Há várias teorias sobre por que razão Kim Jong-un apresentou agora a sua filha ao mundo

21 nov 2022, 09:15
Filha de Kim Jong-un aparece pela primeira vez em público

Agência de notícias norte-coreana divulgou mais imagens de Kim com a sua “adorada filha”. Para mostrar a futura “grande líder”? Ou para dar a Kim a imagem de chefe de família preocupado com a segurança dos mais novos?

O mundo já tinha visto Kim Jong-un de blusão de cabedal e óculos escuros a avançar à frente de um gigantesco míssil, em estilo Top Gun, já o tinha visto sorridente a observar um foguete a levantar voo, já o tinha visto de binóculos a perscrutar o infinito, rodeado de generais, ladeado de soldados, perante computadores cheios de botões, em frente a ecrãs brilhantes, em centros de comando, em hangares, em pistas de aviação. Só nunca tínhamos visto Kim Jong-un num local de testes de mísseis de mãos dadas com a filha.

A filha? Na verdade, o mundo nem tinha a certeza se Kim Jong-un tinha uma filha. Ou filhos. Sobre Kim Jong-un, para além da sua ascendência - que é a única razão por que tem o poder que tem -, sabe-se que terá entre 38 e 40 anos (mas não há certeza absoluta), que é casado com Ri Sol-ju, e agora sabe-se que, sim, tem uma “adorada filha”. Não há certeza sobre a sua idade, nem sobre o seu nome, embora seja identificada como Kim Ju-ae. Mas não há qualquer informação oficial sobre se esse será o nome da criança vista nas fotos agora divulgadas. 

O nome Kim Ju-ae foi revelado em 2013, quando o antigo basquetebolista norte-americano Dennis Rodman, que se tornou amigo de Kim Jong-un, visitou Pyongyang e privou com o ditador norte-coreano e a sua família. Contou, então, que tinha pegado ao colo uma filha do casal presidencial, chamada Kim Ju-ae. A criança era, então, ainda bebé - por isso há dúvidas se será a descendente mais velha do ditador, pois os serviços secretos da Coreia do Sul acreditam que Kim e Ri tiveram o primeiro bebé em 2010. Ter-se-á seguido outra criança em 2012 ou 2013 (será a tal que Rodman pegou ao colo) e outra em 2017. Tirando esta filha, não se conhece o género da restante descendência.

Porquê agora?

A existência de pelo menos uma descendente foi agora oficialmente confirmada, com a divulgação pela agência de notícias norte-coreana de várias fotos de Kim com a “adorada filha”. As primeiras fotos surpreenderam o mundo no sábado, e no domingo a agência estatal divulgou mais algumas. Numa fotografia vê-se Kim a abraçar a filha por trás, enquanto ambos observam um ecrã, e noutra o ditador segura a criança com o braço esquerdo, enquanto parece celebrar com responsáveis militares o lançamento do ICBM. Numa outra imagem, Kim está a caminhar ao lado da sua filha e da mulher, e ao fundo as tropas aplaudem em comemoração. As primeiras imagens mostravam Kim e a filha, de sapatos vermelhos e blusão branco, caminhando de mão dada na base onde o míssil foi lançado.

A razão por que Kim decidiu agora aproveitar o lançamento do mais poderoso míssil balístico intercontinental (ICBM) do arsenal norte-coreano para apresentar ao mundo a sua filha é um mistério que os especialistas no regime de Pyongyang tentam esclarecer. Há várias teorias, todas relacionadas com a imagem que Kim quer projetar e mensagem que pretende passar neste momento em que faz frente a quase todo o mundo e avança com sucessivos ensaios de mísseis e se prepara para retomar o seu programa nuclear. 

Shreyas Reddy, do NK News, que se dedica em exclusivo à monitorização do que se passa na Coreia do Norte, disse ao Washington Post que a primeira aparição pública da filha de Kim “em tão tenra idade é em si mesma significativa, e uma ruptura com a tradição. Mas destaca-se ainda mais o facto de ter sido apresentada ao país, bem como ao mundo em geral, num evento tão proeminente como o lançamento do maior míssil da Coreia do Norte". Ou seja, "embora possamos dizer que se trata definitivamente de um momento significativo, nesta fase inicial não podemos ter a certeza de qual é o objectivo".

Eis as principais teorias veiculadas por analistas da situação norte-coreana em diversos órgãos de comunicação social asiáticos:

  1. A sucessora

"A primeira coisa [a notar] é que esta rapariga será a sucessora da Kim Jong Un", diz um antigo alto funcionário norte-coreano, que desertou para o Sul, ouvido pelo NK News. “Como filha de Kim, ela será ‘aceite’ como líder do país de uma forma que Kim Yo Jong [irmã do atual líder] não seria”, considera este antigo responsável governamental norte-coreano. 

