A China está obcecada com a desinfeção contra a covid. Mas estará a causar mais mal do que bem?

CNN , Simone McCarthy
2 mai 2022, 15:04
Desinfeção

Trabalhadores com roupas de proteção pulverizando nuvens de desinfetante nas ruas da cidade, fachadas de prédios, bancos de parques e até encomendas tornaram-se uma visão comum na China da era da pandemia.

Em Xangai, o epicentro do maior surto do país, os média estatais relatam que milhares de trabalhadores foram organizados em equipas para desinfetar áreas, com foco nas conhecidas por terem hospedado pacientes covid - uma medida que o governo vê como fundamental para conter a disseminação da variante Ómicron.

Mas a prática muitas vezes vai mais além. Aparentemente, qualquer área exterior corre o risco de ser alvo de trabalhadores empunhando máquinas desinfetantes estilo soprador de folhas, já que a rigorosa política de "zero-covid" da China gera uma obsessão em higienizar tudo.

Em Xangai, os bombeiros foram afastados das suas funções para assumir a tarefa de aplicar desinfetantes; uma associação jovem local recrutou voluntários para esquadrões de desinfeção; e foram criadas equipas de emergência de partes distantes da China – muitas vezes transportando equipamentos pesados ​​e materiais perigosos.

Em alguns bairros de Xangai foram instaladas estações especiais de produção de produtos químicos, enquanto noutros há veículos equipados com tanques de produtos químicos e dispositivos semelhantes a canhões para lançar desinfetante nas ruas, segundo os média locais. Há robôs de desinfeção posicionados em estações ferroviárias, que também foram configurados para patrulhar alguns centros de quarentena.

Mas esses esforços - e outros, como a insistência de que os trabalhadores usem roupas de proteção e as mensagens gravadas e estridentes que tocam em loop para lembrar as pessoas sobre como prevenir a doença - podem ser uma perda de tempo, de esforço e de recursos.

Especialistas dizem que a transmissão do vírus através de superfícies contaminadas é excecionalmente baixa – e que higienizar áreas exteriores, como parques e ruas da cidade, é em grande parte inútil e, pior ainda, pode até representar um perigo para a saúde pública.

“Os robôs e a pulverização nas ruas são atos performativos projetados para reforçar a confiança do público nas ações do governo”, diz Nicholas Thomas, professor associado da Universidade da Cidade de Hong Kong, que aponta como as autoridades chinesas há muito citam a contaminação ambiental como parte da sua retórica de que o vírus pode não ter sido originado na China.

"É um problema na resposta à pandemia quando a política domina e diverge da ciência", afirma.

Vírus importado?

A desinfeção em massa faz parte de uma campanha de longo prazo na China para combater o risco de transmissão da covid-19, que grande parte do mundo considerou ser mínimo para garantir medidas além da lavagem das mãos e da desinfeção de certas superfícies, como aquelas em locais públicos movimentados, onde os alimentos são manipulados ou onde pacientes com covid-19 são tratados.

Numa explicação científica, no ano passado, os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA afirmaram que os estudos sugerem que cada contato com uma superfície contaminada com covid-19 tem menos de 1 em 10.000 probabilidades de causar uma infeção. Esse estudo levou muitos a ver um foco aberto na desinfeção como "teatro de higiene", em oposição a qualquer medida significativa de prevenção de doenças.

A desinfeção em massa não faz parte das medidas de controlo de doenças nos países ocidentais "porque as autoridades de saúde pública seguiram a ciência", segundo Emanuel Goldman, professor de microbiologia da Rutgers-New Jersey Medical School.

"[É] altamente improvável que quaisquer casos resultem do toque em superfícies contaminadas. O vírus morre rapidamente fora de uma pessoa infetada... e é transferido de forma muito ineficiente pelos dedos", afirma. “Lavar as mãos com sabão ou lenços humedecidos com álcool é tudo o que é preciso para reduzir a incidência a zero."

