Foram 15 minutos para discutir o apoio à Ucrânia e mais de 10 horas para debater como se vai "Rearmar a Europa". No final, 26 apoiaram a Ucrânia e 27 mais investimentos na Defesa. Findo o Conselho Europeu especial, vêm aí reuniões importantes em Paris e Riade
Foi uma cimeira especial, especialmente convocada após Donald Trump ter suspendido o apoio militar à Ucrânia no rescaldo de um desastroso encontro com Volodymyr Zelensky na Casa Branca na semana passada. Mas foi “o ponto de viragem” a partir do qual “tudo mudou”, como declarou Donald Tusk à entrada do encontro de quinta-feira?
A cimeira terminou depois de várias horas com a Hungria de Viktor Orbán de um lado da sala e os restantes 26 países da União Europeia do outro – pelo menos na declaração de apoio inquestionável à Ucrânia, que passa pela intenção renovada de ter o país como o 28.º Estado-membro até 2030 e por lhe garantir um empréstimo adicional de 30 mil milhões de euros ao longo de 2025, pago com os juros dos fundos russos congelados na Europa desde a invasão em larga escala da Ucrânia.
“O problema com Viktor Orbán é que, na verdade, ele só conseguiu isolar-se a si mesmo neste Conselho Europeu, salientando como é problemático ter a Hungria a agir efetivamente como um agente estrangeiro dentro da UE”, diz à CNN Portugal Julien Hoez, especialista em geopolítica e editor do The French Dispatch.
Como referiu o presidente do Conselho Europeu, António Costa, aos jornalistas, "um país isolado não cria uma divisão". Mas cria problemas para uma UE que se quer a uma voz. “Mais uma vez", ressalta Hoez, "levanta-se a ideia de expulsar a Hungria da UE, por ser constantemente prejudicial e estar agora a provocar ativamente uma fraqueza existencial num momento de grande perigo”.
Diz um diplomata europeu que as conversações sobre a Ucrânia levaram cerca de 15 minutos para serem concluídas. Mas foram mais de dez as horas em que os chefes de governo debateram como financiar o setor da Defesa e quanto do dinheiro a angariar deve ser gasto dentro e fora de portas.
Pelo menos neste ponto ninguém pode dizer que o encontro não foi um sucesso, sobretudo face ao que muitos dizem ser a capitulação do presidente norte-americano aos interesses de Vladimir Putin. (Desde 20 de janeiro, quando Trump tomou posse, o primeiro e único sinal de pressões sobre Moscovo chegou esta sexta-feira, quando disse que está "a considerar fortemente sanções bancárias em larga escala, sanções e tarifas sobre a Rússia, até que um cessar-fogo e um acordo de paz final sejam alcançados").
Costa não esperou pela luz verde de Orbán nem pelo fim da reunião quando anunciou que os europeus continuam ao lado de Kiev para o que der e vier. A Eslováquia de Robert Fico, que partiu para o encontro de pé atrás, conseguiu um compromisso sobre a retomada do trânsito de gás russo via Ucrânia. E até a Hungria, apesar de isolada quanto a Kiev, subscreveu a declaração final sobre a necessidade de a UE reforçar as despesas com a sua própria Defesa (mesmo que venha a discordar da forma como o dinheiro é angariado e gasto).
O comunicado final, como esse debate, tiveram por base o ambicioso plano “Rearmar a Europa”, que Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão, apresentou aos líderes para se angariar até 800 mil milhões de euros nos próximos anos. Neste ponto, resta agora esperar por 19 de maio, quando Bruxelas vai apresentar o seu Livro Branco sobre Defesa, para se conhecerem mais detalhes.
Americanos e ucranianos reúnem-se em Riade
Até se pode falar em sucesso, mas por agora tudo não passa de pretensões, aspirações e declarações de intenções, espoletadas não só mas acima de tudo pela retirada do apoio norte-americano à Ucrânia – uma decisão que alguns, como o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, continuam a acreditar que é “temporária”.
Com Trump nunca se sabe. E como apontava o Politico no rescaldo do Conselho Europeu, “a UE está a fazer exatamente o que Trump quer” e mesmo assim “ele continua a não se importar”. O mesmo homem que há bem pouco tempo declarou que “a UE foi criada para lixar os Estados Unidos” – ignorando todos os esforços do pós-guerra para que, deste lado do Atlântico, houvesse um baluarte da democracia que contrariasse a influência dos soviéticos – é agora quem comanda os Estados Unidos com um maço de notas na mão.
Quem não paga não joga e foi isso mesmo que a sua equipa voltou a deixar claro logo após o Conselho Europeu, ao sugerir que os EUA podem mesmo não proteger os aliados da NATO que não contribuam com uma certa percentagem do PIB para a Defesa comum. Esta é a mesma equipa que, alegadamente reunida nos bastidores com os opositores de Zelensky na Ucrânia, marcou uma nova reunião com a equipa do presidente ucraniano, na Arábia Saudita – Zelensky vai estar em Riade, mas não estará presente na reunião de terça-feira.
