Por que razão alguns desertores da Coreia do Norte regressam a um dos regimes mais repressivos do mundo

CNN , Yoonjung Seo e Julia Hollingsworth
5 mar 2022, 21:00
Bandeira da Coreia do Norte. Foto: AP Photo/Cha Song Ho

Ele arriscou a vida ao fugir de um dos regimes mais repressivos do mundo, percorrendo o trecho militarizado protegido por cercas de arame farpado. Mas um ano depois, ele regressou, pelo mesmo caminho.

Mais de um mês depois de o homem ter atravessado a zona desmilitarizada da Coreia do Sul para a Coreia do Norte, grande parte da sua vida nos dois países permanece um mistério, bem como os seus motivos para regressar à nação isolada, governada por Kim Jong-un.

Os média sul-coreanos anunciaram que o desertor - cujo nome não foi oficialmente revelado, embora colegas desertores tenham dito que se chamava Kim Woo-jeong na Coreia do Sul – era um antigo ginasta muito reservado. Segundo a Polícia da Coreia do Sul, ele trabalhou na construção civil, está na casa dos 30 anos, e ganhava dinheiro com o trabalho braçal.

O caso do homem é raro. Apesar de mais de 10 mil desertores norte-coreanos terem ido para a Coreia do Sul na última década, apenas 30 regressaram a casa, onde se deparam com a possibilidade de serem condenados a campos de trabalhos forçados, segundo dados oficiais sul-coreanos.

Mas desertores e defensores dizem que mesmo que a justificação do homem para deixar a Coreia do Sul não seja clara, o facto de alguns desertores norte-coreanos estarem dispostos a regressar a um dos países mais politicamente isolados do mundo só demonstra o quão difícil pode ser a vida na Coreia do Sul para os norte-coreanos.

Por que razão as pessoas desertam

Desde que a Guerra da Coreia terminou com um armistício em 1953, as Coreias do Norte e do Sul foram separadas por uma fronteira quase impenetrável, impedindo qualquer pessoa de atravessar para o outro lado.

Nas décadas seguintes, a Coreia do Sul modernizou-se, tornando-se um dos países mais ricos e mais tecnologicamente desenvolvidos do mundo. Enquanto isso, a Coreia do Norte tornou-se cada vez mais isolada, com os cidadãos sujeitos a pobreza generalizada e liberdades básicas limitadas.

Portanto, não é difícil de perceber o que leva as pessoas a quererem fugir.

Desde 1998, mais de 33 mil pessoas desertaram da Coreia do Norte para a Coreia do Sul, segundo o Ministério de Unificação da Coreia do Sul. No entanto, os números diminuíram nos últimos anos, depois de Kim ter imposto controlos fronteiriços ainda mais rigorosos para impedir a disseminação da covid.

Em ocasiões muito raras, os desertores – como o antigo ginasta – conseguem fugir pela zona desmilitarizada fortemente protegida, que separa a Coreia do Norte da Coreia do Sul. A grande maioria, como o desertor Kang Chun-hyuk, foge pela extensa fronteira da Coreia do Norte com a China.

A família de Kang começou a viagem em 1998 quando ele tinha 12 anos, e só chegaram à Coreia do Sul alguns anos depois.

Estátuas dos ex-líderes norte-coreanos Kim Il Sung e Kim Jong Il

Na Coreia do Norte, Kang recorda-se de ter pouca comida para sobreviver.

Por vezes, a família transformava uma única porção de macarrão seco numa refeição que o alimentaria e aos pais durante uma semana.

“Não valia a pena ir à escola, por isso, eu e os meus colegas de turma roubávamos comida como milho ou batatas”, disse ele.

Segundo um estudo a três mil pessoas libertadas este ano pela Fundação para os Refugiados da Coreia do Norte, a escassez de alimentos é um dos motivos mais comuns para a deserção, com perto de 22% que afirmam que foi por essa razão que desertaram. A razão mais comum, com 23%, era as pessoas não gostarem de ser controladas ou monitorizadas pelo regime norte-coreano.

Quando chegam à Coreia do Sul, existem medidas para os apoiar. Os desertores frequentam um programa educativo obrigatório de 12 semanas para os ajudar a se adaptarem à vida na sua nova casa. Eles recebem apoio financeiro e alojamento, bem como acesso a serviços de saúde e de emprego.

Mas mesmo assim, a vida para os desertores é, muitas vezes, difícil.

Encontrar trabalho e enquadrar-se

Antes de Kang Na-ra – não tem qualquer relação com Kang Chun-hyuk – ter desertado em 2014, ainda adolescente, ela pensou que a sua vida na Coreia do Sul refletiria os dramas sul-coreanos que ela via em segredo na cidade norte-coreana de Chongjin.

