Em Haia, a NATO reúne fardas, gravatas e ambições para forjar uma nova era de defesa, enquanto a influência americana dita o ritmo da cimeira. Mas o secretário-geral da Aliança está preocupado com um assunto muito específico: "Temos de ganhar esta nova guerra". Nova guerra? Outra? Qual? Onde? Contra quem? "É disso que trata esta cimeira." Reportagem de João Guerreiro Rodrigues, enviado especial da CNN Portugal a Haia
Com precisão militar, a sala foi-se compondo: chegam um a um - "um a um" e não "uma a uma" porque são maioritariamente homens, maioritariamente mais velhos, divididos entre os que vestem fato e gravata e os que envergam fardas de várias cores, com diferentes condecorações e acessórios. Há acessórios mais pomposos que outros e nem as extensas restrições militares são suficientes para limitar o instinto italiano para expressar o sentido estético. Tudo junto - ou todos juntos - é uma combinação poderosa: de um lado estão os principais representantes de alguns dos exércitos da maior aliança do mundo, que se preparam para receber um dos maiores aumentos de orçamento desde a queda do Muro de Berlim, do outro estão os políticos que se preparam para assinar o cheque e ainda alguns dos empresários e industrialistas que se preparam para o receber.
Estão em Haia numa cidade dentro de uma cidade, feita à medida deles para que se possam encontrar em paz. Longe das perturbações do quotidiano da cidade que aqui existia e de possíveis vozes críticas. Fecharam-se ruas, ergueram-se barreiras, polícia e militares foram colocados em alerta máximo. É o primeiro dia da cimeira da NATO em Haia e aqui todos estão em sintonia: é preciso afinar as máquinas da indústria da defesa. E é para ser feito com urgência.
A sala está a transbordar de fardas e gravatas para ouvir os três oradores que abrem este fórum. De repente, a voz quase robótica de uma mulher com sotaque britânico ecoa das colunas e cala toda a gente. "Temos de melhorar as nossas capacidades defensivas: RÁPIDO. Vamos detetar, prevenir e contrariar todas as ameaças, debaixo de água, em terra e no céu. No Fórum Industrial de Defesa da NATO, nós unimos, nós inovámos, nós entregámos", promete a mulher cujo nome nunca conheceremos mas que nos garante "proteger mil milhões de cidadãos da NATO e as gerações que vêm". A proposta é arrojada, mas a dimensão do que se espera anunciar no dia seguinte não é para menos.
E o primeiro orador lembra-nos precisamente disso. Esta quarta-feira, 25 de junho, vai ser "um dia histórico" não só para a Aliança mas também "para a nossa indústria da defesa", explica Ruben Brekelmans, o ministro da Defesa dos Países Baixos. Tem apenas 38 anos, compreende bem que os holofotes que apontam para os políticos nesta cimeira são apenas uma distração. A verdadeira força da Aliança não é medida ali, naquele aglomerado de cargos que ocupa aquela sala, mas sim fora daquelas paredes "nos homens e mulheres que se encontram prontos para defender a nossa liberdade".
Até porque o mundo, insiste Ruben Brekelmans, é cada vez mais incerto e perigoso. Prova disso é o gigantesco elefante que existe em todas as salas desta cimeira: os ataques dos Estados Unidos, principal membro da Aliança, contra as centrais nucleares iranianas - facto que "sublinha a crescente instabilidade no mundo". Apesar de vários membros da Aliança, como Espanha e a Turquia, reprovarem as ações americanas, a cimeira da NATO em Haia é o lugar errado para procurar críticas à administração Trump. As dúvidas em torno da aprovação da meta de 5% - proposta pelo presidente norte-americano - ainda pairam no ar e aqui ninguém arrisca ser alvo da imprevisibilidade da administração americana.
O foco aqui é a indústria da defesa e as dúvidas com que os governantes se confrontam. Brekelmans admite que é frequentemente confrontado com decisões difíceis. Como é que se sobe o orçamento das forças armadas e ao mesmo tempo se beneficia a indústria nacional com esse dinheiro? A resposta também não se encontra aqui. Para isso é preciso viajar até à frente de batalha na Ucrânia, mais precisamente até Kharkiv, onde a cooperação entre militares, governantes e empreendedores foi capaz de manter os russos longe da segunda maior cidade do país. "Temos de ser abertos acerca destes dilemas e encontrar soluções para ultrapassar estes dilemas", defendeu, antes de abandonar o microfone para o próximo orador.
Isolado, este dilema não explica o facto de a Rússia continuar a ser capaz de produzir em três meses mais munições de artilharia do que todos os membros da Aliança em conjunto, passados três anos desde o início da invasão à Ucrânia. E o secretário-geral da NATO também aparenta não compreender como é que a Rússia está a ganhar "esta nova guerra de produção". Mark Rutte defende que "é impensável" que uma economia como a russa, que é "25 vezes mais pequena que a da NATO", seja capaz de "produzir mais armamento". É preciso "fazer mais, melhor - mas agora", disse perante a plateia repleta de líderes industriais e empresários dos setores da tecnologia.