Na China, onde práticas rigorosas concentraram-se em eliminar qualquer propagação do vírus, as preocupações com superfícies contaminadas remontam aos primeiros meses da pandemia, especialmente depois de as autoridades chinesas dizerem que um surto num mercado em Pequim começou provavelmente por causa de um trabalhador infetado na manipulação de salmão importado e congelado contaminado com vírus.

Embora a Organização Mundial da Saúde diga que é "altamente improvável" que as pessoas possam contrair covid-19 através de alimentos ou embalagens de alimentos, as autoridades chinesas apontaram em várias ocasiões as importações de cadeias de frio ou outras superfícies contaminadas, como aviões ou até mesmo correio internacional, como vetores de doenças.

Isso levou a uma série de medidas em grande parte exclusivas da China, como testar as superfícies dos produtos importados em busca de vestígios de vírus e desinfeção em massa de produtos congelados do estrangeiro, enquanto algumas cidades lançaram pedidos para desinfetar correspondências e encomendas internacionais - embora especialistas nacionais em saúde tenha dito no início deste ano que não havia evidências suficientes de que esses artigos não relacionados com cadeias de frio pudessem transportar o vírus.

E como Pequim procurou reformular a narrativa em torno da origem do coronavírus, detetado pela primeira vez na China, as autoridades lançaram uma teoria de que o vírus poderia ter sido importado em produtos congelados – uma hipótese amplamente descartada por especialistas internacionais.

Embora existam algumas evidências de que o vírus possa permanecer infecioso em embalagens congeladas, a forma como os países podem querer lidar com esse risco varia, de acordo com Leo Poon, professor da Escola de Saúde Pública da Universidade de Hong Kong.

"Para os países que usam a estratégia de eliminação, este é um risco significativo. No entanto, para a maioria dos países, isso agora pode não ser nada significativo", diz.

Quanto a tocar em superfícies, esse “não é um modo de transmissão importante para a covid-19”, afirma, acrescentando que alguma desinfeção em ambientes interiores pode ser uma boa ideia.

Risco potencial

Em lugares como Xangai, onde os recursos já são escassos enquanto a cidade lida com um bloqueio de semanas, o envio de voluntários e trabalhadores para fins de desinfeção pode colocar o foco no risco errado.

"Não há necessidade para a desinfeção em massa de áreas exteriores, pavimentos e paredes. É improvável que sejam contaminados ou causem transmissão através de uma superfície mucosa (como olhos, nariz ou boca)", afiam Dale Fisher, professor da Universidade Nacional. da Escola de Medicina Yong Loo Lin de Singapura.

Também pode haver desvantagens nesse trabalho, de acordo com Goldman, da Rutgers-New Jersey Medical School, que diz que as pessoas podem ser prejudicadas pela exposição à desinfeção severa.

Embora a OMS apoie a desinfeção, como limpar áreas como maçanetas em locais públicos movimentados, as diretrizes da OMS dizem que “pulverizar desinfetantes, mesmo ao ar livre, pode ser nocivo para a saúde das pessoas e causar irritação ou danos nos olhos, no aparelho respiratório ou na pele”.

No início da pandemia, um grupo de cientistas chineses alertou numa carta à revista Science que o uso excessivo de desinfetantes de cloro corre o risco de poluir a água e até colocar em risco os ecossistemas de lagos e rios. Há sinais de preocupações semelhantes por parte das autoridades de Xangai, mesmo enquanto pressionam as medidas de desinfeção.

No final do mês passado, as autoridades divulgaram recomendações para os moradores sobre como desinfetar, exortando-os a não “pulverizar desinfetantes diretamente nas pessoas”, usar “camiões com canhão” e drones, ou desinfetar o ar exterior.

"Essas práticas são essencialmente ineficazes e podem causar riscos à saúde e poluição ambiental", afirma um funcionário de Xangai.

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