Nem só o amor nos pode partir o coração

CNN , Sandee LaMotte
14 fev 2022, 19:00
Coração

Podemos realmente morrer de coração partido.

É raro, mas um golpe emocional repentino, como a morte de um ente querido, pode levar o coração a desenvolver uma forma oval invulgar, tornando-o incapaz de fazer o seu trabalho.

"Quando uma pessoa chega, o coração pode estar terrivelmente fraco. Pode mal estar a contrair. Num caso grave, a pessoa estaria internada nos Cuidados Intensivos em estado de choque e, sem a devida assistência médica, não sobreviveria”, disse Ilan Wittstein, professor assistente de Medicina na Universidade Johns Hopkins, que publicou um dos primeiros artigos sobre a síndrome do coração partido, também chamada miocardiopatia de stresse.

No entanto, quando o coração de Mary Brittingham se “partiu” pela primeira vez aos 53 anos, e depois novamente aos 56 e aos 69 anos, não teve nada que ver com a perda de alguém próximo e querido.

“Não fiquei de coração partido por causa de algo relacionado com o amor. O primeiro episódio foi resultado de uma surpresa - um choque, na verdade”, disse Brittingham, antiga professora de Direito da Universidade de Georgetown. “O segundo episódio foi de raiva, e o terceiro foi de medo.”

Em 2006, disseram a Brittingham que preparasse um brinde rápido para uns colegas que estavam a ser homenageados numa festa do corpo docente de Georgetown. De repente, ela ouviu o apresentador dizer: “Vamos ouvir três oradores esta noite, durante cerca de 15 minutos cada. E a nossa primeira oradora é a Mary Brittingham.”

“Foi um momento de verdadeiro: o quê?", lembra-se. “Fiquei completamente atordoada. Eu tinha de me levantar e ter um discurso pronto sobre os meus queridos colegas? Eu só tinha preparado duas linhas! E, de repente, senti uma pressão esmagadora no peito. Era muito doloroso, mas tentei ignorar e atribui a culpa à ansiedade.”

Atordoada e a sofrer, Brittingham conseguiu chegar ao estrado e falar durante alguns minutos: “Devo ter dito alguma coisa significativa porque recebi algumas gargalhadas”, disse ela enquanto se ria.

Mas quando a dor não melhorou com o passar da noite, ela foi ao hospital, temendo ter sofrido um ataque cardíaco.

“As minhas enzimas cardíacas estavam altas, portanto, fizeram uma ecografia e viram que eu tinha entrado em insuficiência cardíaca”, disse ela. “O meu pai morreu de insuficiência cardíaca aos 36 anos. Portanto, pensei: ‘Pronto, é agora.' Mas, no final de contas, eu não tinha tido um ataque cardíaco nem sofria de insuficiência cardíaca. Tinha síndrome do coração partido”.

O pote do polvo japonês

A primeira vez que Wittstein teve contacto com a miocardiopatia de stresse foi quando era um jovem médico assistente numa unidade cardiovascular, em 1998, e teve três casos invulgares consecutivos.

“Atendi três pacientes mulheres seguidas que tinham vivido algum tipo de evento emocionalmente stressante. A primeira tinha sido a morte da mãe, a segunda tinha estado envolvida num assustador acidente de viação e a terceira foi a um reencontro de surpresa. No entanto, cada uma delas chegou ao hospital com conclusões semelhantes nos seus ecocardiogramas”, disse Wittstein.

As imagens mostravam que o ventrículo esquerdo do coração de cada uma - que é a principal câmara que bombeia o sangue – tinha inchado para uma forma estranha que fazia lembrar um takotsubo, um pote usado pelos pescadores japoneses para apanhar polvos.

Batizada de miocardiopatia Takotsubo quando foi identificada pela primeira vez no Japão, em 1990, a síndrome não era muito conhecida nos Estados Unidos e pode ter sido alvo de diagnósticos errados, disse Wittstein.

Sintomas como suores, dores no peito e falta de ar podem ser os mesmos de um ataque cardíaco, disse ele. Mas, ao contrário de um ataque cardíaco, que normalmente é causado por artérias bloqueadas, aquelas primeiras pacientes tinham “as artérias coronárias normais e imaculadas”, com pouca ou nenhuma evidência de colesterol e placa.

Ainda mais estranho: apesar de as análises ao sangue mostrarem lesões extensas, os músculos do coração daquelas mulheres não ficaram permanentemente alterados ou danificados como acontece com um ataque cardíaco, disse Wittstein. Para muitos pacientes, o coração voltou ao normal passados alguns dias ou semanas.

"Nos primeiros anos, ficámos estupefactos com a rapidez com que víamos os corações a voltarem ao normal. Era quase como se estivessem a acordar”, disse ele. “Lembro-me de pessoas que foram transferidas para a nossa clínica porque pensavam que precisariam de um transplante de coração. E uma semana depois estavam em casa.”

“Naquela época, era algo completamente novo, mas quando reconhecemos as características clínicas da síndrome, começaram a aparecer casos por todo o lado”, disse ele.

