Empresa que conseguiu dezenas de contratos públicos com Banco de Portugal, CP, ou Santa Casa é suspeita de ter montado um esquema para fugir aos impostos e defraudar a Segurança Social. O caso está desde junho em julgamento
Os cofres do Estado português terão sido lesados em mais de 13 milhões de euros por uma empresa familiar que alegadamente fazia contratos públicos e fugia depois aos impostos. A acusação do Ministério Público, a que a CNN Portugal teve acesso, dá conta de um estratagema que durou anos e foi feito através de empresas alegadamente fictícias que faziam contratos milionários com entidades como o Banco de Portugal, CP, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ou Infraestruturas de Portugal. O caso está desde junho em julgamento: ao todo são 13 arguidos por crimes como associação criminosa, fraude fiscal qualificada, branqueamento e fraude contra a Segurança Social.
O cabecilha seria o empresário lisboeta João Manuel Godinho, que está detido preventivamente desde 2021. Foi ele quem, segundo a acusação do MP, montou, com a ajuda de um advogado, todo o esquema. Para isso, usou duas empresas controladas por si, a Ambiente & Jardim, SA e a Ambiente & Jardim II, que faziam trabalhos de limpeza, concorrendo a concursos públicos e beneficiando de ajustes diretos. Criou, entretanto, uma teia, começando a subcontratar outras sociedades ‘fantasma’ vazias de património para prestarem esses serviços ao Estado. Terá sido desta forma, através de uma complexa teia de ligações empresariais, que, desde 2013 e até 2021, segundo o Ministério Público, conseguiram deixar de entregar 10.637.087,57 euros de IVA; 2.291.220,42 euros de IRC e 551.896 euros em IRS.
O dinheiro, esse, seria ocultado em bens de luxo. Ou seja, através de empresas “que não tinham qualquer atividade”, os arguidos compraram automóveis da marca BMW e Land Rover, tal como propriedades em Sacavém e no Alentejo com o intuito de “dissimular a origem das quantias obtidas” com o esquema posto em marcha. Durante o período em investigação, as duas empresas controladas por João Manuel Godinho tiveram um volume de negócio mais de 70 milhões de euros tanto em ajustes diretos, como em concursos públicos que venceram para limpar instalações do Banco de Portugal, da Santa Casa da Misericórdia, ou comboios da CP.
Foi mesmo essa estratégia de subcontratação que, entende o MP, não só é “expressamente proibida” em contratos públicos, como permitiu às empresas obter “elevados valores de IVA dedutível” e uma “diminuição do lucro tributável, decorrente do aumento fictício dos custos fiscais”. “Tal circunstância, permitiu às empresas apresentar propostas, no âmbito dos concursos públicos em que participaram, com valores mais competitivos do que os demais concorrentes”.
O esquema, porém, não era novo e o nome de João Manuel Godinho e da sua Ambiente & Jardim, SA já constava nos ficheiros dos tribunais. O empresário já tinha sido condenado, juntamente com essa firma de limpeza, a um ano de prisão pelo crime de abuso de confiança da Segurança Social - exatamente por ter estabelecido uma teia de subcontratação semelhante àquela que agora está a ser julgada.
Na altura, em 2020, quando João Manuel Godinho e a mulher se aperceberam que não havia volta a dar e que ele e a Ambiente & Jardim, SA, que até àquele momento tinha um volume de negócios de mais de 10 milhões de euros em contratos públicos, iriam ser condenados por terem sido apanhados a falsificar faturas, os dois começaram a engendrar um novo plano. Passaram a utilizar a Ambiente & Jardim II como alicerce desta nova teia de empresas fictícias, mas desta vez subiram a parada. "Não só prosseguiram com a sua atividade criminosa, como aperfeiçoaram o esquema fraudulento já implementado", escreve o MP.
No entanto, João Manuel Godinho sabia que era “requisito para poder continuar a participar em concursos públicos a ausência de condenações por sentenças transitadas em julgado por qualquer crime que afete a honorabilidade profissional do legal representante das sociedades concorrentes”. Por causa disto, ter-lhe-á sido sugerido pelo advogado da empresa de limpezas José Maria Fabião - também arguido neste processo - que “renunciasse ao cargo de administrador único” daquela firma e fosse substituído pela mulher, Adelaide Godinho.
Vários milhões em contratos públicos. Entidades não detetaram irregularidades
Contudo, dias depois, foi desencadeado na empresa um processo para que fosse o empresário, e não a mulher, o real beneficiário e gestor da empresa. No dia 2 de janeiro de 2020, Adelaide Godinho passou uma procuração ao marido a dar-lhe a capacidade de “gerir sem quaisquer restrições” os bens da empresa. Isto terá permitido, segundo documentos a que a CNN Portugal teve acesso, que João Manuel Godinho, que já havia sido condenado pela prática de um crime de fraude fiscal num outro processo, continuasse a “concorrer frequentemente a concursos públicos, abertos por diversos organismos públicos”.
