Ainda era de manhã quando uma multidão de estudantes sonolentos - todos com uniformes iguais e penteados impecavelmente idênticos - se alinhou para a reunião diária junto ao mastro da bandeira na sua escola secundária em Banguecoque.
Baramee Chaovawanich, aluno do oitavo ano, estava entre os 3.600 estudantes presentes quando os professores percorreram cada fila, examinando todos os adolescentes numa verificação mensal do cumprimento do código de vestuário e da aparência.
Foi então que um professor apontou para Baramee Chaovawanich, conhecido pela alcunha “Khao Klong”, e disse que o seu cabelo estava demasiado comprido. Envergonhado, o rapaz foi forçado a chegar-se à frente e a ter a cabeça parcialmente rapada em frente à escola inteira, com o professor a deixar deliberadamente o corte por terminar para que Khao Klong o usasse daquela forma durante o resto do dia.
“Senti muita vergonha. Eu era uma criança e fui transformado numa piada, isolado, e raparam-me o cabelo de forma a que ficasse feio de propósito”, relembra Khao Klong, agora com 20 anos e na universidade. Lembra-se vividamente de ter regressado à aula depois, onde “todos se viraram para mim e desataram a rir.”
“Foi uma cena que ficou gravada na minha memória, e deixou-me muito inseguro", confessa.
O castigo pode parecer extremo, mas durante décadas, situações destas foram comuns por toda a Tailândia, com os estudantes a serem sujeitos a regras rigorosas sobre a sua aparência que vão muito além dos códigos de vestuário escolares de outros países.
Por exemplo, os estudantes do sexo masculino tinham de ter cortes de cabelo ao estilo militar, e as estudantes do sexo feminino tinham de usar cortes curtos, à altura das orelhas - até que as regras foram suavizadas em 2013 (quando os rapazes puderam deixar crescer o cabelo até ao pescoço, e as raparigas podiam deixá-lo ainda mais comprido, desde que estivesse apanhado).
O cabelo de Khao Klong estava apenas alguns centímetros acima do limite, mas mesmo isso era considerado demais.
Contudo, as regras sobre penteados estão a mudar de forma significativa. Em março, o mais alto tribunal administrativo do país anulou a diretiva, estabelecida pelo Ministério da Educação em 1975, declarando-a inconstitucional.
As regras “impunham restrições excessivas à liberdade pessoal”, violando assim a Constituição tailandesa, refere a decisão do tribunal. A decisão acrescentou que os regulamentos, com 50 anos, “não estavam alinhados com as condições sociais contemporâneas” e prejudicavam a saúde mental das crianças durante idades de grande importância no desenvolvimento, especialmente aquelas com identidades de género diversas.
A decisão do tribunal já era esperada há muito tempo, depois de os protestos estudantis de 2020 em todo o país terem trazido a questão para o centro das atenções e levado o ministério da Educação a deixar que cada escola decidisse as suas próprias regras.
A decisão foi recebida com entusiasmo por alguns estudantes, que há muito queriam expressar-se livremente através da sua aparência.
“As coisas mudaram, especialmente (em relação a como) verificavam os penteados”, afirma Nijchaya Kraisriwattana, de 16 anos. A sua escola em Banguecoque costumava fazer inspeções semanais à aparência dos estudantes, e Nijchaya já tinha perdido pontos académicos por ter o cabelo demasiado comprido.
As regras eram tão rígidas que tinha mesmo de prender a franja para trás e esconder os cabelos rebeldes à volta do rosto, mas, hoje em dia, as regras parecem “mais relaxadas”, explica.
No entanto, persistem preocupações entre quem receia que algumas escolas continuem a impor diretrizes rigorosas e castigos severos sem intervenção do governo.
“Inicialmente, fiquei feliz quando li a notícia da decisão, mas depois as pessoas começaram a analisá-la bem. Parece que ainda há lacunas, o que me deixa um pouco preocupado porque não parece muito diferente de antes", afirma Khao Klong. Este jovem e outros ativistas estudantis “ainda não viram muitas mudanças a acontecer”, acrescenta.
A CNN contactou o ministério da Educação para obter comentários.
Passado militar e cultura conformista
Embora possa ser difícil entender por que motivo as regras eram tão rígidas, refletem a sociedade budista conservadora e hierárquica da Tailândia e uma cultura nascida de muitos anos de governo autoritário.
A influência do exército é profunda na Tailândia, uma monarquia constitucional que sofreu uma dúzia de golpes bem-sucedidos desde 1932 - o mais recente em 2014. As regras do código de vestuário dos estudantes foram redigidas por um governo militar sob a ditadura de uma década de Thanom Kittikachorn, que foi deposto por uma revolta violenta em 1973.
Mas a influência conservadora do exército sobre a forma como os estudantes devem apresentar-se na escola persistiu até hoje, explica Thunhavich Thitiratsakul, investigador de políticas educacionais no Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento da Tailândia, que já escreveu sobre a política do código de vestuário.
“É uma norma social, o valor social é que os estudantes têm de obedecer à lei, e se se comportarem bem, tornam-se boas pessoas”, afirma.
Na Tailândia, “os estudantes têm de ouvir os pais e seguir os regulamentos da escola,” acrescenta. “Se (eles) conseguirem um emprego no futuro e souberem seguir as regras isso significa que são boas pessoas e tendem a sair-se bem”.
A ordem do tribunal reconheceu esta forma de pensar, sublinhando que os regulamentos sobre penteados tinham como objetivo “cultivar os estudantes como futuros cidadãos responsáveis, enfatizando a necessidade de supervisão próxima por parte dos pais e professores para garantir que seguiam as normas e leis da sociedade.”