Wittstein e a sua equipa começaram a estudar o fenómeno, publicando um dos dois artigos pioneiros sobre o tema, em 2005.

“Demos-lhe a alcunha de 'síndrome do coração partido' porque, na época, ninguém na Medicina acreditava que as emoções pudessem ter um impacto tão dramático no coração humano. E nós quisemos consciencializar as pessoas”, disse Wittstein.

Ativadores físicos

Hoje em dia, a ciência ainda não conhece ao certo a razão para a síndrome do coração partido ou o que leva algumas pessoas a terem episódios repetidos, disse Wittstein.

“Achamos que tem que ver com uma disfunção na resposta de luta ou evasão do corpo, a libertação de substâncias químicas como a adrenalina, a noradrenalina e a dopamina que o corpo usa para nos preparar para fugir ou ficar e lutar”, disse Wittstein.

Cerca de 2% das pessoas que são atendidas nas Urgências por ataques cardíacos podem ter esta síndrome, segundo as estimativas, e um estudo de 2020 descobriu que os casos estão a aumentar, especialmente entre as mulheres. O aumento do diagnóstico pode simplesmente dever-se a uma maior consciencialização entre os médicos sobre a síndrome, disse Wittstein.

Quase todas as pessoas que têm episódios de síndrome do coração partido são mulheres, disse ele, especialmente mulheres na pós-menopausa às quais falta estrogénio.

“Quando injetamos estrogénio num vaso sanguíneo, o vaso sanguíneo dilata-se, fica maior. Portanto, o estrogénio é um mediador muito importante na forma como os vasos sanguíneos funcionam nas mulheres”, disse Wittstein. “Na verdade, estudos mostraram que o risco de síndrome do coração partido aumenta cinco vezes após os 55 anos de idade, para as mulheres”.

Hoje em dia, os médicos sabem que apenas um terço de todos os casos estão ligados a um choque emocional, disse Wittstein. Dois terços são causados ​​por ativadores físicos, como dores intensas, ataques de asma, convulsões, enfartes, febres altas, níveis baixos de açúcar no sangue, cirurgias e pneumonias.

“Sabemos que, de todos os ativadores físicos que podem causar esta síndrome, a pneumonia é um dos mais fortes”, disse ele.

Isso é uma preocupação durante a pandemia, acrescentou Wittstein, porque a covid-19 danifica os pulmões e também provoca a função microvascular, onde os pequenos vasos sanguíneos do corpo deixam de funcionar adequadamente. Os danos a esses pequenos vasos sanguíneos à volta do coração é outra teoria para a síndrome.

“Quando estamos sob stresse, queremos que chegue mais sangue ao coração para ajudar o corpo a reagir, certo?”, disse Wittstein. “Mas no caso da síndrome do coração partido, achamos que a adrenalina faz com que pequenos vasos sanguíneos no coração se contraiam em vez de dilatarem e reduzam temporariamente a quantidade de sangue que chega ao coração.”

Uma 'sensação esmagadora'

Quando Mary Brittingham sentiu uma dor que já lhe era familiar, em 2009, soube que estava a ter outro ataque. Aconteceu três anos depois do primeiro episódio e, desta vez, ela estava no meio de uma discussão acesa com um colega advogado.

“É o meu sinal revelador, uma sensação esmagadora abaixo do esterno que irradia pelo peito até ao pescoço”, disse ela. “E então tenho a certeza. 'Meu Deus, não é ansiedade nem indigestão.' É mesmo isto.”

O terceiro episódio aconteceu uma década depois, quando o seu adorado cão Alfie foi ameaçado durante uma caminhada.

“Durante cinco minutos, lidei com isso, e depois entrei em casa, fechei a porta e o meu peito começou a desfazer-se”, disse ela. “Eu já estava reformada e tinha feito todo o tipo de coisas na vida para reduzir o stresse. E pensei para mim mesma: ‘Tenho quase 70 anos. Será que o próximo episódio me vai matar?’”

Por essa altura, Brittingham já tinha Wittstein como seu médico, e ela falou com ele sobre as suas preocupações.

“Perguntei-lhe: 'Como explico isto às pessoas que vão pensar que sou frágil? Na verdade, não sou. Na verdade, sinto-me muito valente.' Ele disse-se que ser frágil não tinha nada que ver com isto, e que conhecia uma mulher que teve oito episódios sem morrer”, disse ela.

“A minha história preferida, que ele me contou para me fazer sentir melhor, foi sobre uma mulher que estava a acampar com o marido e decidiu pintar o cabelo enquanto ele estava a pescar”, acrescentou. “Uma tenda começou a ser levada pelo vento e ela teve de lidar com isso antes de poder tirar a tinta do cabelo. Ela só conseguia pensar na cor com que o cabelo dela iria ficar.”

Wittstein pegou na história: “Ela teve um episódio de síndrome do coração partido”, disse ele.

“É estranho, quando começámos a descrever isso, pensámos que tinha de ser desencadeado por uma grande tragédia, como a morte de um ente querido ou um acidente de viação quase fatal”, disse ele.

“O que vimos ao longo dos anos é que isso não é verdade. Alguns dos ativadores podem parecer bastante banais.”

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