Há uma nova "corrida às armas" e tem de ser a Europa a vencê-la. Mas como? O plano começou a ser desenhado

6 mar, 18:07
Bandeira Ucrânia UE Bruxelas Conselho Europeu (Omar Havana/AP)

Convocado após Donald Trump ter suspendido a ajuda militar à Ucrânia, o Conselho Europeu extraordinário desta quinta-feira representa "um ponto de viragem em que tudo pode mudar". A crónica possível da cimeira de líderes, que à hora de publicação ainda decorria em Bruxelas

Tantos desenvolvimentos, tão pouco tempo. Para perceber o Conselho Europeu extraordinário desta quinta-feira é preciso viajar até ao início da semana, quando os Estados Unidos ao leme de Donald Trump decidiram suspender todo o apoio à Ucrânia, e quando o chefe da diplomacia norte-americana, Marco Rubio, se encontrou com Sergei Lavrov, em mais uma aproximação à Rússia após três anos votada ao isolamento.

Comecemos, precisamente, por Lavrov, o ministro dos Negócios Estrangeiros de Vladimir Putin, em concreto pela forma como, esta manhã, reagiu ao discurso do presidente francês, Emmanuel Macron, na véspera deste Conselho Europeu - ao sublinhar a urgência de a União Europeia( UE) se tornar independente dos EUA em matéria de segurança e defesa e a disponiblidade de abrir o “debate estratégico sobre a proteção dos aliados europeus” por via da “dissuasão nuclear” francesa.

“É claro que isto é uma ameaça à Rússia, [...] o senhor Macron não está a agir com muita elegância”, disse Lavrov, comparando o presidente francês a Hitler e a Napoleão, líderes que no passado “disseram diretamente ‘temos de conquistar a Rússia, temos de derrotar a Rússia’”. Agora, adiantou o MNE russo, é Macron que “aparentemente quer a mesma coisa e, por alguma razão, diz que é preciso lutar contra a Rússia para que não derrote França, diz que a Rússia representa uma ameaça para França e a Europa”.

É o que quase toda a Europa considera - à exceção da Hungria de Viktor Orbán, mais alinhada com o Kremlin do que com os parceiros da UE. Como tem sido seu apanágio, o primeiro-ministro húngaro partiu para este Conselho Europeu sob a ameaça latente de voltar a vetar os esforços para unir toda a UE no apoio à Ucrânia, num encontro que, dizem analistas e políticos, marcou o início de uma nova era para a Europa.

Durante a manhã, antes de rumar ao Conselho Europeu em Bruxelas, Orbán decidiu encontrar-se com a líder da extrema-direita francesa, Marine Le Pen, publicando uma foto na X com a legenda: “Depois de me ter encontrado com o antigo e o atual presidente de França, foi um prazer encontrar-me com a futura presidente.”

À provocação seguiu-se, horas depois, uma outra publicação na mesma rede social a informar que os seus “encontros em França confirmaram que, embora possamos discordar das modalidades da paz, concordamos que temos de reforçar as capacidades de Defesa das nações europeias”. No final, uma ressalva: “Estes esforços devem empoderar os Estados-membros e não os burocratas de Bruxelas.”

Cimeira extraordinária presidida por António Costa foi ensombrada pela ameaça da Hungria de Viktor Orbán (ao centro) em vetar o documento final Foto: Geert Vanden Wijngaert/AP

Fico a bordo, Orbán isolado

Como em tudo o resto, acabou-se a era das desculpas. E com os sucessivos impasses provocados por Budapeste, houve quem aproveitasse a cimeira extraordinária para chamar os bois pelos nomes. “Nós, no Partido Popular Europeu, estamos fartos de ver Viktor Orbán a bloquear o entendimento comum e o bom senso na UE”, disse Manfred Weber, líder do maior grupo do Parlamento Europeu, aos jornalistas em Bruxelas. “Ele tem de refletir se quer realmente ser integrado e fazer parte de uma família europeia mais alargada.”

