Morte de Odair Moniz está na origem da violência
Segunda noite de tumultos na Grande Lisboa. Tudo começou na madrugada segunda-feira, quando Odair Moniz, de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP na Cova da Moura, na sequência de uma perseguição policial cujos contornos estão ainda a ser investigados.
O caso gerou uma grande revolta na população do bairro do Zambujal, onde a vítima morava e, na madrugada de terça-feira, dezenas de pessoas protestaram de forma violenta e criaram o caos, ateando vários incêndios na rua e lançado pedras aos polícias que, entretanto, se dirigiram para o bairro. Também um autocarro da Carris foi apedrejado, depois de o motorista ter sido obrigado a sair do veículo. Apesar dos tumultos, a situação acabaria depois por acalmar e a manhã de terça-feira foi dedicada a limpar os destroços.
Mas a violência voltou ao final da tarde de terça-feira, desta vez não só no bairro onde tudo começou mas também noutros pontos da região de Lisboa. Os motins repetiram-se no bairro do Zambujal, onde um novo autocarro foi roubado e depois incendiado. A situação viria a alastrar-se depois, ao longo da noite, a bairros como a Portela, Carnide, Campo de Ourique, Odivelas e até à região de Sintra, onde foi arremessado um objeto contra a esquadra da PSP de Casal de Cambra, sem causar danos.
Na Portela, onde a PSP foi recebida com pedras e petardos, foram incendiados vários carros e um autocarro e caixotes do lixo. Também no bairro do Zambujal um autocarro foi incendiado, com o motorista do veículo a ser forçado a sair do mesmo, tal como os passageiros que se encontravam no interior do autocarro.
Um dos jovens que ameaçou o motorista avançou para o volante do veículo, que estacionou no interior do bairro - onde acabaram por incendiar o autocarro com recurso a engenhos explosivos conhecidos por cocktails molotov.
A PSP reforçou o policiamento em vários locais, nomeadamente nas denominadas Zonas Urbanas Sensíveis. Fonte da polícia confirmou à CNN Portugal que as autoridades receberam várias chamadas falsas sobre alegados distúrbios. Sobre o dispositivo no terreno, o intendente Sérgio Soares, porta-voz da PSP, confirmou um "reforço mais musculado" com as equipas do Corpo de Intervenção e de Intervenção Rápida.
Até ao momento há confirmação por parte das autoridades de três detido, um deles tinha na sua posse material combustível, no bairro do Zambujal, e outras duas pessoas por incêndio e agressões a agentes policiais. Quanto aos suspeitos de roubar e incendiar o autocarro da Carris, não foram "até ao momento detetados e intercetados".
Na Amadora, um agente foi apedrejado e duas viaturas policiais ficaram danificadas, bem como outras cinco viaturas, e vários caixotes do lixo foram incendiados, e um grupo tentou incendiar, sem sucesso, uma bomba de gasolina.
"Não vais filmar lá para cima"
Foi também na Portela que uma equipa de reportagem da CNN Portugal foi obrigada a fugir quando se encontrava em direto. Carolina Resende Matos e Guilherme Agostinho estavam no bairro da Portela, em Carnaxide, onde se via um grupo a "incendiar pneus, com bidões de gasolina e pegavam fogo a tudo", quando foram abordados por um morador que os quis impedir de filmar naquele local.
"Ele estava numa, não percebi bem, se estava numa de nos defender, se também estava do lado deles. Parecia-me que eram mistas as duas coisas. Eu disse-lhe 'desculpa, tu não és dono do bairro, nós estamos a fazer o nosso trabalho. Ele, estou-te a dizer, não vais filmar lá para cima'. Nós percebemos ali que não tínhamos grandes condições, mas entretanto aquilo acalmou. O fogo que estava no meio da estrada também estava quase extinto. E durante algum período de tempo ouvimos vários tiros. Mas nós, aparentemente, estávamos em segurança, tínhamos o carro também em segurança para poder sair", conta a jornalista.
No entanto, a aparente segurança terminou assim que Carolina e Guilherme se colocaram em posição de direto e a jornalista vê um indivíduo a vir na direção da equipa.
