Congresso dos EUA denuncia esquema de preços sombra entre farmacêuticas

26 abr, 22:02

MEDICAMENTOS INOVADORES || Congresso descobriu que as 10 farmacêuticas investigadas tinham aumentado o preço dos medicamentos 36%, o que correspondia a quatro vezes o valor da inflação no mesmo período de tempo

A investigação do Congresso americano demorou três anos e debruçou-se sobre a subida de preço de vários medicamentos recordistas de vendas num período entre 2016 e 2020. Ao mesmo tempo que muitos americanos denunciavam as suas dificuldades em comprar medicamentos, chegando a ter de escolher entre a alimentação ou a medicação, o Congresso descobriu que as 10 farmacêuticas investigadas tinham aumentado o preço dos medicamentos 36%, o que correspondia a quatro vezes o valor da inflação no mesmo período de tempo.

Num esquema que no relatório é apelidado de preços sombra, as farmacêuticas seguiam passo a passo os aumentos de preços dos medicamentos similares dos concorrentes em vez de os baixarem numa estratégia de concorrência de mercado. E enquanto o faziam havia quem, em e-mails expostos no relatório, ironizasse na época de Natal. “Talvez a Sanofi espere até amanhã para anunciar o seu aumento de preço. É tudo o que quero para o Natal...” escreveu o diretor de uma farmacêutica. Um analista respondeu: “Comecei um jogo de bebidas. Tomo um shot para cada resposta que diga: então a Sanofi. Meu pobre fígado...” E de novo o diretor:  “Ho!ho!ho!”

O aumento dos preços acentuava-se quando o tempo das patentes ou da exclusividade de mercado se aproximava do fim. O documento dá conta ainda de patentes que eram manipuladas para manter o monopólio, evitando assim, durante mais tempo, a entrada de genéricos no mercado. As empresas davam entrada com pedidos de segundas patentes, não para novos medicamentos, mas para fármacos antigos reciclados que eram apresentados como novos. Uma simples manipulação de dosagens era propagandeada como sendo um fármaco mais eficiente mantendo patentes, aumentando preços e induzindo os pacientes na compra.

Nalguns casos, os departamentos de investigação internos avisavam mesmo para a falta de evidência científica de benefícios para os pacientes na manipulação das dosagens.

Mas o dinheiro falava mais alto. E o relatório revela que a subida dos preços contribuiu para lucros substanciais. Só em 2019 os medicamentos analisados pelo Congresso geraram uma receita líquida de mais de 38 mil milhões de dólares às farmacêuticas em causa. E nos cinco anos analisados as empresas pagaram mais de dois mil milhões de dólares aos seus executivos de topo. De resto, as compensações estavam, nalguns casos, diretamente ligadas ao que fosse conseguido em determinados medicamentos.

O relatório revela que entre 2016 e 2020, as farmacêuticas investiram mais na recompra de ações e em pagamentos de dividendos, cerca de 557,9 mil milhões de dólares, do que em investimento e desenvolvimento dos medicamentos investigados, num montante de 521,8 mil milhões  de dólares. Dá ainda conta da colossal diferença entre receitas conseguidas por esses medicamentos e o investimento em investigação e desenvolvimento.

Olhando ainda para o outro lado do Atlântico, há histórias que se tornaram verdadeiros casos de polícia. Em 2015, a Turing Pharmaceuticals comprou o medicamento Daraprim para tratar a toxoplasmose, malária, sida e cancro subindo o seu preço de 13,50 dólares para 750 dólares. O responsável por esta subida, Martin Shkreli acabou banido da indústria farmacêutica e multado em mais de 64 milhões de dólares.

Noutro caso, Heather Bresch, chefe executiva da Mylan, começou a ser questionada quando aumentou o preço da Epipen de 56,64 dólares para 317,82 dólares. Foi um aumento de quase 500% e, no mesmo período, Heather subiu na carreira e viu o seu salário aumentado em 671%. A Mylan concordou pagar 465 milhões de dólares para resolver as muitas queixas. Mas, entretanto, os seus lucros de milhares de milhões de euros compensavam os milhões pagos.

Para Pedro Pita Barros, professor na Nova SBE, estes casos “são anómalos” e defende que não se deve “moldar todo o funcionamento de um setor à existência de casos anómalos de ganância desproporcionada. Porque se pensarmos bem, muitos dos medicamentos e muitas das empresas que funcionam aí, tentam ter uma abordagem ética.”

O professor da Nova SBE lembra até que as farmacêuticas têm “preços diferentes entre países porque reconhecem a diferente capacidade de pagamento dos países.” Por outro lado, refere que a procura de rentabilidade é natural na atividade económica. “O que é que esperamos que uma empresa faça? Queremos que uma empresa seja o mais eficiente possível a cumprir o objetivo de levar ao mercado um produto. E o modo de garantir que ela tem esse interesse é ter a ideia de lucro, a ideia de poder gerar um excedente que depois usa como quiser.  E não há nada de errado nisso. Muitas vezes diz-se que é ganância. Não. São eles a responder da forma adequada”, diz enquanto exemplifica que “ninguém recusaria ganhar cinco vezes mais do que aquilo que está a ganhar invocando razões morais se for um trabalho relativamente legal e lícito. As pessoas e as empresas reagem também às oportunidades de conseguir gerar um excedente. Excedente, que no caso da empresa, se chama lucro.”

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