A luta por consenso na cimeira da NATO expôs várias vulnerabilidades da União Europeia. Reportagem em Haia do enviado especial da CNN Portugal, João Guerreiro Rodrigues
Se no primeiro dia da cimeira as salas transbordavam de empresários da defesa e militares condecorados que escutavam atentamente as promessas dos líderes da NATO, no segundo e último dia apareceu um novo exército para ocupar o terreno: armados com centenas de câmaras com grandes objetivas, portáteis e blocos de notas, mais de uma centena de jornalistas aguardam pacientemente numa sala escura para ouvir as palavras do verdadeiro protagonista da Aliança – aquele a quem Mark Rutte enviou uma SMS que causou espanto e até choque: Donald Trump. E, nessa SMS, o secretário-geral da NATO tinha prometido dar ao presidente americano "uma entrada triunfal" em Haia - e quando Trump entrou para o palco, ladeado pelos secretários de Estado e de Defesa, parecia tudo menos desiludido.
"Foi uma viagem tremendamente grande mas valeu a pena", anuncia Trump. Que conseguiu aquilo que queria da Aliança: obrigar todos os 32 membros a atingir a meta de investimento de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) ainda este ano e a aceitar o novo alvo de 5% – inicialmente sugerido por "daddy Trump", como apelidou o secretário-geral da Aliança. "É algo que ninguém achava possível", frisou.
Nos bastidores sussurrava-se que a Europa, encurralada pela imprevisibilidade de Trump, cedeu não por consenso mas por necessidade. Na véspera, o presidente americano partilhou publicamente a tal SMS que Rutte enviou e que dizia assim: "Senhor presidente, querido Donald. Felicitações e agradecimentos pela sua ação decisiva no Irão, foi algo verdadeiramente extraordinário e algo que ninguém podia, jamais, atrever-se a fazer. Fez com que estejamos todos mais seguros. Está a voar até outro grande êxito em Haia. NÃO tem sido fácil, mas todos estão a concordar com os 5%. Donald, conduziu-nos a todos a um momento muito, muito importante para a América, Europa e mundo. Conseguirá o que NENHUM outro presidente pôde fazer em décadas. A Europa vai pagar-lhe em GRANDE, como deve, e essa será a sua vitória". As palavras de Rutte foram consideradas "vassalagem" pela imprensa espanhola mas não só: "vassalagem" foi uma palavra recorrentemente repetida nos corredores da cimeira.
Mal terminou o discurso, dezenas de braços de jornalistas ergueram-se, ansiosos por questionar. Trump, com um sorriso provocador, não resistiu à atenção. "Nossa, tantas mãos!", brincou, agitando os braços em direção à multidão. De seguida, Trump aponta para a plateia e começa a demonstrar como são tratados aqueles que o ousam questionar: "Quem é uma boa pessoa? Tu não és uma boa pessoa"; "esperem até ouvir esta pergunta”, provocou, perante os risos nervosos de alguns jornalistas.
Vão pagar o dobro
Só um país ousou desafiar Trump. Pedro Sánchez, presidente do governo espanhol, resistiu até ao fim à meta de 5% proposta pela Aliança, defendendo que 2,1% bastariam para fazer face às necessidades da NATO. Espanha, que é o membro que menos gasta em defesa em função do PIB, foi também o principal alvo do discurso de Trump. "Eles são o único país que não paga. Nós estamos a negociar com Espanha um acordo comercial. Vamos fazê-los pagar o dobro", ameaçou Trump.
Longe do palco onde todos os olhos e ouvidos estavam focados em Trump, Sánchez mantinha-se firme. A sua postura não denunciava que se encontrava debaixo do fogo do líder da maior potência militar do mundo. “Espanha cumprirá as suas capacidades e seguirá como pilar da segurança europeia, do flanco sul ao leste, onde destacámos quase três mil militares, com veículos e tecnologia de vanguarda”, declarou. Falou com voz pausada, insistindo que a escolha de manter os 2,1% do PIB em defesa era "suficiente e realista".
Mas as palavras e o tom calmo de Sánchez escondiam a árdua batalha de bastidores que aconteceu para se chegar a um acordo para a declaração final da cimeira. Entre os 32 membros formaram-se facções. Os países do leste, onde a Rússia espreita tão de perto, exigiam que a meta de 3,5% do PIB fosse alcançada até 2030. Outros também apoiavam o aumento, mas pediam um prazo mais largo para não colocar em causa as finanças públicas. No fim, apenas Espanha se manteve inflexível, insistindo numa exceção que desafiava a pressão de Trump e testava a paciência de Haia.