Esta educação ao estilo militar estendia-se a outras formas de disciplina. Khao Klong recorda-se de ser espancado por professores quase “todos os dias” no ensino básico por “falta de disciplina,” às vezes com uma régua até o objeto se partir. As regras também eram rigorosas quanto aos uniformes, semelhantes em todas as escolas públicas, especificando até os tipos de meias e sapatos que os estudantes devem usar.
Com o passar do tempo, os estudantes começaram a reagir. Mas mesmo o abrandamento das regras em 2013 gerou controvérsia com alguns pais e professores a argumentarem que regulamentos mais flexíveis incentivariam a desobediência e a distração.
O debate continuou até que eclodiram protestos por todo o país em 2020, com um grupo de estudantes a decidir que era hora de as coisas mudarem.
'Maus Alunos' contra-atacam
Por todo o país, dezenas de milhares de manifestantes pró-democracia saíram às ruas, exigindo reformas à constituição redigida pelos militares e à poderosa monarquia. Os protestos foram notáveis por desafiarem tabus antigos e por criticarem a família real - o que, segundo as leis tailandesas, é punível com pena de prisão.
À medida que as manifestações se prolongavam pelo verão e outono, os estudantes também agiram. Alunos do ensino básico e secundário prometeram reformular o código de vestuário e os regulamentos sobre penteados, bem como reformar o que chamaram de abuso de poder por parte de professores e administradores.
Os dois movimentos eram distintos, mas os protestos estudantis podem ter sido influenciados pelas manifestações pró-democracia mais amplas, considera Thunhavich Thitiratsakul. Fotografias dos protestos estudantis mostraram centenas de adolescentes a adotar muitos dos símbolos visuais usados nas manifestações pró-democracia, como o gesto de levantar três dedos e os patos de borracha amarelos. “A nossa primeira ditadura é a escola”, lia-se em alguns dos cartazes de protesto.
Khao Klong foi um desses estudantes. A sua experiência com a cabeça rapada deixou uma “cicatriz mental” que não queria que mais ninguém sofresse, explica. Por isso, juntou-se a uma coligação de ativistas chamada Maus Alunos.
“Livrem-se dos uniformes amargos e ultrapassados!”, lê-se numa publicação no Facebook dos 'Maus Alunos' em novembro de 2020, apelando aos estudantes para “vestirem-se como quiserem.” No mês seguinte, o grupo organizou um protesto em frente ao ministério da Educação, onde penduraram os seus uniformes escolares nos portões.
Os protestos foram coloridos e animados com os estudantes devidamente equipados. Alguns colocaram fita adesiva preta sobre a boca para representar os seus sentimentos de opressão na escola; outros usaram fatos insufláveis de dinossauro, ridicularizando o que chamavam de geração mais velha e ultrapassada de políticos tailandeses que ditavam os seus uniformes.
Como forma de desafio, alguns cortaram o cabelo nos protestos. Uma jovem de 19 anos, Pimchanok Nongnual, rapou o cabelo nas escadas do ministério da Educação e em frente a um alto funcionário, segundo noticiou a Reuters na altura.
“E os estudantes com género fluido ou não-binários?”, questionaram muitos estudantes vestidos com roupas arco-íris para exigir uniformes mais diversos em termos de género.
“Sentíamo-nos sem esperança. Naquele momento, era como, se não formos nós, quem será? No sentido de que, se não falarmos, quem falará por nós?”, afirma Khao Klong.
O grupo apresentou petições e queixas ao governo, o que levou o ministério da Educação a revogar os regulamentos sobre penteados em 2023 para garantir que “não limitam a liberdade corporal dos estudantes.”
No ano passado, o ministério também aconselhou as escolas e os professores a serem cautelosos ao aplicar castigos.
A recente ordem do tribunal parece, pelo menos no papel, cimentar estas vitórias, e, ao declarar as regras de penteado “inconstitucionais”, poderá dar mais poder aos estudantes em escolas que optem por manter regras mais rígidas.
Nijchaya Kraisriwattana, a estudante de Banguecoque, sentiu a mudança quando chegou recentemente à escola sem prender a franja para trás. “Simplesmente deixaram-me passar sem dizer nada”, recorda.
Quando lhe perguntaram se queria mais liberdade na roupa, respondeu de forma efusiva: “Sim, absolutamente”. Disse que gostava de usar t-shirts e calças de ganga e de poder deixar o cabelo solto.
Mas Thunhavich Thitiratsaku considera que ainda é cedo para celebrar. "As escolas agora precisam de ser responsabilizadas e de consultar as suas comunidades e conselhos escolares sobre como ajustar os seus regulamentos", analisa. No entanto, não está claro se os estudantes terão lugar à mesa.
Cinco anos após os protestos, os estudantes que estiveram na linha da frente estão cansados. Muitos seguiram com os seus estudos, a lidar com as exigências do trabalho escolar, empregos e vida quotidiana. A questão dos direitos estudantis desapareceu das manchetes, embora os obstáculos persistam.
Ainda assim, Khao Klong afirma: “com esta decisão do tribunal, espero que possamos voltar a discutir os direitos e liberdades em todas as escolas, questões de opressão ou autoritarismo”.
“Só porque não falámos sobre isso não significa que tenha desaparecido; apenas esquecemos de o abordar”, acrescenta. “Sentimos que o desejo de lutar pode ter diminuído, mas ainda nos lembramos todos da sensação de ameaça quando nos levantámos para lutar pelos nossos próprios direitos".