Mas a Coreia do Sul era bem diferente do mundo romântico que ela tinha visto no ecrã.

A mãe de Kang Na-ra desertou primeiro do que ela – ela não quer revelar o motivo – mas a vida delas em conjunto na Coreia do Sul não foi o que ela esperava.

Fronteira entre as duas Coreias

A mãe trabalhava longas horas e estava muitas vezes fora de casa, a dançar num grupo de desertores norte-coreanos para fazer face às despesas. Apesar de Na-ra falar a mesma língua, ela era solitária e tinha poucos amigos na Coreia do Sul.

Outro desertor, que pediu para não ser identificado por receio de repercussões contra a família que permanece na Coreia do Norte, disse que também se debateu com o choque cultural quando desertou há alguns anos, e que até os letreiros brilhantes e coloridos e a abundância de palavras em inglês usadas pelos sul-coreanos o faziam sentir desconfortável.

“Não vemos coisas dessas na Coreia do Norte”, disse o desertor. “De início, eu não gostava de muitas coisas na Coreia do Sul.”

Ele também disse que muitos desertores tiveram dificuldade em arranjar trabalho.

As estatísticas de 2020, divulgadas no ano passado pelo Ministério da Unificação da Coreia do Sul, apuraram que os desertores tinham uma taxa de desemprego mais elevada do que a população em geral, com 9,4% de desertores desempregados, em comparação com 4% da população em geral em dezembro de 2020.

“Conseguir um bom emprego é importante, mas até mesmo os sul-coreanos que são criados e educados aqui têm dificuldade em obter um bom emprego”, disse ele. “Bem pode imaginar o quão difícil poderá ser para os desertores norte-coreanos.”

A família de Kang Chun-hyuk recebeu um apartamento do Governo quando chegaram à Coreia do Sul em 2001, depois de terem estado três anos na China. Mas o seu cerrado sotaque norte-coreano dificultou o seu enquadramento na escola e acabou por desistir de estudar. Ele efetuou trabalhos braçais até aos 25 anos, sem saber se viria a fazer outra coisa.

Para outros, a dificuldade de adaptação e de encontrar trabalho pode ter consequências fatais. Em 2019, a desertora norte-coreana Han Sang-ok foi encontrada morta no apartamento com o filho de 6 anos, depois de não ter pagado as contas durante meses.

Um funcionário das águas, que lia a contagem do hidrómetro, reparou num cheiro desagradável que vinha do apartamento e chamou a Polícia, que encontrou dois corpos em estado avançado de decomposição e um frigorífico vazio, levando o agente policial a apontar a fome como a causa suspeita da morte.

Dores da separação

Mas nem todos os desertores sonham com uma vida brilhante na Coreia do Sul.

Kim Ryon-hui é um caso raro de uma desertora que chegou ao país quase por acidente.

A mulher de 54 anos, que tinha uma vida relativamente requintada na Coreia do Norte, foi para a China em 2011 para visitar familiares e à procura de cuidados médicos para uma doença hepática, mas quando chegou, soube que os médicos chineses exigiam o pagamento adiantado.

Kim Ryon-hui quer desesperadamente voltar para a Coreia do Norte 


Kim disse que um corretor lhe disse que, amiúde, os chineses iam para a Coreia do Sul para ganharem dinheiro. Por isso, ela inscreveu-se numa viagem para a Coreia do Sul e deixou o passaporte norte-coreano com a corretora, não percebendo que isso significaria não poder regressar a casa.

Kim sente alguma hostilidade por parte dos sul-coreanos, sobretudo quando o líder norte-coreano dispara mísseis. Ela disse à CNN que teve dificuldade em se adaptar a uma sociedade capitalista, governada por pressões de mercado, e em perceber o que, na visão dela, é um “mundo cão”.

“É como se fôssemos azeite e a Coreia do Sul água, por isso, não podemos misturar-nos”, disse ela.

É um sentimento comum entre os desertores. Segundo um estudo da Fundação para os Refugiados da Coreia do Norte, enquanto a maioria das pessoas está feliz na Coreia do Sul por poder ter uma vida livre e um salário correspondente ao número de horas de trabalho, muitos estão infelizes com o nível de competitividade intensa.

Mas o mais difícil para Kim é estar longe da família. A Lei sul-coreana impede qualquer comunicação com pessoas na Coreia do Norte e os sul-coreanos não podem viajar até lá. A menos que Kim fuja para a Coreia do Norte ou as duas Coreias alcancem um acordo de paz, ela tem poucas hipóteses de voltar a ver a família.

Kim viu a filha pela última vez quando ela tinha 17 anos. Agora, a filha tem 28. Kim apenas consegue comunicar com a família através de jornalistas que levam cartas e presentes dela para a Coreia do Norte, mas isso não tem sido possível desde que a Coreia do Norte fechou as suas fronteiras devido à pandemia da covid-19 em 2020.