Será esta mais uma tentativa de Trump subjugar a Ucrânia aos seus interesses, em particular para conseguir fechar o seu almejado acordo de exploração de minerais raros no país em guerra? “Claro que sim”, responde o analista, até porque “há sinais crescentes de que Trump quer simplesmente sair da Ucrânia a todo o custo, mesmo que isso signifique a destruição total da Ucrânia, o que daria mais força à Rússia e levaria a um conflito renovado nos anos a seguir a qualquer ‘fim’ do conflito”, que poderia passar por uma nova invasão e pela provável perda de acesso aos minerais que Trump deseja”.
Mesmo assim, Hoez invoca alguns sinais encorajadores. “Embora Zelensky não vá participar nestas reuniões, isso não significa que não vá beneficiar delas de alguma forma. Teremos de estar atentos às consequências, especialmente com a linguagem mais suave de Trump desde a catastrófica emboscada ao presidente ucraniano na Casa Branca.”
Se ainda restavam dúvidas sobre o quão pouco os EUA de Trump parecem importar-se com a Ucrânia e a UE, vale a pena lembrar que o mesmo Marco Rubio que se encontrou com o homólogo russo, Sergei Lavrov, há alguns dias, recusou reunir-se com Kaja Kallas quando a chefe da diplomacia do bloco europeu se deslocou a Washington esta semana.
Fechada mais esta cimeira, resta estar de olho nas movimentações mais recentes, e não apenas da UE ou dos EUA. Na sexta de manhã, Von der Leyen e Costa ligaram-se por vídeo ao conjunto de aliados com que ainda podem contar – à cabeça Keir Starmer, o primeiro-ministro do Reino Unido, a par dos líderes do Canadá, da Noruega e da Turquia, que nisto tudo dá por si numa nova posição de força.
“Acreditamos que é do nosso interesse mútuo coordenar todas as medidas relacionadas com a segurança europeia com a Turquia”, disse aos parceiros Recep Tayyip Erdogan, o líder do país que, durante décadas, tentou fazer parte do clube europeu. “Tendo em conta o apoio da nossa indústria de Defesa à Ucrânia e as contribuições inabaláveis do nosso setor privado, apesar das condições de guerra, consideramos injustificável que a Turquia seja excluída dos programas de aquisição e das iniciativas de reconstrução [da indústria de Defesa] da UE.”
"Coligação de interessados" reúne-se em Paris
Ainda a videoconferência decorria e, a partir de Budapeste, Orbán fazia saber que pretende levar a adesão da Ucrânia a consulta popular, porque permitir a entrada do país no bloco significa que “a Europa vai ser destruída, incluindo a economia húngara”. O chefe de governo não disse quando pretende realizar este inquérito, cujos resultados não serão juridicamente vinculativos, mas a promessa denota que continuará a ser a grande pedra no sapato dos europeus.
“A questão não é se Orbán tem um efeito negativo nas tentativas da UE mostrar uma frente unida, até porque temos visto Macron a contornar o bloqueio pró-russo”, aponta Julien Hoez. “A questão é saber como é que a UE neutraliza a Hungria enquanto arauto da nossa destruição.”
E se a Hungria é a pedra num dos sapatos da UE, a outra pedra é, obviamente, a Rússia. Investidos em pôr tropas na Ucrânia, Reino Unido e França dizem que há 20 países europeus abertos a contribuir para essa força de manutenção de paz, a ser destacada no âmbito de um potencial acordo de cessar-fogo ou de paz com a Rússia cujos contornos continuam impossíveis de prever. Mas isso continua a ser um cenário muito distante, ressalta o especialista.
“De acordo com o plano que está a ser desenvolvido, as tropas europeias estariam no terreno após um cessar-fogo inicial, algo que é extremamente improvável que seja bem sucedido se olharmos para o comportamento de Putin.”
Enquanto não se fecham decisões, Londres está a delinear um plano para criar uma força aérea europeia de 120 caças, já batizada Sky Shield, a ser destacada para patrulhar os céus de Kiev e da Ucrânia ocidental, protegendo o país dos ataques russos “sem provocar necessariamente um conflito mais vasto com Moscovo”.
Elaborado por especialistas militares, e com o potencial de “ter um maior impacto militar, político e socioeconómico do que 10 mil tropas terrestres”, o plano dos militares britânicos foi revelado na manhã do Conselho Europeu extraordinário – e mereceu uma reação imediata do Kremlin.
Questionado pelos jornalistas, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, deixou claro que o envio de tropas ou mesmo o Sky Shield corresponderão ao “envolvimento direto, oficial e não velado de membros da NATO na guerra contra a Rússia”. “Não podemos permiti-lo”, disse Lavrov. Mas estará seguramente no cardápio do encontro que Macron está a organizar na próxima semana em Paris com as mais altas chefias militares europeias.
“Com Macron a reunir-se com a ‘coligação de interessados’ nos próximos dias, e com a Turquia a salientar que está interessada em envolver-se, parece que conseguiríamos ter uma força dissuasora considerável capaz de assegurar alguma forma de paz se for destacada no terreno”, ressalta Hoez – “o que é outra razão pela qual a Rússia se recusa a deixar que isso aconteça”.