"Vi o Guilherme a fugir. Pensei que ele ia entrar no carro e fechávamos e seguíamos, mas o Guilherme desapareceu. Eu entrei dentro do carro, vi que ele não vinha e fechei-me. Desapareceu o Guilherme, eu pensava que eles estavam a espancá-lo ou alguma coisa do género, porque eu pensava até que ele tinha fugido para trás do carro e só depois é que eu percebi que ele fugiu para a frente, mas eu não o vi. Eram uns sete ou oito a tentar partir o vidro, a mandar-me abrir o carro. Eu dizia que não tinha as chaves, depois eles diziam 'vai-te embora, vai-te embora, vai-te embora', eu disse 'eu não tenho as chaves' porque o Guilherme levou as chaves com ele no bolso. Eu fiquei fechada dentro do carro, a tentar acalmá-los e ao mesmo tempo a tentar perceber o que é que eu fazia, porque eu não tinha como sair do carro, eles estavam a tentar partir os vidros, um deles estava a tentar partir com o cabo da faca. Era uma faca enorme", conta Carolina, acrescentando que o grupo pensava que ela era polícia.
Quando conseguiu esclarecer que era jornalista, o grupo voltou a mandar Carolina sair do carro e esta tentou fugir.
"Pensei, ou eles me partem o vidro e entram, e matam-me aqui, ou enchem-me de porrada, ou eu saio, e pelo menos há ali moradores, e vou tentar fugir de alguma forma. Saí do carro, eles não me tocaram, disseram só 'vai, vai, vai, vai, vai, vai para ali para o pé deles'. E eu fui em direção ao prédio, para os moradores que disseram 'venha para aqui, venha para aqui', abriram uma porta do prédio e me mandaram para o interior", conta.
O carro, de onde Carolina escapou, acabaria vandalizado e furtado, com tudo o que estava lá dentro a ser levado. Quanto a Guilherme, Carolina continuava sem saber dele, até que recebeu informação da redação de que o repórter de imagem estava bem, junto da polícia.
A jornalista, que continuava longe do repórter de imagem, acabou por sair da ajuda dos moradores e da polícia - como sugerido pelo cabecilha do grupo que cercou a equipa de reportagem e que lhe disse para chamar a polícia para emboscada no bairro.
"Eu não sabia se o Guilherme estava bem, apesar de já saber que ele estava junto da polícia, mas não sabia se ele tinha ficado ferido ou não, e nisto um senhor, que era o proprietário da casa [onde Carolina se refugiou], diz: 'Venha comigo que eu levo, eu tiro-a daqui. Eu tiro-a, não se preocupe'. Entretanto, chega um outro senhor, que tinha acabado de chegar do trabalho, que diz 'eu levo-a lá. Eu levo-a, não se preocupe'. Eu disse-lhes que só precisava que me colocassem numa rua que depois corria para junto da polícia. E o senhor levou-me até uma rua e a polícia já estava no final da rua à minha espera", explica.
Odair Moniz, de 43 anos, foi baleado por um agente da PSP na madrugada de segunda-feira, no Bairro da Cova da Moura, na Amadora, e morreu pouco depois, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.
Segundo a direção nacional da PSP, o homem pôs-se “em fuga” de carro depois de ver uma viatura policial na Avenida da República, na Amadora, e “entrou em despiste” na Cova da Moura, onde, ao ser abordado pelos agentes, “terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca”.
A associação SOS Racismo e o movimento Vida Justa contestaram a versão policial e exigem uma investigação “séria e isenta” para apurar “todas as responsabilidades”, considerando que está em causa “uma cultura de impunidade” nas polícias. De acordo com os relatos recolhidos no bairro pelo Vida Justa, o que houve foram “dois tiros num trabalhador desarmado”.
Na segunda-feira, o Ministério da Administração Interna determinou à Inspeção-Geral da Administração Interna a abertura de um inquérito urgente e também a PSP anunciou a abertura de um inquérito interno para apurar as circunstâncias da ocorrência. O agente que baleou o homem foi entretanto constituído arguido, indicou fonte da Polícia Judiciária. A CNN Portugal apurou, também, que a investigação da PJ aponta para excesso de legítima defesa da PSP.