"É assustador estar sozinha”, disse ela. “Quando vejo luzes acesas noutros apartamentos à noite, imagino famílias a jantar. É a sensação mais triste e solitária.”

Por que razão os desertores regressam ao país

Apesar das dificuldades sentidas na Coreia do Sul, a grande maioria não regressa ao país de origem. Isso deve-se ao facto de os benefícios de ficar na Coreia do Sul serem muito maiores do que os riscos que enfrentam se regressarem à Coreia do Norte.

Seo Jae-pyeong, o diretor da Associação de Desertores Norte-Coreanos, desertou em 2001. Nos 20 anos em que tem vivido na Coreia do Sul, só conheceu uma desertora que regressou à Coreia do Norte.

Ela era médica com família na Coreia do Norte, que não se deu conta de que o irmão a levava para a Coreia do Sul, disse ele.

“Ela não tinha motivos para desertar e não se habituou à vida na Coreia do Sul”, disse Seo.

Ele questionou quantos dos 30 desertores, que regressaram à Coreia do Norte, haviam partido de livre e espontânea vontade. Ele disse que alguns poderão ter sido chantageados ou raptados perto da fronteira entre a China e a Coreia do Norte.

Outros podem ter tido grandes dificuldades financeiras que os deixaram com poucas alternativas.

Lee Na-kyung, uma ativista desertora, que defende pais solteiros e pessoas com deficiência na Coreia do Norte, disse que, quando muitos desertores chegam à Coreia do Sul, já têm grandes dívidas com corretores que os ajudaram a atravessar a fronteira.

Alguns desertores entregam o dinheiro do apoio governamental aos corretores, ficando mais endividados, enquanto se esforçam por arranjar trabalho, segundo Lee, que fugiu da Coreia do Norte em 2005, depois de o marido ter sido acusado de um crime que ela diz que ele não cometeu.

Para alguns, as dificuldades da vida na Coreia do Sul não correspondem às suas expetativas. Ela conheceu um homem, um oficial militar de alta patente na Coreia do Norte, que só conseguiu arranjar trabalho numa sucata na Coreia do Sul. “Ele disse que preferia morrer em casa do que morrer como sucateiro”, disse ela.

O que se segue?

Mais de um mês depois de o ginasta Kim ter voltado para a Coreia do Norte, não se sabe se ainda está vivo.

Apesar de o exército sul-coreano o ter visto em imagens de videovigilância a atravessar os arames farpados para a zona desmilitarizada, não conseguiu detê-lo, disse o chefe do estado-maior das Forças Armadas sul-coreanas, Won In-Choul, numa conferência em janeiro.

Ele foi visto quatro vezes nas câmaras de videovigilância no lado sul da fronteira e uma vez, depois de ter atravessado a Linha de Demarcação Militar.

Numa dada altura, os soldados confundiram-no com um desertor que provinha do Norte. Noutra altura, foram à procura dele. Mais tarde, não encontraram vestígios dele, exceto uma pena presa no arame farpado que desconfiavam pertencer ao casaco de penas.

Não houve movimentos invulgares por parte do exército norte-coreano quanto ao incidente, disse o porta-voz do ministério da Defesa sul-coreano, Boo Seung-chan, no mês passado noutra conferência.

Apesar de os meios de comunicação estatais norte-coreanos se terem vangloriado de antigos desertores terem regressado ao país, não houve qualquer menção ao desertor do mês passado nas publicações de notícias estatais.

Para quem está na Coreia do Sul, é um lembrete de que as políticas do país para ajudar desertores poderia ser melhorada. Na semana passada, o Governo sul-coreano anunciou que iria formar uma equipa nova para aumentar a segurança dos desertores, salientando que, apesar dos atuais esforços, alguns desertores ainda passavam por dificuldades de adaptação à sociedade.

Os defensores de desertores tiveram dúvidas quanto à eficácia das novas medidas, realçando que as medidas de apoio em vigor simplesmente não funcionam.

Até mesmo os desertores que parecem ter feito a sua transição com sucesso, por vezes debatem-se com o impulso de voltar à Coreia do Norte.

Dois anos depois de ela ter desertado, Kang Na-ra disse à mãe que queria regressar, mas não quis arriscar a vida, depois de ter passado por muito para chegar à Coreia do Sul.

Agora Kang, com 25 anos, é uma personalidade televisiva e YouTuber com mais de 300 mil subscritores que veem os vídeos dela sobre a vida na Coreia do Norte. O seu rendimento é instável, mas pelo menos desfruta da vida.

"Ainda hoje me questiono se tomei a decisão certa”, disse ela. “A vida aqui é difícil.”

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