opinião
Investigador universitário doutorado. Estuda a crise da democracia liberal, com foco nas guerras culturais, polarização e impactos nos direitos fundamentais

A nova "Reconquista Cristã": porco assado, Islão e o pânico da substituição

2 mai, 13:45

No Contrapoder (CNN), Sérgio Sousa Pinto e João Marques de Almeida desvalorizam os confrontos ocorridos no 25 de Abril, envolvendo manifestantes pacíficos e grupos da extrema-direita portuguesa. É verdade que no plano da eficácia política eles estão certos – não será aquele ato a transformar os envolvidos em heróis nacionais. Mas talvez lhes tenha escapado outro ângulo: o da leitura sobre a eficácia simbólica do porco assado, matéria a que aludi no CNN Arena. Assar o porco tinha por propósito o que Bourdieu chamou de "violência simbólica", forçando, assim, duas ideias: (i) através de uma ofensa religiosa manifestar a não concessão ao multiculturalismo, (ii) a recuperação da cidade como espaço de uniformidade cultural, simbolicamente revitalizando a ideia de que a um Estado corresponde um povo e uma cultura. 

Nesse plano, teve um sucesso estrondoso. Em publicações e debates nas redes sociais, a ideia tem sido reproduzida e acalentada, envolvida numa narrativa de reconquistar, novamente, a Mouraria, revisitando a reconquista cristã. Por exemplo, em Samora Correia, no Ribatejo, a aquisição de um terreno, em frente ao quartel dos bombeiros, na via principal, por parte da Associação Ahmadia, abriu uma discussão e frente de ação popular contra a "islamização" local, agudizada pela chegada expressiva de centenas de imigrantes do Indostão.  

O que isto nos diz sobre o Portugal tolerante?

O imaginário coletivo português é profundamente mitificado. É certo que não tem a riqueza da bordadura cultural das sociedades nórdicas e britânicas, com as suas tradições celtas ou bretãs medievais – das fadas e do círculo arturiano –, mas tem os seus próprios mitos. De entre os mitos, tem destaque o do "excecionalismo colonial", essa ideia de um país que se fez ao mar, e por genética cultural, resultante da longa presença de diferentes povos na Península Ibérica, apresentou um colonialismo diferente, benemérito, civilizador, harmonioso. 

Trata-se de uma narrativa poderosa, que alimenta o que Eduardo Lourenço chamou de "hiperidentidade" portuguesa – uma concentração desmedida da memória e da identidade coletiva na gesta ultramarina dos Descobrimentos. 
Todos os que estamos vivos fizemos a nossa educação primária (e em alguns casos até ao ensino secundário) com professores com olhos marejados do sal da epopeia portuguesa tão bem cantada pelos Sétima Legião. 

E essa "grande narrativa" (para usar uma terminologia de Lyotard) fez maravilhas pelo que Jorge Vala designa por "autoestima nacional", mas teve o efeito devastador de esconder inúmeros aspetos da realidade, como a violência colonial, a escravatura, a conversão religiosa forçada, o trabalho compelido e a tardia igualdade formal entre os cidadãos, entre metrópole e colónias. 

Como a história tem sido substituída por um enfoque na memória coletiva, ela é um ato político, que serve para afirmar uma unidade nacional e uma identidade social, ainda alinhada com as fundições dos projetos nacionalistas. Nessa esteira, ainda que tenhamos aprendido sobre a presença muçulmana na Península Ibérica, não tivemos presente – por opção curricular de memória – a sua duração e relevância, aparecendo como um interregno entre a "romanização" e a reconquista cristã que fundou a "portugalidade". 

Assim, a poderosa ideia de "miscigenação" como uma grande criação portuguesa tem tanto de realidade quanto de romantização, tendo, porém, gerado a crença de uma sociedade particularmente favorável à integração. 

Sucede que inquéritos como o European Social Survey, o relatório Being Black in Europe ou uma recente sondagem realizada pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) e pelo ISCTE, mostram a presença de crenças de hierarquia racial e cultural, que traduzem uma visão menos favorável à diferença. Ou seja, Portugal é um país que recebe bem os seus turistas, mas que tem uma postura diferente no que concerne aos seus imigrantes. 

No entanto, esta dimensão tem estado escondida nas sombras do que Franscisco Mendes da Silva já chamou de "boa consciência" portuguesa face à imigração, ou seja, a ideia de que enquanto não estivemos sujeitos a pressão migratória, pudemos gozar de uma autoestima de país sem problemas sociais. 

Tudo isto nos conduz ao maior desafio ocidental do nosso tempo – o de saber como gerir fluxos migratórios de origem muçulmana 

Estudos indicam que a questão migratória se tornou o centro das preocupações sociais e políticas das populações, estando fortemente presente na polarização entre uma esquerda que defende a cidadania global e a entrada irrestrita de imigrantes e refugiados, e uma direita nativista voltada ao combate à "ameaça" islâmica. 

Uma vez que os discursos nesta matéria têm por base a circulação acelerada de ideias políticas através das redes sociais, passa ao lado que desde o 25 de abril de 1974 que Portugal tem tido comunidades islâmicas devidamente integradas na sociedade portuguesa, de forma pacífica, plena e cooperante. 

Porém, a era da guerra cultural entre "globalismo" e "nativismo" ao recuperar a ideia de "choque de civilizações" (Samuel Huntington) abriu caminho para uma importação da "teoria da grande substituição", proposta por Renaud Camus, com base nos fluxos migratórios do Magreb em direção a França. Este pânico cultural e identitário – acelerado pela divulgação de notícias falsas como violações em massa, com forte expressão na Alemanha – tem alimentado o crescimento da direita radical, determinando sentidos de voto e novas alianças partidárias, com figuras como Geert Wilders, Viktor Orbán ou Giorgia Meloni, a construírem as suas plataformas políticas ou as suas agendas migratórias tendo por base o receio do refugiado e do imigrante. Como mostram diversos estudos, esse pânico moral foi essencial para o crescimento exponencial da AfD na Alemanha ou para o Brexit. 

Mas ao contrário do que uma parte da esquerda pretendeu veicular, é inegável que uma sociedade, por mais empenhada que esteja na integração, enfrenta desafios quando há diferença cultural. 

Assim, o crescimento da direita radical é uma anomalia das sociedades abertas e do multiculturalismo, em que não se consegue dar resposta adequada ao volume de desafios de integração. Como consequência, determinados grupos sociais sentem-se ameaçados economicamente – "competição étnica" pelo trabalho –, e uma fatia populacional (em parte a mesma) sente-se culturalmente ameaçada, acreditando que os seus valores e modo de vida estão em risco.

A teoria da "grande substituição" não precisa de provas – basta-lhe símbolos simples, repetidos até se tornarem senso comum. No entanto, não se combate esse discurso ignorando os desafios reais. O fluxo de imigração, em particular de países com códigos culturais distintos, como os do subcontinente indiano, pode gerar tensões locais, sobretudo quando há falhas na integração e no planeamento urbano.

O maior perigo, no entanto, é permitir que o medo se transforme em identidade política. O porco — assado ou não — tornou-se símbolo de algo maior: a facilidade com que começamos a aceitar o discurso do ressentimento como legítimo. Esse é o verdadeiro ponto de viragem. E talvez já o tenhamos ultrapassado.

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