«Tenho mais prazer como avançado do distrital do que como guarda-redes profissional»

23 mai 2023, 08:29
Mário Matos (foto: GDS Cascais)

Mário Matos foi guarda-redes do Estoril, chegou a travar o FC Porto na Taça da Liga, mas depois percebeu que era mais feliz a marcar golos do que a evitá-los. Mesmo que isso o levasse para escalões inferiores. Aos 34 anos é avançado do GDS Cascais.

"Conto direto" é a rubrica do Maisfutebol que dá voz a protagonistas dos escalões inferiores do futebol português. As vivências, os sonhos e as rotinas, contados na primeira pessoa.

Mário Matos, 34 anos, avançado do GDS Cascais

«Nasci em Seda, Alter do Chão, mas aos quatro anos fui viver para a Bélgica. Os meus pais emigraram para Bruxelas. Chegámos lá no dia do terceiro aniversário do meu irmão.

Foi bom crescer na Bélgica, mas sempre com as raízes portuguesas bem presentes: víamos televisão portuguesa, a comida era portuguesa, falávamos português em casa. Nos primeiros anos revelou-se difícil voltar a Portugal, mas a partir de determinada altura começámos a voltar todos os dias.

Comecei a jogar futebol no parque, levado pelo meu pai. Curiosamente, o meu irmão é que ia à baliza. Um dia, na escola, comecei a defender os remates de um miúdo mais velho, e ele convidou-me para ir treinar ao St. Gilloise, onde ele já andava.

É engraçado que, nesse início, no parque, eu era avançado e o meu irmão era guarda-redes. Mas depois eu é que fiz o trajeto como guarda-redes, e ele, que chegou a jogar na terceira divisão belga, não seguiu como guarda-redes. Teve mais juízo do que eu.

Com 12 ou 13 anos fui para o Anderlecht, mas depois voltei ao St. Gilloise e mais tarde passei pelo Mouscron antes de regressar ao Anderlecht, nos juniores. Fui internacional belga nos sub-18, e ainda fui chamado aos sub-21. Até cheguei a fazer um torneio em Portugal, em Castelo Branco. E pelo Mouscron disputei uma final contra o Boavista. Tocaram os hinos nacionais e eu cantei mais o português do que o belga. Sempre me senti mais português do que belga.

Depois do Anderlecht fui para o Tubize, onde fiz a estreia como sénior, na segunda liga. Conseguimos a subida ao principal escalão belga, onde cheguei a jogar.

Em 2020 surgiu a oportunidade de jogar em Portugal. Foi através de uma pessoa que estimo muito, que guardo no coração, que é o Nuno Mousinho Esteves. Ele foi representante da Traffic em Portugal e esteve na SAD do Estoril. Conheci-o através do Jeremie N’Jock, que foi meu colega no Tubize e que veio para o Estoril. Mais tarde jogou ainda no Arouca e no Moreirense.

O diretor desportivo do Estoril era o Mário Jorge, e curiosamente eu chamo-me Mário Jorge por causa dele, que o meu pai é sportinguista.

Mário Matos no Estoril

O treinador era o Professor Neca. Estive dois dias à experiência e depois deram-me um contrato de três anos. O Estoril tinha o Paulo Santos, o Filipe Leão, o Limones e o Vagner como guarda-redes. Depois houve uma reestruturação e chegou o Vinícius Eutrópio para treinador, através da Traffic. Foi contratado outro guarda-redes brasileiro, o Cléber, e fiquei também eu e o Vagner, com quem me dou muito bem desde então.

Apanhei o Marco Silva como colega, depois como diretor desportivo, e mais tarde como treinador. Como jogador ele já era muito apreciado, muito respeitado por todos. Já se via que tinha liderança, que ia ficar ligado ao futebol. Nunca pensei que tivesse a trajetória que tem feito, mas ainda bem. Nem sei se ele estava à espera daquela primeira experiência como treinador, no Estoril. Foi tudo muito rápido. Eu tive uma questão com ele, na altura. Acho que me podia ter estendido a mão, podia ter dado uma oportunidade. Mas não guardo rancor, desejo-lhe a maior sorte.

Foram anos muito bons, tínhamos um grupo fantástico, do presidente ao roupeiro, que era o Barata. Essa era a nossa força. Um grupo muito solidário. Fico muito contente por ver o trajeto de jogadores como o Steven Vitória, Licá, Carlos Eduardo ou Evandro. Ou mesmo o Gerson, o Anderson Luís, o Rodrigo Dantas ou o Bruno Nascimento, de quem guardo boas memórias. O Luís Henrique foi o melhor treinador de guarda-redes que apanhei. Muito competente, brutal a nível mental e a nível do treino.

Criámos uma relação bonita nessa equipa, e a prova disso é que, agora que jogo no Cascais, já tive a visita do Tiago Ribeiro (ndr. antigo presidente da SAD do Estoril) e do Fabiano Soares (antigo treinador). A visita do Vagner também está combinada, até porque temos um guarda-redes que é fã dele.

