Covid-19: imunidade natural pode ser a única solução para a baixa vacinação em África

Agência Lusa , CM
13 fev 2022, 11:18
Covid-19 em África

Cerca de um ano depois do arranque da vacinação, o continente africano continua a ser o menos vacinado, com apenas 11% da população com as duas doses. Alguns países estão já a ponderar aliviar medidas de segurança para abrir caminho à Ómicron

A imunidade natural pode ser a única solução para a baixa vacinação contra a covid-19 em África, defende o diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical.

“Esperamos que, com a Ómicron, consigamos ter uma imunidade natural em substituição desta ausência da cobertura vacinal. É a única hipótese que nos resta neste momento”, diz Filomeno Fortes, em entrevista à Lusa a propósito do segundo aniversário do primeiro caso de covid-19 em África.

A 14 de fevereiro de 2020, o governo egípcio confirmou o primeiro caso no país, que foi também o primeiro caso confirmado em África. Desde então, o continente registou 10 milhões de infeções e 245 mil óbitos, o que representa 2,5% da morbilidade global e 4% da mortalidade em todo o mundo, embora África represente 17% da população global.

Cerca de um ano após o início da vacinação no continente, e quando no mundo a taxa de vacinação a nível global já ultrapassa os 50%, África continua a ser o continente com menos vacinados e apenas 11% da população tem as duas doses iniciais da vacina.

Perante este cenário, e com a perspetiva já admitida pela Organização Mundial da Saúde de o continente não conseguir alcançar a meta de ter 70% da população vacinada antes de 2024, Filomeno Fortes diz que alguns países africanos estão a ponderar aliviar medidas de segurança para permitir alcançar a imunidade natural.

Aproveitar a menor letalidade da Ómicron

Essa possibilidade surge do facto de ter surgido uma variante, a Ómicron, que não é tão letal, por um lado, mas por outro lado confere imunidade natural a quem é infetado, explica o cientista.

O especialista em saúde pública e epidemiologia recorda, no entanto, que, se os países aliviarem excessivamente as medidas de segurança, haverá mais infeção e isso levará a uma sobrecarga dos serviços de saúde, que já estão debilitados.

Portanto, a solução, defende, será os países africanos “permitirem que as pessoas se movimentem mais, contactem mais”, mas simultaneamente “reforçar a receção destes doentes com medidas paliativas, com medidas de controle e com um acompanhamento domiciliar, sem prejudicar muito as unidades sanitárias”.

Questionado sobre a situação nos países lusófonos, o médico diz que “Angola está a iniciar esse processo e Moçambique também está a iniciar esse processo”.

“Nós acreditamos que nos próximos três meses a situação vá ser definida nesses termos: aliviar efetivamente as medidas de segurança para permitir que haja maior circulação do vírus e para que possamos atingir a imunidade natural mais rapidamente”, estima.

Filomeno Fortes lembra que a imunidade natural através do próprio vírus é algo que “acontece secularmente”, exemplificando que há regiões em África onde 60% ou 70% da população vive com o parasita da malária em circulação em equilíbrio com organismo humano.

“Isto é o que se perspetiva agora com a situação da Ómicron”, conclui.

Milhões de crianças por vacinar ameaçam erradicação da pólio

Filomeno Fortes alerta ainda para o facto de milhões de crianças terem ficado por vacinar em África devido à pandemia, o que ameaça a erradicação da poliomielite, alcançada em 2020, e aumenta a probabilidade de surtos de doenças como a febre-amarela. 

O diretor do IHMT disse que “é facto confirmado” que a pandemia teve um grande impacto na malária, na tuberculose, no VIH/Sida e na vacinação das crianças em África. A covid-19 teve também efeitos na prevenção das doenças tropicais negligenciadas, que era uma grande prioridade da OMS e cujas metas para 2024/25 “já não vão acontecer, como é óbvio”, assim como no seguimento da grávida e da criança.

O especialista em saúde pública e epidemiologia citou o diretor executivo do Fundo Global de Luta contra a Sida, Tuberculose e Malária, Peter Sands, segundo o qual a testagem do VIH em África caiu em 22% e a testagem da tuberculose caiu em 18% devido à pandemia.

“Isso significa que neste momento temos muitos mais portadores do vírus da sida que não sabem a sua situação serológica e vamos ter, portanto, muito mais transmissão doença”.

Com a tuberculose, o fenómeno é similar ao do sida, com outro inconveniente: “É que a resistência aos medicamentos contra a tuberculose, que já é uma prioridade da OMS a nível mundial, vai-se agravar ou está a agravar-se neste momento por causa desta quebra da testagem e do acompanhamento do tratamento dos pacientes.”

Eu relação à malária, lembrou Filomeno Fortes, a OMS relata que houve 241 milhões casos e 627.000 mortes, o que representa cerca de 14 milhões de notificações da doença e 69 mil óbitos a mais comparado com 2019.

O médico lembrou ainda que os constrangimentos provocados pela pandemia afetaram os programas de vacinação no continente, deixando por vacinar 23 milhões de crianças só em 2020, segundo a Unicef.

“Em 2021, a situação agravou-se muito mais”, alertou.

Febre-amarela na Europa

A quebra da cobertura vacinal afeta doenças como a difteria, a tosse convulsa e o tétano, mas também o sarampo, a poliomielite e a febre amarela, acrescentou Filomeno Fortes, recordando que a redução da cobertura da vacina da pólio “poderá vir a ser um problema”, depois de a OMS ter declarado a erradicação da doença em África em 2020.

Significa que, “se houver casos residuais da poliomielite” nos países africanos - e Angola foi um dos últimos países a declarar a eliminação - poderá vir a haver surtos epidémicos da doença.

“Também temos a certeza quase absoluta de que em África, de uma forma geral, iremos ter surtos de febre amarela”, acrescentou.

Filomeno Fortes deixou por isso um aviso “aos chamados países do primeiro mundo” de que “devem olhar para a África como um potencial reservatório de problemas de saúde”.

Se, com as alterações climáticas, o vetor da febre-amarela conseguir sobreviver na Europa, há o risco de haver uma epidemia da doença no continente, exemplificou, apelando a mais solidariedade dos países desenvolvidos.

“Tem de haver mais financiamento, mais preocupação, para evitar que nos próximos 10, 15 anos, 20 anos possam acontecer fenómenos como este”, advertiu.

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