto não apenas como prevenção, se estivermos bem nutridos há menos probabilidade de ter uma patologia deste género, como depois na recuperação”.

São os NOVID super imunes?

Desde a deteção do primeiro caso de covid-19 em Portugal, a 2 de março de 2020, foram notificadas 5 370 330 infeções, segundo os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde, o que quer dizer que pelo menos 52% da população (ou um pouco mais porque este número não contemple as reinfeções) ainda não estou positivo ao SARS-CoV-2.

Há quem, mesmo tendo partilhado casa com companheiros, pais, irmãos, filhos e até amigos e tenha escapado à infeção, sempre sem sintomas ou qualquer sinal de que o vírus estivesse a habitar no organismo. Foi o que aconteceu à família de Sofia Gama, de 44 anos.

“Nunca fomos extra cuidadosos, fazíamos o básico e obrigatório (desinfeção e máscara). Trabalhava com público e muitas vezes tive colegas infectados, no nosso grupo de amigos próximo chegámos a ter contacto directo por vários dias, na passagem de ano, e nenhum de nós apanhou. E eu fazia regularmente testes mesmo que não apresentasse sintomas sempre que alguém próximo tinha, portanto também acho difícil ter tido sem sintomas. Somos quatro cá em casa e nenhum de nós teve. Mesmo quando eu achava que ia ser infectada, porque era quase impossível não o ser pois o contacto com infectados era próximo ou prolongado, nunca fiquei. Nada disso”, diz. Até hoje, nem Sofia, nem o marido, de 43 anos, e os dois filhos de 22 e 17 estiveram infetados. “Somos super imunes”, brinca.

O virologista Paulo Paixão coloca a imunidade na lista das justificações científicas para se conseguir escapar à covid-19. “Há características próprias da imunidade de cada um, ou seja, a chamada imunidade inata - aquela nossa primeira linha de defesa contra os vírus. Por exemplo, as crianças têm uma imunidade inata mais forte do que os adultos e isso pode ter sido um motivo para as crianças terem sido mais resistentes, ao início, ao vírus”. E esta imunidade inata, como a CNN Portugal já explicou, não pode ser mudada e depende da qualidade das várias componentes celulares do sistema imunitário, como os interferons, linfócitos T, linfócitos NK ou até os macrófagos. Todos eles podem explicar como diferentes pessoas podem ter diferentes contactos com o vírus e responder de maneira diferente.

Mas a imunidade não é apenas aquela que nasce connosco. Embora há dois anos tenha soado a novidade para muitos, os coronavírus já andam por cá há largos anos e isso pode ser um motivo pelo qual algumas pessoas conseguem manter-se imunes. “Uma teoria que tem sido muito avançada é o contacto que tivemos no passado com outros coronavírus, uma família com vários vírus que circulam há muito tempo e que são muito banais. Há pelo menos quatro coronavírus que causam constipações banais”.

Paulo Paixão explica que “as pessoas com mais contacto com esses vírus” adquirem aquilo a que se chama “imunidade cruzada”, uma imunidade adquirida por contacto que dá “alguma proteção contra os primos [do coronavírus], nomeadamente o SARS-CoV-2”. Essa imunidade adquirida também beneficia da vacinação, que, para o virologista, é igualmente um fator em jogo para que umas pessoas fiquem infetadas e outras não, pois nem todas respondem da mesma forma à inoculação.

Mas voltando à história de Sofia e ao facto de uma família inteira estar a conseguir escapar à covid. Há, para o virologista, mais dois cenários em cima da mesa: os testes e a interação. “Já me aconteceu ter pacientes a dizer que a família teve [covid-19] e o teste deu negativo, os testes são bons mas não são infalíveis, mas se fizermos uma serologia - uma pesquisa de anticorpos - percebemos se teve contacto anterior ou não”. E no que diz respeito à interação, Paulo Paixão refere que, mesmo nestas situações, há “fatores que não conseguimos controlar”. “Pode bastar jantar com um infetado que não fala muito para escapar.”

Será a capacidade de fintar a covid uma questão genética?

“No Brasil, meus pais e minha irmã tiveram covid, então descarto a possibilidade de ser algo genético”. Gabriel Lucki, designer de 29 anos, não considera que tem uma proteção genética, uma vez que os seus familiares mais próximos ficaram infetados. Mas poderá a genética ter algum poder na capacidade de escapar à covid-19? Para Paulo Paixão, sim.

O virologista defende que “há fatores genéticos, que também estão ligados à imunidade inata, que fazem com que tenhamos uma resposta imunitária mais forte para determinadas infecções do que outras pessoas”. Na prática, continua, “há algumas mutações nos humanos que favorecem a proteção contra determinadas infecções”, seja na prevenção como no desenvolvimento destas, tal como mostra este estudo publicado na Science.

O potencial papel da genética na capacidade de escapar ao SARS-CoV-2 tem inquietados os cientistas de tal modo que já há uma caça aos NOVID, que é como quem diz, um consórcio internacional chamado COVID Human Genetic Effort que visa encontrar pessoas que não foram ainda infetadas - e já tem mais de cinco mil candidaturas. Este consórcio pretende estudar o poder dos genes como escudo-protetor. Segundo a Nature, os mentores deste projeto levantam a hipótese de haver um tipo de mecanismo de resistência que poderão encontrar nestas pessoas. O mais óbvio pode ser que alguns organismos não tenham um receptor ACE2 funcional, que o SARS-CoV-2 usa para entrar nas células.

Máscaras, higiene, distanciamento... e sorte?

“Desde o início da pandemia sempre usámos máscara, passámos a fazer todo o tipo de compras online, sendo que o único local fechado que frequentamos é o supermercado. Só vamos a restaurantes ou cafés com esplanada e quando nos reunimos com família ou amigos é em espaços ao ar livre. No trabalho andamos sempre com máscara quando não estamos na secretária. As secretárias estão separadas por 1,5m, a temperatura é controlada à entrada do edifício, fazemos dois testes covid por semana e temos desinfetante. A cada três meses a empresa oferece a cada funcionário uma caixa de máscaras FP2”. Sara Pinto, de 38 anos, a residir em Munique, aponta as medidas de mitigação como a verdadeira barreira contra o vírus, ao qual tem conseguido escapar até aos dias de hoje.

Já Beatriz Vasconcelos, 32 anos, jornalista em Lisboa, junta o fator “sorte” à toma dos “cuidados básicos”. “Mas também estive muito tempo em teletrabalho, o que ajudou principalmente na altura mais crítica. Além disso, não tenho uma vida social muito ativa, que envolva grandes convívios”.

O uso de máscaras, o distanciamento social, a correta higienização das mãos e, em momentos mais críticos, o confinamento são estratégias bem-sucedidas na hora de travar a propagação do vírus. Mas também há a sorte.

"Há uma questão de sorte, também há esse aspecto", reconhece Paulo Paixão. O virologista explica que "o contágio varia muito consoante as fases em que [o vírus] está”, pois, “no primeiro dia é uma coisa, no quinto é diferente porque a carga viral é diferente”, e a sua ação depende muito da ação de cada pessoa: “pode não ter dado tantos beijinhos e abraços, pode não ter havido tanta proximidade”. “Há fatores aleatórios em jogo”, conclui.

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