Corrupção. "Portugal tem este problema, as relações institucionais são sobretudo mediadas por afetos e isso impede denúncias"

9 dez 2022, 07:00
André Corrêa d’Almeida

No dia Internacional Contra a Corrupção, André Corrêa d’Almeida, fundador da associação All4Integrity e professor na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, fala com a CNN Portugal sobre as dificuldades no combate à corrupção e os mecanismos que podiam tornar a luta mais eficiente

Uma entidade independente que faça a pré-seleção de currículos para o cargo de ministro ou uma ferramenta de inteligência artificial que permita imediatamente detetar ligações familiares, económicas ou políticas de quem venha a ser nomeado para cargos públicos. Estas são algumas das propostas de André Corrêa d’Almeida, fundador da associação All4Integrity e professor na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, para combater de forma eficaz a corrupção em Portugal. 

A menos de dez dias da entrega do Prémio Tágides 2022, uma iniciativa da associação que fundou para premiar personalidades inspiradoras no âmbito da prevenção e combate à corrupção em Portugal, André Corrêa d’Almeida sublinha que a população não pode estar à espera que o Parlamento ou o Governo encontrem soluções, “porque isso forçaria uma autorregulação” do sistema, lamentando, por isso, que nos segundos mandatos os presidentes da república não tenham tomado a problemática como a sua prioridade principal.

Em entrevista à CNN Portugal, explica ainda como muito dos casos mediáticos ligados à corrupção e ao tráfico de influências estão ligados a uma cultura de “afetos” em ambiente institucional que não incentiva à denúncia.
 

As organizações internacionais, nomeadamente a Transparência Internacional, têm alertado para uma estagnação de Portugal no índice de perceção de corrupção. Em 2021, mantivemo-nos na 33.º posição. Mas observamos mudanças na forma como se luta contra este fenómeno. Talvez uma das mais destacadas foi a transposição para a ordem jurídica nacional da diretiva europeia “Whistleblower”. Ainda assim, tem alertado nos seus trabalhos que como povo somos demasiado conformistas. Isto tem impacto sobre a eficácia da criação destes canais de denúncia?

É evidentemente um movimento na direção certa, mas a diretiva exige que, por exemplo, no setor privado haja mais de 50 trabalhadores para que a empresa adote os canais de denúncia e a percentagem de empresas em Portugal que têm mais de 50 trabalhadores é de 0,6%. Portanto, quando a diretiva impõe que empresas criem mecanismos internos de denúncia está a regular para um número muito pequeno de empresas. Isto é altamente insuficiente. Por outro lado, a lei ao nível dos municípios exige que tenham pelo menos 10 mil cidadãos, o que deixa de fora 40% das autarquias. 

O que se pode fazer?

Crie-se uma campanha nacional para que os trabalhadores de empresas ou municípios não abrangidos pela lei tenham conhecimento dos mecanismos externos, que já existem há muito tempo, por exemplo dentro da Procuradoria-Geral da República.

E, referindo-me aos que são abrangidos pela diretiva, crê que há um conformismo na hora de agir que perturba a sua eficácia?

As relações em Portugal são sobretudo mediadas pelos afetos, quando chegamos à altura da denúncia e da acusação, ficamos cheios de reservas, porque está tudo muito personalizado. Portugal tem esse problema, as relações institucionais são sobretudo mediadas por afetos. 

E esses afetos são um revés no combate à corrupção?

Sim, porque as relações institucionais acabam por ser muito mediadas por afetos e isso leva-nos a problemas como o nepotismo, tráfico de influências. O caso português é gritante. Uma crítica em ambiente de trabalho é sentida imediatamente como um ataque ao carácter, que muitas vezes não é. E quando pensamos em denunciar, quando pensamos em contratar, a menos que as regras estejam muito bem definidas, vamos acabar por ser influenciados pelos afetos. 

Temos capacidades para proteger os denunciantes?

Nada indica que não tenhamos, mas é uma experiência recente. Esperamos que as pessoas a utilizem. Esta medida terá de ser avaliada tanto quanto à sua adesão por parte dos órgãos e entidades públicas, como pelos privados. E teremos de ver se, ao denunciar, o denunciante é protegido. Mas não há uma tradição muito boa em Portugal de avaliar as políticas públicas.

