Tudo se passa num hotel junto à praia, em Ofir, Esposende. "Mal Viver" é a história de uma família de várias mulheres, as donas do hotel, para as quais o espaço é "uma prisão asfixiante". "Viver Mal" segue em paralelo e foca-se nos hóspedes, neste lugar onde acontecem "coisas terríveis". São dois filmes mas, ao mesmo tempo, é apenas um, dividido em dois. O díptico que já é, para muitos, a obra-prima de João Canijo, chega esta quinta-feira às salas de cinema. Rita Blanco, Anabela Moreira, Madalena Almeida, Cleia Almeida, Beatriz Batarda e Nuno Lopes são alguns dos nomes que integram o elenco. Entrevistámos João Canijo, que com "Mal Viver" conquistou o Urso de Prata para prémio do júri no festival de cinema de Berlim, em fevereiro
Como é que surgiu a ideia para estes dois filmes? Na sua cabeça sempre foram dois?
A ideia inicial era um, mas já com a possibilidade de serem dois. Se houvesse financiamento suficiente para o hotel ter clientes.
Então a ideia inicial era o "Mal Viver"?
É. A ideia inicial era o "Mal Viver" e se o hotel pudesse ter clientes, em termos financeiros, surgiu-me logo a possibilidade de serem dois filmes.
O "Mal Viver" fala-nos de relações entre mães e filhas, mas de uma forma bastante violenta. Quis mostrar o lado mais cruel das mães e das filhas?
Não sei se é o lado mais cruel das mães e das filhas, mas as relações familiares são muitas vezes muito violentas. Costumo dizer que não há propriamente famílias funcionais, são todas bastante disfuncionais. E, porque são famílias, as relações são muito íntimas. A intimidade e até, em parte, a promiscuidade das relações familiares gera forçosamente violência.
O elenco de "Mal Viver" integra muitas das atrizes com quem já costuma trabalhar, mas também outras mais jovens. Como foi trabalhar com todas elas?
As jovens atrizes eu não as conhecia, tive de fazer castings. É impossível na minha idade conhecer miúdas de 20 anos - agora, como nem sequer vivo em Lisboa, é mais difícil ir ao teatro - e, quando as conhecia da televisão, o que elas fazem na televisão não é forçosamente aquilo que eu gostava que fizessem no filme. Portanto, tive de fazer castings como testes para saber se seria possível. As relações com elas foram muito boas até porque as mais crescidas ajudaram muito. Elas integraram-se muito facilmente no processo de trabalho. As audições não foram castings normais, essa coisa dos castings normais é coisa que eu não faço. As audições foram sempre a partir de um texto escrito, sim, mas com indicação de que aquele texto era uma base para improvisação e a improvisação foi feita com as atrizes mais crescidas. Elas fizeram a audição com as atrizes mais crescidas.
A improvisação é sempre importante nos seus filmes?
Improviso só no processo de trabalho. Na rodagem não. Nas filmagens não há improviso, há liberdade criativa, mas não há improviso.
Como é que as atrizes participam na criação das cenas?
Participam muito porque os ensaios são filmados e, depois dos ensaios filmados, tudo o que se passou nos ensaios é transcrito. E eu roubo tudo o que me interessa. Portanto, elas participam profundamente. Tudo o que lá está sai delas, depois manipulado por mim, mas sai das atrizes. Qualquer produto final é uma escolha e depois a escolha final é sempre minha. É escolher e roubar aquilo que elas me vão dando.
E roubou muito?
Tudo (risos). Depois manipulo como eu quero. O processo tem várias fases e a fase final já são improvisações sobre as cenas pensadas. Portanto, os diálogos finais saem sempre delas, com alguns retoques às vezes, mas saem sempre delas.
E no caso de "Viver Mal"?
"Viver Mal" é diferente de todos os outros filmes. "Viver Mal" tinha uma base concreta, existente, a partir da qual se trabalharam os argumentos. O "Viver Mal" parte de três peças do August Strindberg. As peças já existiam e o que as atrizes fizeram foi adaptar aquelas personagens a si próprias e à atualidade, embora as peças do Strindberg sejam um bocado intemporais.
"Viver Mal" é um filme mais leve?
O "Viver Mal" dá para rir, tem muitos momentos em que as pessoas se riem. No "Mal Viver", haverá um ou outro, mas é um riso nervoso. Mas a ideia era mesmo essa, embora aí a responsabilidade não seja tanto minha, é muito do Strindberg, que tinha aquele humor perverso.
O hotel é também uma personagem que une as várias histórias e personagens. Sempre quis gravar neste hotel em Ofir?
O hotel é uma grande personagem. É uma prisão asfixiante para as donas e é um hotel aberto, onde se passam coisas terríveis para os clientes. O hotel é uma memória de infância. Conheço este hotel desde pequenino, mas estava com medo que já não existisse. Foi o último de todos os hotéis que visitámos, com medo que o hotel já não estivesse como eu me lembrava dele, como era a minha recordação dele. Mas quando lá chegámos, a primeira vez, o hotel era tal e qual aquilo que eu me lembrava. Portanto, foi uma escolha imediata. Embora eu tenha visto para aí 80 hotéis.