Segundo o desertor do regime de Pyongyang citado pela NK News, Kim quererá, desde já, assinalar que a sua verdadeira herdeira é a filha, e não a irmã. “Graças ao seu ‘pedigree’, [a filha de Kim] seria capaz de ultrapassar as barreiras à entrada de mulheres numa liderança dominada pelos homens do sistema altamente patriarcal da Coreia do Norte”, acredita este antigo alto quadro do Partido dos Trabalhadores.

A Coreia do Norte é, na prática, uma ditadura hereditária: o país foi fundado pelo avô de Kim, Kim Il-sung, e o segundo líder foi Kim Jong-il, o pai do atual presidente. O “rumo natural” é que seja um descendente direto de Kim a suceder-lhe. Mas porquê assinalar já isso, quando Kim tem, no máximo, 40 anos?

A saúde do líder norte-coreano tem provocado muita especulação. Uma ausência de três semanas em 2020 alimentou rumores de graves problemas de saúde - quando reapareceu, Kim estava bastante mais magro e com sinais de que teria sido submetido a um procedimento médico. Este ano, voltou a ter ausências prolongadas.

Se o objetivo de Kim for indicar já a filha como sua herdeira política, ganham força as dúvidas sobre o seu estado de saúde. Recorde-se que o atual líder norte-coreano só começou a aparecer nos media estatais do país em 2010, cerca de um ano antes de suceder ao seu pai.

  1. Preparar o país para uma mulher na liderança

O facto de Kim ter mostrado ao mundo uma filha, e não um filho, pode ser um problema - nunca uma mulher chegou às posições mais altas da nomenclatura norte-coreana. Será essa questão que Kim quer acautelar desde já, fazendo-se acompanhar pela filha?

à semelhança do que acontece com o Partido Comunista Chinês, são poucas as mulheres no topo do partido único da Coreia do Norte, ou em posições de destaque no governo. Algumas conseguiram, quase todas de famílias poderosas e do círculo próximo do líder, mas continuam a ser excepções à regra. São os casos notáveis de Ri Sol-ju, que assumiu de facto o papel de primeira-dama, algo que nunca havia acontecido no país, e da irmã do ditador, Kim Yo Jong. Também a ministra dos Negócios Estrangeiros, Choe Son Hui, é uma exceção à regra segundo a qual o poder em Pyongyang é um “clube do Bolinha”.

Kim Yo Jong ganhou um grande protagonismo ao longo deste ano, ao mesmo tempo que o seu irmão ditador esteve longos períodos sem aparecer em público, o que levantou muita especulação sobre o seu estado de saúde. Yo Jong fez algumas das declarações mais inflamatórias contra a Coreia do Sul e os Estados Unidos no verão passado, e foi ela quem revelou que o irmão esteve doente com covid-19. O seu crescente protagonismo tem levado muitos a admitir que possa ser ela a próxima líder, caso os alegados problemas de saúde do ditador o obriguem a retirar-se ou se este morrer sem que algum filho ou filha chegue à maioridade.

Poderá uma mulher vir a liderar a Coreia do Norte? Sokeel Park, diretor nacional da ONG Liberty in North Korea, diz que existem "opiniões diferentes" entre os desertores norte-coreanos sobre essa questão. "Mas, se chegasse a isso, penso que poderiam fazer com que a linhagem de sangue se sobrepusesse ao patriarcado, da mesma forma que as rainhas herdam o poder através das famílias reais, apesar da cultura fortemente patriarcal na história da Coreia, e da humanidade em geral", diz o mesmo ativista.

Andrei Lankov considera que é possível que a filha de Kim lhe suceda, pois o atual líder norte-coreano é "diferente" dos antecessores e "muito mais tolerante quanto à ideia de as mulheres terem poder". Mas está por demonstrar que seja essa a razão por que levou a filha para o trabalho na sexta-feira passada.

  1. O chefe de família "normal"

A agência de notícias sul-coreana, Yonhap, avança uma outra explicação para o debute da jovem Kim sob os holofotes mediáticos. Kim quererá “forjar uma persona pública como líder orientado para a família”. Ou seja, uma forma de “humanizar” a sua imagem, tanto para consumo interno como externo. 

A agência de notícias de Seul nota que “estas fotos desenharam um forte contraste com o seu falecido pai, Kim Jong-il, que nunca foi acompanhado publicamente pela sua esposa” e, tão pouco, mostrava o jovem Kim Jong-un, que haveria de lhe suceder. Como se referiu acima, só cerca de um ano antes da morte de Kim Jong-il o seu filho começou a aparecer nos media estatais.

