Cinema Ideal: há dez anos a mostrar filmes independentes no centro de Lisboa

24 ago, 18:00
Cinema Ideal, em Lisboa (DR)

É uma das poucas salas de Lisboa que não fica dentro de um centro comercial e que foge à programação dos "cinemas de pipocas". O Ideal luta todos os dias contra o excesso de turismo na cidade e o facilitismo do streaming

Há dez anos, contrariando todas as tendências, abriu uma sala de cinema em Lisboa. De porta aberta para a rua do Loreto e com uma programação sobretudo de filmes independentes, o Cinema Ideal é um espaço único na cidade, e essa é capaz de ser uma das suas fragilidades, diz Pedro Borges, o responsável pela sala. 

Borges já tinha uma distribuidora, a Midas, criada em 2006. A  ideia de ser também exibidor fazia todo o sentido, mas “levou alguns anos até se concretizar”, recorda. O mais complicado foi, como é óbvio, encontrar o local certo. Entre o Largo de Camões e a Calçada do Combro ficava um antigo e pequeno cinema, inaugurado em 1904 como Salão Ideal e que, mais recentemente, com o nome Cinema Paraíso, tinha exibido filmes para adultos. “Se não fosse a Casa de Imprensa a proprietária, isto nunca teria acontecido, porque a pressão imobiliária é muito grande. Tiveram várias propostas, inclusivamente de uma cadeia de supermercados, mas gostaram do nosso projeto, interessava-lhes manter ali um cinema mas não gostavam de ter filmes pornográficos”, conta Pedro Borges. Quando se “reuniram as condições”, a Casa de Imprensa pagou uma indemnização aos anteriores inquilinos, a Midas assegurou as obras de remodelação com projeto do arquiteto José Neves e o contrato de arrendamento mantém-se até hoje.

“Calhou na pior altura, provavelmente, porque vínhamos a sair da crise de 2008 e aconteceram coisas que nós já prevíamos: o King fechou meses antes de nós abrirmos e depois fechou o Monumental. Tudo o que era espaço de cinemas que tinham existido no centro de Lisboa já tinha desaparecido. Se o Ideal não tivesse aberto a situação em Lisboa seria ainda mais absurda”, admite o exibidor.

Portanto, quando o Ideal abriu as portas na noite de 28 de agosto de 2014 para mostrar o filme "E agora? Lembra-me", de Joaquim Pinto, as condições já não eram as ideais e sabia-se que a exibição cinematográfica era um setor a entrar em crise. Mas, mesmo assim, havia um contexto que permitia ter alguma esperança: “Esta era uma das zonas mais vivas da cidade, toda a gente que saía à noite passava pelo Bairro Alto, pela Bica, pelo Cais do Sodré. Além disso, havia muita gente a trabalhar e a morar nesta zona ou relativamente perto.” Pessoas que gostavam de ir ao cinema depois de sair do escritório, que encaixavam um filme entre o trabalho e o jantar tardio num restaurante ali perto, que podiam sair do cinema e ir a pé para casa. O Ideal era verdadeiramente um cinema do bairro.

“O cinema não é para serem lojas de centros comerciais. É para serem espaços de rua, onde as pessoas gostam de ir, onde gostam de estar, onde se encontram com outras pessoas”, diz Pedro Borges. “Os cinemas devem ser espaços simpáticos, agradáveis.” O  que ele gostava mesmo era de ter um espaço com três ou quatro salas, com diferentes perfis, para as pessoas irem e descobrirem outros filmes, onde os espectadores pudessem aparecer e decidir na hora o filme que querem ver. O que tem é um cinema com uma só sala com 190 lugaees, um pequeno café, uma loja onde se vendem DVDs e posters. Mas com uma identidade.

O interior da sala do Cinema Ideal (DR)

O Ideal é um espaço privilegiado para mostrar filmes portugueses, mas também europeus e de todas as outras latitudes, do iraniano Kiarostami ao sul-coreano Bong Joon Ho. É um cinema para filmes em estreia, embora possa ter reposições. É um espaço para encontrar e dialogar com os autores. “É importante mostrar a atualidade, os filmes que estão a ser feitos. Os clássicos são importantes para termos a noção do que é bom, aquilo que resiste ao tempo - isso ajuda as pessoas a elevar o seu padrão de exigência. Mas para mostrar os clássicos já temos o Nimas e a Cinemateca", explica o programador. Aqui tenta-se prolongar a carreira de um filme, porque “nem toda a gente consegue vir na semana de estreia”. E tenta-se acompanhar a carreira de um autor, porque “às vezes só ao segundo ou terceiro filme é que começamos a gostar”. Há uma ideia de cinema (e de sala de cinema) - quem vai ao Ideal sabe o que pode esperar e o que não vai encontrar.