De facto, em 2021, no ano em que foi detido, contratos publicados na plataforma BASE mostram que era mesmo João Manuel Godinho quem assinava negócios com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) - 1.672.847,77 euros pagos nesse ano através de três ajustes diretos. À CNN Portugal, fonte da SCML refere que “não comenta processos judiciais em curso”. “Informamos, porém, que em todos os procedimentos de Contratação Pública em que intervém, observa todas as suas exigências legais, dando integral cumprimento às mesmas.”
Antes disso, entre 2013 e 2018, o Banco de Portugal atribuiu à empresa 456.709 euros em quatro ajustes diretos e um concurso público, segundo confirmou fonte do organismo. "A empresa em causa foi adjudicatária do Banco de Portugal, cessando essa relação contratual a 31 de julho de 2018, por verificação do prazo máximo do contrato em causa".
Fonte oficial disse à CNN que o Banco de Portugal, quando celebrou contratos com a Ambiente & Jardim II, "analisou os competentes registos criminais e certidões de inexistência de dívidas à Segurança Social, não tendo sido detetada, nos documentos apresentados, qualquer irregularidade que pudesse constituir impedimento à contratação da empresa". "Mais se informa que não foi detetada qualquer irregularidade, na pendência da execução contratual estabelecida com o Banco de Portugal, no tocante à gestão e disponibilização de recursos humanos".
Antes disso, entre 2013 e 2020, a Ambiente & Jardim II conseguiu ganhar mais de 26 milhões vindos das Infraestruturas de Portugal através de nove contratos públicos para efetuar limpezas nas instalações da entidade. No mesmo período, a CP recorreu à empresa por três vezes, atribuindo-lhe um total de 7.215.760 euros através de três concursos públicos. Nenhuma destas duas instituições respondeu às questões enviadas pela CNN Portugal até ao momento.
Já o MP aponta nos arguidos outro modus operandi para se “eximirem ao pagamento das suas obrigações fiscais”. “Após vencerem os concursos públicos, transferiram os funcionários” da empresa que os tinha ganho “para outras sociedades por si geridas, sem o conhecimento daqueles ou das entidades adjudicantes”. “Com efeito”, afirma o MP, “os trabalhadores continuaram a prestar funções no mesmo local, exercendo a mesma atividade, alterando-se apenas a sua entidade patronal e respetivos recibos de vencimento”.
Essas sociedades para onde seriam “transferidos” os trabalhadores enquanto decorriam contratos públicos também “não cumpriram com as suas obrigações fiscais, nem declarativas, sendo que não procederam ao pagamento do IVA deduzido, bem como não entregaram à Segurança Social os montantes retidos a título de quotizações no vencimento dos funcionários inscritos como seus", afirma a acusação do Ministério Público.
Arguidos viram-se uns contra os outros em tribunal
A CNN Portugal contactou as defesas dos arguidos para obter mais esclarecimentos sobre este caso, mas até ao momento não obteve resposta. O julgamento começou no dia 21 de junho, sendo que até às férias judiciais, que têm início em agosto, não foi marcada mais nenhuma sessão.
Entre os 13 arguidos estão vários elementos da família de João Manuel Godinho, apontado como o cabecilha da operação, entre eles a mulher e o filho. No banco dos réus está ainda, para além de José Maria Fabião, advogado da Ambiente & Jardim II, que conseguiu vários contratos públicos, outras cinco empresas.
Na fase de instrução, que decorreu em setembro de 2022 no Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, os arguidos acabaram por trocar acusações entre si. A defesa de João Manuel Godinho garantiu que foi o advogado José Maria Fabião quem “ludibriou a família Godinho, tornando-os dependentes de si”, “controlando os imóveis das empresas” e alegou que “João Manuel Godinho confiou cegamente no mesmo”. E rejeitou as acusações do Ministério Público, destacando que ele próprio “não tinha conhecimentos técnicos para levar a cabo tal atividade”.
Já a defesa de José Maria Fabião alegou que este se “limitou a exercer a sua atividade profissional, nunca tendo participado em lucros ou receitas”. E reiterou que “nunca tomou decisões sobre o destino das empresas". sublinhando "que as ordens eram dadas por João Godinho”. O caso segue agora em julgamento, depois do juiz de instrução ter considerado, num acórdão a que a CNN teve acesso, que nenhum dos arguidos "negou o esquema de organização empresarial, escudando-se a família Godinho no facto de não saber que tal poderia ser ilícito, e José Maria Fabião no facto de cumprir ordens e de estar somente a exercer a sua função”.