Viu 80 hotéis antes de escolher este, apenas por uma questão de segurança?
Era uma questão de segurança, um plano B, no caso de o hotel já não ser o que eu imaginava que fosse. Mas era. E o mérito deve-se todo ao dono porque o dono é arquiteto e é filho do arquiteto que fez o hotel. Mantém o hotel uma joia, uma preservação da memória do pai. Aquilo é uma viagem no tempo, é uma preciosidade que ali está.
É um hotel bastante cinematográfico...
Não sei se é cinematográfico. Sei que é um hotel feito por um grande arquiteto, aliás, era um arquiteto conhecido que fazia parte do grupo famoso de arquitetos do Porto anteriores à geração do Siza Vieira, que já era uma escola de arquitetura importante. Chamava-se Júlio Oliveira.
Os dois filmes passam-se no mesmo espaço físico (hotel) e no mesmo espaço temporal. Como é que estes dois filmes se cruzam?
Foi uma das atrizes que me deu esta imagem há pouco tempo, já não me lembro de qual: toda a gente já foi a um hotel e já passou no corredor dos quartos para ir para o próprio quarto e, muitas vezes, ouve conversas que vêm dos quartos de outras pessoas. E, mesmo que estejam a viver um drama muito grande, aquelas conversas que ouvem ou que sentem nos quartos das outras pessoas existem e dão a sensação de que há vida para além da própria. E isso, às vezes, pode ser perturbador. A conversa do quarto ao lado pode ser perturbadora. O que a gente vê do nosso próprio quarto é uma visão do que se passa no quarto ao lado que se calhar não corresponde à realidade, é uma interpretação. A ideia é precisamente essa: são pontos de vista diferentes sobre coisas que estão a acontecer no mesmo espaço e ao mesmo tempo, vistas de maneira diferente.
São filmes em que o espectador é convidado a fazer a sua própria interpretação das cenas....
Volto ao corredor do hotel. Quando a gente passa no corredor do hotel e ouve conversas ou uma discussão vinda de um quarto com pessoas que a gente não conhece, a gente imagina as pessoas que está a ouvir e imagina as relações delas e imagina o conflito que estão a ter, embora não as conheça. Isso é interessante para o espectador como é interessante para nós quando vamos a um hotel.
Interessa-lhe então muito mais essa sugestão, essa possibilidade de interpretação?
Interessa-me muito mais do que a visão que pretende ser ilustrativa da realidade, porque nunca o é [real] - é sempre sujeita a uma interpretação. Quando a gente vê um retrato de uma pessoa, o retrato é real, a pessoa é real, o retrato é concreto, mas a interpretação que a gente faz da expressão da pessoa, da fotografia, é nossa. Não conseguimos nunca ter uma ilustração total daquela realidade, é sempre uma interpretação.
A propósito disso, há uma personagem no "Viver Mal" que diz que "não fotografa caras, fotografa rostos"...
Lá está (risos). Isso é uma adaptação que o Nuno Lopes fez de uma frase que está na peça do Strindberg.
E a questão dos vinhos e da comida?
Isso é uma coisa minha, não é do Srindberg (risos). Eu percebo alguma coisa, não muito. Mas tenho um grande amigo que é um dos grandes especialistas portugueses de vinhos e os vinhos e a comida são coisas muito importantes na minha vida. Queria fazer uma coisa séria. E para fazer uma coisa séria tanto a Cleia Almeida como a Anabela Moreira tiveram consultores próprios, a Cleia para explicar os pratos daquela maneira e a Anabela teve mesmo uma espécie de workshop. Tínhamos de escolher os vinhos e a Anabela depois foi com a lista de vinhos escolhida ter com um escanção, que era o escanção do restaurante "Pedro Lemos", e ele explicou-lhe como ela os apresentava. E depois ela recriou à sua maneira. Mas aquilo é discurso profissional.
Disse que foi importante para si trabalhar com a Leonor Teles (diretora de fotografia) e que houve ali uma experiência de comunhão artística. Foi a primeira vez que trabalharam juntos?
Foi. A Leonor a primeira coisa que me disse foi para que não contasse com ela para ser uma executante daquilo que eu queria. E eu respondi 'é exatamente isso que que quero, é que não sejas uma executante' (risos). E depois a comunhão foi muito grande. É muito engraçado porque ela podia ser minha filha - ela tem aliás a idade do meu filho - e a diferença de idades não se notava. Foi uma colaboração que me ajudou muito a melhorar aquilo que eu vinha fazendo. No fundo, um dizia 'mata' e o outro dizia 'esfola'. E houve uma coisa muito importante: ela obrigou-me a ser muito mais exigente comigo próprio do que eu era normalmente, porque eu facilitava um bocadinho.