À entrada para o Conselho, o primeiro-ministro do Luxemburgo também foi claro sobre a necessidade de avançar com mais apoio à Ucrânia sem esperar que a UE fale a uma só voz: “Estamos a viver tempos históricos e temos de estar mais unidos do que nunca”, disse Luc Frieden. “Se não partilham desta opinião, os outros devem avançar.”

Sob a forte suspeita de que a Hungria - e possivelmente também a Eslováquia de Robert Fico - iam voltar a sabotar o consenso necessário, a eurodeputada Valerie Hayer, líder dos liberais do Renew, reforçou o apelo que muitos dentro da UE têm feito por um “novo formato” de cimeiras. “Espero que o Conselho Europeu seja feito no formato mais adequado para alcançar [avanços], estamos todos cientes de alguns hipotéticos vetos nacionais, de Viktor Orbán e Robert Fico, por isso vamos ver que jogo vão eles jogar. Se preferirem fazer o jogo de Putin, avançamos sem eles, podemos fazê-lo com 25 ou menos Estados-membros - mas precisamos de avançar rapidamente.”

Diplomatas em Bruxelas assumiram a possibilidade de se emitir uma declaração conjunta sem a assinatura de um ou mais Estados-membros, o que, segundo duas fontes familiarizadas com as discussões em curso, abre a possibilidade de se adotar uma linguagem mais forte em questões como a futura adesão da Ucrânia à UE - outro ponto que opõe a Hungria aos restantes Estados-membros e que o resto do bloco quer concretizar até 2030.

Ao longo do dia, de acordo com fontes ao Politico, o trabalho de bastidores envolveu esforços para trazer Fico a bordo da declaração final, na prática deixando Orbán totalmente isolado. O grande ponto de contenda para Bratislava é o facto de a Ucrânia ter cortado a entrada de gás barato da Rússia no continente europeu no arranque deste ano, com o primeiro-ministro eslovaco a fazer finca-pé por garantias de que o trânsito de gás será retomado. 

Ao início da tarde, uma nova versão do documento a que o Politico teve acesso revelava já um entendimento, com a declaração expressa de que “a Comissão, a Eslováquia e a Ucrânia vão intensificar esforços para encontrar soluções funcionais para a questão do trânsito de gás, incluindo a sua retoma”.

Isto abriu caminho a um acordo global - caso Budapeste não o bloqueie - mas também abriu o precedente de alienar o convidado de honra deste Conselho Europeu, Volodymyr Zelensky. No final de 2024, o presidente da Ucrânia tinha dito: “Não vamos prolongar o trânsito de gás russo. Não vamos permitir que eles ganhem milhares de milhões extra à custa do nosso sangue.”

Havia questões sobre se Robert Fico, o primeiro-ministro populista da Eslováquia (à esquerda, fotografado há um mês noutra cimeira europeia), ia continuar a alinhar com a Hungria no bloqueio às ações da UE, mas um acordo terá sido alcançado para apaziguar Bratislava e votar Budapeste ao isolamento Foto: Geert Vanden Wijngaert/AP

Rearmar a Europa – e a Ucrânia

Depois das cimeiras de Defesa em Paris e em Londres, os líderes europeus estão a encarar esta "nova era" (palavra de Macron) de frente.

Em Berlim, o atual e o futuro chanceler da Alemanha, Olaf Scholz e Friedrich Merz, estão a negociar o aumento do teto da dívida pública para reforçar o investimento em Defesa e os apoios a Kiev (“A Alemanha preparar-se-á para garantir o enquadramento financeiro para o efeito”, garantiu Scholz em Bruxelas.) Em Paris, Macron prepara-se para receber todos os chefes militares europeus numa reunião muito antecipada a ter lugar para a semana. E em Bruxelas, restam poucas dúvidas de que este é “um momento decisivo” para o continente.