"Temos de ganhar esta nova guerra de produção. É disso que trata esta cimeira", insiste. Até porque a Aliança entende agora que já não é só a Rússia que ameaça o bloco. A China, que desde 2022 a Aliança classifica como um "desafio sistémico", está a fornecer tecnologia fundamental a Moscovo para continuar o seu esforço de guerra a toda a velocidade. Mas Rutte tem dedos de sobra para apontar também para o Irão, que fornece armas ao Kremlin, e à Coreia do Norte, cujos soldados atacam as forças ucranianas na linha da frente. Para Rutte, a NATO precisa de procurar inspiração no império romano para conseguir ultrapassar este desafio. "Se queres paz, prepara-te para a guerra, torna as tuas defesas tão fortes que ninguém se atreve a atacar-te."
Só que não existe uma defesa forte sem uma indústria da defesa forte - e ela está a escutar com atenção. Espanha ainda não cedeu, mas Rutte fala como se tudo estivesse decidido. "Nós acordámos um aumento sem precedentes." O objetivo é dar à indústria a previsibilidade de que necessita para aumentar a sua capacidade de produção. O secretário-geral da NATO acredita que a medida vai permitir saber exatamente que forças, recursos e capacidades é que cada aliado precisa e isso vai ser "um salto quântico" na defesa coletiva. "Quando há vontade, os nossos industriais e empreendedores vão encontrar o caminho" e criar "milhões de empregos dos dois lados dos oceanos."
A mensagem do secretário-geral é clara: é altura de a indústria se chegar à frente e "entregar, entregar e entregar" as capacidades necessárias. Não menos clara é a insistência de Rutte em afirmar que não pode existir uma defesa europeia sem uma relação transatlântica forte com a principal potência militar da Aliança.
Pouco depois, seria o próprio presidente norte-americano a partilhar uma SMS de Rutte que alertava que Trump estava prestes a "viajar para mais um grande sucesso" em Haia, com todos os membros "comprometidos com os 5%", acrescentando que “a Europa vai pagar à GRANDE, como devia". Esta imprevisibilidade de Trump está a tornar a cautela e a contenção em palavras de ordem nesta cimeira, particularmente em comparação com as edições anteriores, onde a retórica em torno do conflito da Ucrânia inflamou o discurso dos líderes políticos. "Nota-se que há mais contenção. Esta cimeira está a ser bem mais contida do que a anterior, onde os discursos em torno da Ucrânia estavam carregados de um sentido de urgência", recorda Mariana André, secretária-geral da Youth Atlantic Treaty Association (YATA) Portugal. Este ano, apesar de a Rússia estar a conquistar território ao ritmo mais elevado desde 2022, o discurso em torno da Ucrânia está bem mais moderado.
Há moderação até mesmo por parte dos próprios ucranianos, com o ministro dos Negócios Estrangeiros a afirmar numa das conferências que a situação no terreno "estava controlada". O secretário-geral da Aliança ainda tentou "acalmar" os ucranianos, garantindo que a sua entrada na Aliança é irreversível, embora a declaração final do documento deva referir a Ucrânia de forma marginal. No primeiro dia da cimeira em Haia, o foco estava na indústria e isso inclui a Ucrânia.
Quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, subiu ao palco para tomar o lugar de Rutte, a Ucrânia voltou para segundo plano. Já não é só na linha da frente na Ucrânia em que se joga o futuro da Europa, é nas fábricas das empresas de vários dos presentes. "A Europa da defesa finalmente despertou" para "uma mudança tectónica" que só acontece uma vez por geração - e com isso deve vir o reabastecimento das reservas europeias. Mas não só. A líder europeia acredita que está na hora modernizar sistemas e criar novas tecnologias. Por isso, a Comissão promete dar acesso às gigantescas bases de dados a empresas de duplo uso.
À medida que von der Leyen abandona o palco, a plateia tenta absorver aquilo que foi dito. Não é apenas o cheque de 5% do PIB que define esta cimeira, nem a promessa de uma Europa que, após décadas de hesitação, se compromete a forjar uma defesa capaz de enfrentar um mundo onde os adversários não esperam. Em Haia, a indústria da defesa ouve o apelo, os políticos alinham as prioridades e os militares preparam-se para o que vem a seguir. Nos corredores, porém, sussurra-se uma verdade incómoda: esta cimeira, com a sua contenção e alinhamento, parece desenhada à medida da imprevisibilidade de Donald Trump, cujas exigências ecoam mais alto do que as vozes da própria Europa.