Há a noção de que o medo e a indiferença impedem denúncias. Mas em Portugal podemos falar num certo medo de exclusão social também?

As pessoas desinteressam-se porque há menor incentivo do que nos outros países para que se denuncie. Num país em que o sistema judicial seja melhor, há mais incentivos para denunciar, porque a probabilidade de a minha denúncia ter consequências é maior. Agora, em Portugal, somos todos tios, ou primos ou cunhados uns dos outros. Por isso é que já defendi que não vejo nenhuma razão para que os ministros tenham de ser de confiança política. É uma falácia. Por exemplo, se queremos um ministro, então que se abra concurso público, contrate-se uma entidade independente que podia apresentar os três melhores currículos ao primeiro-ministro eleito e depois selecionaria um dos três para ministro. Era um contributo para despersonalizar as relações políticas.

Como um privado o faria?

Exatamente. A única razão pela qual os ministros são escolha política, não tem nada a ver com a eficiência das organizações, mas sim porque funciona como um pagamento de favores. Um obrigado por me teres ajudado a seres eleito, mas a isso acrescenta depois todos os problemas dessa afetividade. 

E com uma mudança a nível da penalização pelos crimes de corrupção e com mais recursos alocados ao sistema judicial, poderíamos esperar mudanças significativas e rápidas?

Há hipóteses nesse sentido. Uma seria que apesar da ineficiência dos tribunais, o facto de a Procuradoria-Geral da República ser atuante e muitos casos virem a lume retraia futuros prevaricadores, ou alguns deles, de se envolverem em atividade criminosa. Outro argumento seria que, apesar da existência de casos mediáticos e de um bom funcionamento da procuradoria-geral, como se instituiu um sentimento de impunidade, os comportamentos não se alteram. Estou em crer que, apesar de tudo, o potencial prevaricador sente que é cada vez maior a probabilidade de ser apanhado. Apesar de tudo, o custo-oportunidade de cometer o crime, pelo menos ao nível do prestígio da pessoa, é maior.

A evolução desse tipo de alerta que fala aconteceu após a Operação Marquês? Foi o momento definitivo?

Diria que, quando até o ex-primeiro-ministro é assim implicado, esse é o momento de transição. E há mais alertas no ar. Sinto que, apesar de tudo, há mais bandeiras vermelhas. Mas uma leitura mais cínica diria que eles se estão a borrifar para o prestígio e que só querem beneficiar a nível económico. Mas para isso era preciso ir perguntar aos criminosos se compensou. 

Esta semana foram publicados os resultados de um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos que tem algumas conclusões interessantes sobre a perceção da corrupção tanto por parte da população em geral, como por parte da classe política. Uma das conclusões mostra que a opinião pública tolera mais os políticos que são corruptos e violam a lei, mas que apresentam "obra feita", do que aqueles que não fazem nada, por assim dizer. Como olha para estes resultados?

Visto assim, dá a ideia de que o português aceita o corrupto, desde que faça a obra. Isso é uma forma simplista de ver a coisa. Vejo de outra forma. Todos são corruptos, portanto vou votar naquele que faz. A alterativa era não votar e, assim, não surpreende que o grau de absentismo seja cada vez maior. Se fizermos esta leitura, observamos que, como todos são iguais, acaba por a variável do ser ou não ser corrupto, do ponto de vista estatístico, não interessar.

Há um exemplo disso no caso de Isaltino Morais?

Esse é o caso clássico e que permite também perceber a questão dos afetos. O caso do Isaltino Morais funcionou porque tem uma campanha de comunicação muito boa e as pessoas estão mal informadas e assimilam essas campanhas e depois, enfim, tem uma ligação muito forte à comunidade. 

Outra das conclusões do estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos prende-se com a diferença como os cidadãos e os políticos olham para a ética e para a lei. Os políticos tendem a reconhecer a lei como o único critério orientador da sua conduta, sendo que os cidadãos querem que estes não se envolvam em práticas que ainda legais, podem ser eticamente impróprias. Não lhe parece que haja aqui uma disfuncionalidade entre os que servem e os que são servidos? 

Claro. Todos gostamos dos filmes do faroeste. O bandido não quer regras, o bandido quer andar à solta, de pistola à cintura, a disparar sem impunidade. Mas acho positivo que a sociedade civil seja inspirada e balizada pela ética. 