Não é de agora que Kim Jong-un tem um estilo de imagem pública diferente do do seu pai. Desde que chegou ao poder, em 2012, apareceu juntamente com a sua esposa em vários eventos públicos, incluindo atividades diplomáticas - causou sensação a presença de Ri ao lado de Kim numa visita oficial à China. E, em julho, Ri esteve ao lado de Kim num grande comício em Pyongyang, para celebrar o fim da II Guerra Mundial, e as lágrimas da primeira dama foram um dos factos noticiosos desse evento. O casal surgiu trajado de branco, em perfeita simbiose, e Ri aplaudiu com entusiasmo as críticas do marido ao novo presidente sul-coreano.

Andrei Lankov, diretor do Korea Risk Group e professor na Universidade Kookmin de Seul, nota que a tendência de Kim para "exibir" a sua mulher - e agora a sua filha - o distingue ainda mais do seu pai e do seu avô. "É mais provável que seja como um culto de celebridades reais", diz à NK News. "Ele viu essas atitudes na Europa”, e é possível que queira importar para o seu país um ambiente de “realeza do século XX, que é basicamente a realeza do estilo das celebridades".

Segundo os observadores ouvidos pela Yonhap, a presença de Ri ao lado do marido tem ajudado a criar uma imagem de Kim sendo o líder de um país "normal". Já as fotos com a filha terão como objetivo mostrar, tanto para fora como para dentro do país, a imagem de um líder que cuida da sua filha como os pais comuns. Num país que atravessa grandes dificuldades económicas, onde boa parte da população está subnutrida e onde os cuidados de saúde são quase inexistentes (e se desconhece o verdadeiro impacto da covid), Kim estará interessado em cimentar o apoio público apresentando-se como um homem de família e pai extremoso, que até leva a filha para “o trabalho”.

  1. Nuclear por várias gerações

Outro especialista ouvido pela Yonhap admite que a mensagem que Kim quer passar seja outra: o ditador norte-coreano quererá “racionalizar os programas nucleares e de mísseis do regime em nome da segurança dos jovens”. Ou, nas palavras de peritos citados pelo NK News, “um sinal de que a Coreia do Norte será um estado nuclear durante gerações”. 

Ouvido pelo site especializado em informação sobre o Norte, um antigo diplomata norte-coreano e atual deputado na Assembleia Nacional da Coreia do Sul, Thae Yong Ho, diz que há que ver a importância da filha de Kim Jong Un no contexto da sua primeira aparição num teste que visava "reforçar as forças nucleares". "A Coreia do Norte é uma dinastia. A revelação da filha [neste contexto] significa que a Coreia do Norte será um estado nuclear por várias gerações". 

Dito de outra forma: "O mundo deve renunciar ao seu sonho de desnuclearizar a Coreia do Norte" - esta é a mensagem subliminar das fotos de Kim com a filha no teste do “missil monstro” Hawsong-17.

  1. Uma prova de força

"É [uma prova] de confiança nas suas armas nucleares", diz Park Won-gon, professor da Universidade Ewha Womans, de Seul. "Quando a Coreia do Norte se preparou para provocações de alta intensidade ao lançar um míssil Hwasong-17, a liderança norte-coreana não apareceu [no local de lançamento], por receio de que as autoridades de espionagem sul-coreanas e americanas o pudessem detetar. No entanto, [agora] Kim trouxe a sua esposa e filha para o local de testes de mísseis, com base na forte convicção de que a Coreia do Sul e os EUA não podem tomar contra-medidas contra o seu país com armas nucleares", afirmou o académico ao jornal Korean Times.

Quando os Estados Unidos, a Coreia do Sul, o Japão, e outros aliados exigem sanções contra a Coreia do Norte na ONU, Kim não apenas continua os testes de mísseis como leva para o local a sua mulher e filha “amadas”, numa prova de força e de auto-confiança.

Segurança de que nada lhe poderá acontecer, nem à Coreia do Norte, graças ao poder recém adquirido com os novos mísseis e o arsenal nuclear. Ou seja, outra forma de reafirmar que as armas nucleares não são negociáveis, porque são a garantia definitiva de segurança para o país, para o regime e para o próprio Kim.

"Ao mostrar a sua filha num local de ensaio de mísseis, Kim está a mostrar a sua forte mas imutável determinação em responder às ameaças nucleares com armas nucleares", interpreta Tae Yong-ho, o desertor norte-coreano que se tornou deputado no Sul. 

Ou talvez seja, apenas, uma forma de celebrar em família “uma grande vitória”. "Penso que o objetivo aqui é fazer com que a audiência se relacione mais com o líder, para criar uma atmosfera de celebração em conjunto, talvez", admite Andrei Lankov, do Korea Risk Group.

Ásia

Mais Ásia

Patrocinados