Assim declarou Ursula Von der Leyen antes de o encontro arrancar. “A Europa enfrenta um perigo claro e presente e, por isso, tem de ser capaz de se proteger”, disse a chefe da Comissão Europeia aos jornalistas.

“Já não era sem tempo”, acrescentou Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, à chegada à cimeira de líderes. “Precisamos de garantir que passamos das palavras às ações. Isto é algo que temos vindo a pedir há muito tempo, que a UE, a Europa, seja capaz de se manter de pé.”

“Não há dúvidas de que a guerra na Ucrânia, a nova abordagem da administração americana em relação à Europa e a corrida ao armamento iniciada pela Rússia nos colocam desafios completamente novos”, adiantou o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk. “A Europa tem de enfrentar estes desafios, esta corrida ao armamento, e vencer. Estou convencido de que a Rússia vai perder esta corrida às armas, tal como a União Soviética perdeu uma corrida semelhante há 40 anos.”

Para o chefe do Governo da Polónia, Donald Tusk, "estamos num ponto de viragem em que tudo pode mudar  – e acredito que vai mudar", disse aos jornalistas em Bruxelas. Para o presidente da Polónia, acordo de minerais entre os EUA e a Ucrânia pode tornar desnecessário envio de força europeia para o país Foto: Harry Nakos/AP

Ex-presidente do Conselho Europeu e atual líder de um dos países geograficamente mais próximos da ameaça russa, Tusk não mastigou as palavras. “Hoje estamos num ponto de viragem em que tudo pode mudar - e acredito que vai mudar - no que diz respeito ao compromisso da Europa com o armamento, à indústria de Defesa e à vontade de enfrentar o desafio que a Rússia colocou ao mundo.”

Orbán pode discordar de muitos na UE, mas até ele concorda com a necessidade de “Rearmar a Europa”, a proposta que Von der Leyen foi apresentar formalmente aos Estados-membros e sob a qual se pretende angariar até 800 mil milhões de euros para impulsionar o investimento na Defesa da UE. Ontem, numa antevisão do plano, a presidente do executivo europeu revelou os quatro pilares que o sustentam, incluindo um programa de empréstimos de 150 mil milhões de euros e mais liberdade para as capitais arranjarem o dinheiro necessário, em parte recorrendo a um alívio das rigorosas regras orçamentais de Bruxelas.

“Em breve iremos propor a ativação da cláusula de salvaguarda nacional do Pacto de Estabilidade e Crescimento, [que] permitirá aos Estados-membros aumentar significativamente as suas despesas com Defesa sem acionar o procedimento relativo aos défices excessivos”, adiantou ontem Von der Leyen. “Por exemplo, se os Estados-membros aumentarem as suas despesas com Defesa em 1,5% do PIB, em média, isso poderia criar um espaço orçamental de 650 mil milhões de euros ao longo de quatro anos.”

Restam, contudo, muitas questões em torno do programa, que vão da capacidade de cada Estado-membro para reforçar essas despesas até onde e como é que estes milhares de milhões serão investidos. Para Von der Leyen, o plano abre a possibilidade de cada capital “investir na indústria de Defesa ucraniana” ou, por outro, “adquirir capacidades militares a serem diretamente entregues à Ucrânia”. Para alguns, como o líder do PPE, o grande objetivo deverá ser “reservar o dinheiro apenas para empresas europeias, empregos europeus, investimentos europeus” – e não americanas, como Donald Trump pretende.

As propostas de financiamento para Rearmar a Europa apresentadas por Von der Leyen são aceites em termos gerais por todos, mas restam questões sobre outros pontos da agenda do Conselho Europeu, como o nível de apoio europeu à Ucrânia Foto: EPA

Tropas no terreno? Acordo de minerais?

Enquanto aguardamos por 19 de maio, dia em que a Comissão Europeia vai apresentar um documento político sobre o futuro da Defesa europeia – incluindo uma lista de prioridades para o desenvolvimento conjunto de equipamento militar e alternativas de financiamento – questões mais urgentes se levantam.