Os detentores de cargos públicos são capazes de malear esta moralidade e de normalizar a má conduta?

Esse tema tem uma grande importância ligado a um outro, que é a importância dos segundos mandatos dos Presidentes da República. Essas pessoas têm uma oportunidade de já libertos das pressões políticas de um terceiro mandato que não existe, conseguirem estar muito empenhados em combater a corrupção. Por isso, aponto também responsabilidades aos presidentes da república que, ao longo da história recente, não se empenharam nessa causa. 

E as elites políticas parecem estar dispostas a apoiar a adoção de medidas de autorregulação?

Muito timidamente. Note-se o tempo que demorou a operacionalizar a nova entidade de luta contra a corrupção, decorreram mais de três anos, ou a necessidade de legislar ou regulamentar o lobby. É uma coisa sistémica extraordinária, porque há tanta gente a beneficiar que não há incentivo à autorregulação.

As soluções não podem também surgir da Assembleia da República ou do Governo?

Não acredito, porque isso forçaria uma autorregulação. 

Mas sim vindo do Presidente da República? 

Era uma forma, mas isso não vai acontecer. E até que tenhamos agora um presidente eleito para um segundo mandato, era fazermos as contas. A outra força é a sociedade civil. 

Considera que têm sido dados passos em frente ao nível da escolaridade para uma maior consciencialização sobre a corrupção e as boas práticas para a evitar?

Sim. É uma questão geracional. As gerações mais novas não vão tolerar isto e revelam grandes graus de inconformidade. Tenho grande esperança, porque é uma geração que vai sofrer muito mais e existe também um maior distanciamento do período de Abril e das condições favoráveis que aconteceram nos 20 anos seguintes. É intuitivo admitir que há cada vez menos tolerância para com este regime.

A All4Integrity tem investido na criação de redes de investigação na área da Inteligência Artificial e Machine Learning para a prevenção e combate à corrupção. Como é que isto pode mudar o paradigma no combate à corrupção?

O nosso espanto quando encontramos estes problemas com as nomeações que têm acontecido, como o tio que nomeia a tia ou o marido que nomeia a mulher, é uma coisa que revela bem o atraso dos nossos sistemas de fiscalização. Deveria haver formas de inserir o nome de um potencial candidato para um cargo político e de verificar quais as ligações familiares, económicas, políticas com alguém hierarquicamente superior. São ferramentas que, se houvesse o mínimo de investimento e de interesse, já teriam sido criadas. Como não foram, será a sociedade civil a criá-las.

Da mesma forma que a corrupção se torna politizada quando os políticos a utilizam para se manterem no poder, também as iniciativas anticorrupção podem sofrer dessa politização?

Sim, claro. Porque sofrem do mesmo problema tribal que sofre a vida democrática do país. Em vez de os atores se envolverem positivamente em torno de soluções, vão manter-se nos seus quartéis e nas suas aldeias tribais políticas, não gerando os consensos necessários para as reformas e para as medidas que a luta para a corrupção exige. Quando reflito na associação que fundei, o que verifico é que um dos principais aspetos foi ter despolitizado o envolvimento na luta contra a corrupção.

Quando surgiu a ideia para o Prémio Tágides, pensou nesta problemática?

Sentiu-se a necessidade de pôr os portugueses a pensar em quem os inspira em contraposição com o prevaricador e foi um exercício muito mais difícil do que aquilo que se podia imaginar. Porque, apesar de tudo, na sociedade portuguesa há uma baixa propensão a pensar fora da tribo e da família - Portugal tem dos níveis mais baixos de participação em atividades de voluntariado da Europa Ocidental. Isso não quer dizer que não haja pessoas que os inspirem, quer dizer que não conseguimos imaginar que, para além do pai e da mãe, possam existir este tipo de pessoas. É quase um sentimento de vergonha sentir-se inspirado por alguém que não era do seu sangue. Uma das críticas que o Prémio Tágides tem recebido é que não se combate a corrupção com heróis, mas com instituições. Claro que em última análise precisamos das instituições, de regras e mecanismos, mas quem é que lidera estes processos de mudança? São pessoas na sua capacidade empreendedora, é um disparate completo esta negação da ideia que um indivíduo não poder fazer a diferença. Lidamos mal com isto, mas depois dizemos que somos muito adeptos da meritocracia

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