Houve duas coisas que ficaram atravessadas. Não joguei na II Liga no ano em que fomos campeões. Não entrei no último jogo, frente ao Arouca. Tivemos uma expulsão na primeira parte, mas eu acho que tinha dado para entrar na mesma, só que o Marco não entendeu assim. E depois não cheguei a jogar na Liga. Hoje em dia não fico triste com isto, mas gostava que tivesse sido diferente.

Se eu voltasse atrás no tempo, eu não calçaria as luvas. Eu adorava jogar na frente. Eu ia ver o meu irmão ao distrital, na Bélgica, e dava-me vontade de entrar em campo. Sempre tive esse bichinho. Já quando eu estava no Tubize, na equipa B, estava sempre à procura de fintar o avançado.

O meu último jogo pelo Estoril foi frente ao FC Porto, na Taça da Liga. Foi o meu melhor momento no Estoril. O FC Porto jogou praticamente com a equipa titular. Comecei o jogo com um erro, numa saída em que o Jackson Martínez consegue antecipar-se, mas depois estive excelente no resto do jogo. Estivemos a ganhar 2-1, mas sofremos o empate no fim (ndr. Golo de Moutinho ao minuto 89).

A minha maior oportunidade foi após a subida à Liga, em 2010: faço a pré-epoca toda, mas depois, quatro dias antes do jogo de estreia, chegou um guarda-redes novo, o Renan, que foi titular frente ao Olhanense. Foi o momento mais difícil para mim no futebol.

Em 2013 saí do Estoril. Já não me apetecia ficar, queria jogar. Queriam emprestar-me ao Santa Clara, e eu tinha o interesse do Feirense, mas ao rescindir acabei por seguir para o União da Madeira. Assinei com a expectativa de jogar com regularidade, mas tal não sucedeu. Assinei em setembro e saí em janeiro.

Após a rescisão estive algum tempo na minha terra, em Seda. Fiquei lá até julho, talvez, até que voltei à Bélgica. Nessa altura tomo a decisão de jogar na frente, independentemente do escalão. O problema é que, para jogar, era preciso pagar a transferência internacional. Qual o clube que arriscava pagar para ter um guarda-redes que queria jogar na frente?! Eles achavam que eu era maluco, que estava a desistir, mas não. Eu queria continuar a jogar, a fazer algo que me apaixonava mais, mesmo percebendo que o nível talvez não pudesse ser o mesmo.

Quando vi que estava a ser difícil fazer carreira como guarda-redes, eu fui atrás do que eu queria, do que me apaixonava. Comecei a jogar um campeonato amador da Bélgica, que é o «Travailliste». Joguei pelo FC Porto de Bruxelas e também pelo Sporting de Bruxelas. Marquei muitos golos, 35 ou 40, e divertia-me muito na frente.

Depois ainda joguei na distrital belga, três ou quatro anos. Um antigo colega do Tubize era diretor desportivo de uma equipa e conseguiu tratar da transferência internacional. Ainda realizei um sonho, que foi jogar com o meu irmão Paulo. No distrital belga marcava sete ou oito golos por ano.

Mário no regresso à Bélgica: é o primeiro jogador (de casaco vermelho) da fila do meio, a contar da direita. O irmão, Paulo, é o primeiro jogador da direita da fila de cima.

Tenho mais prazer como avançado do distrital do que guarda-redes profissional. Vejo muitos guarda-redes assim, quando leio entrevistas, como recentemente vi do Sczeszeny. Há um avançado dentro de quase todos os guarda-redes. Há muitos guarda-redes que acabam nessa posição porque, quando eram miúdos, tinham um pouco menos de talento. Alguns vão lá parar por paixão, claro, mas não são muitos.

Entretanto voltei a Portugal por amor. Amor ao país, que é maravilhoso, um dos melhores do mundo para viver. E amor à minha mulher.

Quando regressei a Portugal estive para jogar no Rio de Mouro, onde estava a viver a minha mulher. Cheguei a ir ver os treinos, mas lembrei-me do Nuno Mousinho Esteves e liguei-lhe para ver se ele tinha alguma coisa. Só então é que fiquei a saber que ele era presidente do GDS Cascais. Fui treinar à experiência e fiquei. Curiosamente, a estreia a titular foi contra o Rio de Mouro.

Mário Matos (à direita) com Nuno Mousinho Esteves

Durante um tempo não consegui ajudar a equipa, pois os treinos são de manhã, e em novembro comecei a trabalhar como analista de conteúdo para a Google, no Lagoas Park. Analisamos as aplicações da «play store», para ver se existe alguma violação em termos de violência, discriminação, etc. Entretanto consegui ajustar o horário e já ir treinar de manhã.

O GDS Cascais tem excelentes condições, mesmo ao nível da estrutura. Sinto-me um bocadinho profissional com as condições que oferecem.

A família ainda está na Bélgica, mas toda a gente com o desejo de voltar. Assim como o guarda-redes tem esse desejo interior de ser avançado, o emigrante tem o desejo de voltar.»

Veja Mário Matos no «Bola na Barra» que, em 2012, o programa «Maisfutebol», transmitido então pela TVI24, realizou com a equipa do Estoril:

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