O desbloqueio informal português
O impasse só foi ultrapassado nos bastidores, onde Portugal teve um papel a desempenhar. Uma fonte diplomática portuguesa, falando sob anonimato, revelou que Portugal desempenhou um papel “muito importante mas informal” para desbloquear a declaração final da cimeira. Num jogo de equilíbrio delicado, os diplomatas portugueses, em articulação com Mark Rutte e aliados-chave, conseguiram aproximar posições aparentemente irreconciliáveis. “Pediram-nos que facilitássemos, de forma quase pessoal, o diálogo com Espanha e outros países relutantes face às metas de 3,5% do PIB”, confidenciou a fonte.
Portugal acabou por surgir como uma ponte improvável, que desempenhou nos bastidores um papel crucial para que o acordo - que necessita de unanimidade para ser aprovado - não colapsar sob o confronto entre as exigências espanholas e americanas. O principal obstáculo, como esperado, veio de Madrid, mas não era o único. Vários aliados, incluindo Portugal, expressaram reservas sobre prazos apertados, citando restrições orçamentais internas. A proposta inicial de Rutte, que fixava 2032 para atingir os 3,5%, enfrentou resistência de países próximos da Rússia, que pressionavam por 2030. Portugal conseguiu, junto de países como o Reino Unido e a Itália, aumentar o prazo para dez anos, para 2035.
A diplomacia portuguesa esteve também no centro da proposta do prazo de revisão da meta para 2029, uma revisão intercalar que vai servir para avaliar a situação de ameaça em que a NATO se encontra, podendo alargar ou encurtar o prazo estabelecido para 2035. Inicialmente sugerida pela diplomacia nacional, a medida acabou por colher o apoio de "outros aliados importantes", tornando-se um aspeto fundamental para equilibrar a visão dos países que queriam um prazo mais reduzido e a dos países que pediam mais tempo. Essa flexibilidade viria a revelar-se crucial para chegar a um consenso e evitar que a cimeira descarrilasse.
Mas o governo português quis mostrar que não é como os outros e que os seus méritos estão apenas confinados aos interiores. Numa das muitas pequenas salas preparadas para conferência de imprensa, com as paredes com os vários tons de azul da Aliança, Luís Montenegro anunciou que vai reforçar em mais de mil milhões de euros a área da Defesa até ao final do ano, de forma a que o país se junto ao grupo de países que investe mais de 2% do PIB em defesa. "Andará à volta de mil milhões de euros, talvez um pouco menos, de investimento direto em aquisições de equipamento, de infraestruturas, de valorização dos nossos recursos humanos", disse o primeiro-ministro, que prometeu anunciar a data "tão rápido quanto possível".
Vencer a nova guerra
Numa Haia transformada numa fortaleza para a cimeira, Trump pode ter dominado o último dia mas não foi o único a sair vitorioso. Para compreender o verdadeiro alcance do evento, é preciso recuar ao primeiro dia, quando o foco recaiu sobre um futuro inundado de equipamento militar. “Esta quarta-feira, 25 de junho, será um dia histórico não só para a Aliança, mas para a nossa indústria da defesa”, proclamou Ruben Brekelmans, o jovem ministro da Defesa dos Países Baixos.
O foco aqui é a indústria da defesa e e os dilemas que atormentam os governantes. Brekelmans admite que é frequentemente confrontado com estas decisões difíceis: como é que se sobe o orçamento das forças armadas e ao mesmo tempo se beneficia a indústria nacional com esse dinheiro? Vencendo a nova guerra, a "nova guerra de produção". "É disso que trata esta cimeira", explicou Brekelmans. A meta é clara: garantir à indústria a previsibilidade necessária para expandir fábricas e forjar arsenais capazes de sustentar a NATO.
O objetivo é dar à indústria a previsibilidade de que necessita para aumentar a sua capacidade de produção e dar o que Mark Rutte diz ser um "salto quântico" nas capacidades de defesa da NATO. "Quando há vontade, os nossos industriais e empreendedores vão encontrar o caminho" e criar "milhões de empregos dos dois lados dos oceanos".
Nos corredores, onde a resistência de Sánchez ainda era tema de conversa e o papel discreto de Portugal continuava a passar despercebido, todos os olhos continuavam concentrados nas enormes quantidades de dinheiro que estão prestes a ser desbloqueadas para a defesa. Mas, enquanto a cimeira encerrava entre apertos de mão e flashes de câmaras, uma pergunta pairava no ar: pode a Europa, moldada pela imprevisibilidade de Trump e dividida entre a ousadia de uns e a cautela de outros, transformar este esforço em soberania ou ficará reduzida a ser um eco das exigências de Washington?