E quem é que vai? “Em 2019 tivemos o nosso melhor ano de sempre, com mais de 40 mil, quase 41 mil espectadores.” A pandemia foi responsável por uma quebra no número de espectadores, de que o cinema ainda não recuperou: “Estamos 20% abaixo do que estávamos”, admite Pedro Borges. Os hábitos de cinema mudaram, as pessoas habituaram-se a ver muitos filmes em casa, nos serviços de streaming. O exibidor sabe que o seu público gosta de ir às salas de cinema, que privilegia o grande ecrã, mas, ainda assim, tem sido um desafio. O público tem envelhecido, no Ideal há menos jovens até aos 30 anos do que havia. Talvez estes não sejam os filmes que interessam aos jovens. Pedro Borges tem esperança que voltem, mais tarde. Afinal, gostamos de coisas diferentes ao longo da vida.

E depois da pandemia, a explosão do turismo e o preço do imobiliário transformaram a cidade. “Estamos no meio deste inferno do turismo selvagem de Lisboa. Há menos pessoas a morar e a trabalhar aqui. Essa mudança foi dramática. Já ninguém almoça ou janta nesta zona da cidade, desapareceram os restaurantes que havia, cafés do bairro, os pequenos comércios, é tudo para o turismo. Tornou-se desconfortável vir para aqui à noite ou aos fins de semana, há imenso barulhos, multidões, os passeios cheios. Mesmo assim, muitas pessoas continuam a vir, mas porque fazem um esforço, porque querem mesmo vir ao Ideal”, afirma Pedro Borges. “Este é um desafio também para a sobrevivência da cidade. Alguma coisa tem de ser feita”, alerta.

“Precisamos ter uma média de 36 a 37 mil espectadores por ano. Não estamos ainda lá.” Contra tudo e contra todos, o Ideal mantém o preço dos bilhetes praticamente igual há anos, o que só acontece porque existem apoios públicos - do ICA - Instituto do Cinema e Audiovisual, da Câmara de Lisboa e da rede Europa Cinemas. “Se não nem sequer conseguíamos ter a porta aberta, ou então os bilhetes teriam de ser muito mais caros. Isto é uma pequena mercearia, são contas muito apertadas."

“O ICA aumentou significativamente o apoio à produção de filmes, mas não há onde e como os mostrar. Seria necessário haver mais 10, 15 ou 20 cinemas ideais espalhados pelo país, pelo menos mais um ou dois destes espaços em Lisboa", diz, lamentando que em todo o país apenas o Trindade, no Porto, e a Casa do Cinema, em Coimbra, façam algo semelhante. "Seria importante que todos os anos entre o ICA e as câmaras houvesse um programa sério de apoio às salas de cinema”, defende. “Os cinemas estão abertos 365 dias por ano, 10 a 14 horas por dia. Isto do ponto de vista urbano, de cada cidade, freguesia ou bairro, tem um valor inestimável. O cinema costumava ser o sítio onde as pessoas se encontravam. E tem um preço democrático, igual para todos e  razoavelmente acessível. O que nós fazemos é fornecer um serviço público de cinema e isso deveria ser reconhecido.”

A celebrar os dez anos, o que Pedro Borges sente é que "foi uma profunda derrota". "Estava sinceramente convencido que se conseguisse fazer e financiar a obra, o Ideal podia servir de exemplo. E que outros cidades iriam querer ter um cinema parecido. Eu tinha essa ilusão. E que podia ajudar a que a política pública também pudesse criar outros apoios. Isso mudava tudo, iria aumentar o público dos filmes, criar uma rede de circulação, um movimento." Ser quase o único não é, portanto, assim tão bom. Mas, apesar de tudo, Pedro Borges continua a gostar de ir ao Ideal, perceber se um filme está ou não a ser bem recebido, ver as caras de quem entra e quem sai da sala escura, ouvir as conversas depois dos filmes, programar e participar nas sessões especiais. "Há um gosto, para quem trabalha na exibição, que é diferente do resto do trabalho no cinema, que é chegar às pessoas, é um gosto especial", diz. "Quem sobreviveu dez anos, sobrevive mais dez”.

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