Com o Conselho Europeu ainda a decorrer, de Moscovo chegou a rejeição liminar da proposta de um cessar-fogo de um mês que França e Reino Unido apresentaram há alguns dias. “Inaceitável”, declarou a porta-voz do MNE russo, Maria Zakharova - aquilo que os europeus querem, acrescentou, é “um alívio a qualquer preço” para que as Forças Armadas ucranianas possam “evitar o colapso na frente de batalha”.

Zakharova falou horas depois de Lavrov ter voltado a rejeitar a mobilização de um contingente europeu na Ucrânia como parte das negociações de paz, outra ideia que deverá ter sido abordada neste Conselho Europeu – embora, sobre isso, pouco ou nada tenha vazado até à hora de publicação deste artigo. Ter tropas europeias na Ucrânia, disse o ministro russo numa visita ao Zimbabué, “não significará uma participação híbrida, mas uma participação oficial e não dissimulada dos países da NATO na guerra contra a Rússia – não podemos permitir que isso aconteça”.

Perante rumores de que a equipa de Trump está em contacto com os opositores de Zelensky dentro da Ucrânia e com a Reuters a noticiar que a administração norte-americana estará a preparar-se para revogar o estatuto de 240 mil refugiados ucranianos já em abril, é grande a dúvida sobre se vamos assistir ao envio de uma força europeia de manutenção de paz para a Ucrânia.

“Honestamente, penso que haverá muitos progressos nas discussões sobre a Defesa europeia”, dizia à CNN Julian Hoez, especialista em geopolítica e editor do The French Dispatch, no arranque do Conselho Europeu, "resta é perceber com que rapidez” a recém-surgida coligação de Estados interessados – incluindo o Reino Unido, a Noruega e o Canadá – irá decidir o envio de tropas para o terreno. “França está 100% investida nisso, levamos muito a sério a defesa dos nossos aliados”, destaca o analista.

Há, contudo, quem considere que esta hipótese pode sair do menu em breve caso os EUA levem a sua avante. É o caso de Andrzej Duda, o presidente da Polónia, que à hora do Conselho Europeu se encontrava na outra ponta de Bruxelas, reunido com o secretário-geral da NATO, Mark Rutte. “Se houver um acordo de minerais com a Ucrânia, os Estados Unidos vão ficar numa posição estratégica”, disse aos jornalistas.

Duda e Rutte, respetivamente presidente polaco e secretário-geral da NATO, consideram que a decisão de Trump em suspender o apoio militar à Ucrânia é "temporária" Foto: Harry Nakos/AP

A três meses da próxima cimeira da NATO, que vai ter lugar em Haia, em junho – e com Duda e Rutte a minimizarem o impacto da decisão de Trump de suspender o apoio militar e a partilha de informações com Kiev (“temporária”, dizem) – o chefe de Estado polaco diz-se “convencido de que os EUA vão proteger os seus próprios interesses e podem fazê-lo por via política”, o que faria com que uma missão militar europeia deixasse de ser “forçosamente necessária”.

Mas como apontava há alguns dias à CNN Marta Mucznik, analista de assuntos europeus no International Crisis Group, continua tudo em dúvida, incluindo os detalhes em torno desse acordo de minerais que, para Duda, tanto potencial tem. “Não percebo que papel pode este acordo desempenhar no processo de paz – isto são coisas que fazem notícias, mas que não sei se têm alguma solidez”, diz Mucznik.

Este acordo é, de resto, apenas um de vários pontos ainda por esclarecer no que toca ao plano dos norte-americanos para acabar com a guerra na Ucrânia. “Trump ainda não tem propriamente uma equipa negocial e as pessoas com a capacidade de negociar um acordo de paz, com grande conhecimento da região, da Ucrânia, da Rússia, não são pessoas que tenham a confiança de Trump”, aponta a analista. “Há uma grande imprevisibilidade e é preciso perceber se ele próprio tem um plano. Ainda estamos a discutir coisas abstratas.”

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