NATO abriu "uma caixa de pandora" na cimeira de Haia mas Portugal "pode beneficiar com isso"

João Guerreiro Rodrigues , enviado especial a Haia
24 jun, 08:00
Montenegro Nato

Entre a rebeldia espanhola e as ambições da NATO, Portugal pode ter uma oportunidade para redefinir o seu papel na aliança

Donald Trump sonhou, a aliança concordou mas Sánchez rejeitou. Para evitar um bloqueio na cimeira de Haia, que arranca esta terça-feira, a NATO cedeu: o governo espanhol conseguiu que a declaração final fosse alterada para permitir a Madrid ser a exceção à regra dos países da aliança que vão gastar 5% do PIB em defesa, uma meta que o primeiro-ministro Pedro Sánchez classificou como "desproporcionada e desnecessária". Apesar do acordo de última hora, o impasse criou "fissuras" e os especialistas alertam que foi criado um precedente perigoso que pode colocar em causa a própria aliança, ainda que possa vir a beneficiar Portugal.

"Parece-me uma decisão muito má porque a NATO pode ter aberto uma caixa de pandora. Quando se abre uma exceção para um país como a Espanha, que não é propriamente um país miserável ou pobre, abre-se aqui precedente que pode trazer problemas no futuro", defende o major-general Isidro de Morais Pereira, que sublinha que há nações "com menos capacidades que cumprem mais".

A nova meta proposta pela NATO prevê que todos os aliados aumentem o investimento em defesa para 3,5% do PIB, mais 1,5% em outras áreas que podem estar ligadas à defesa, como a cibersegurança ou infraestruturas que possam ser utilizadas pelas Forças Armadas, como estradas, portos, pontes e aeroportos. Esta última categoria poderá também englobar infraestruturas, o complexo militar-industrial e ajuda à Ucrânia, alterando a base tradicional de cálculo das despesas da NATO.

Apesar da meta de 5% ser ambiciosa, o prazo final para a atingir foi definido para 2035, uma "vitória" para países como Itália e Reino Unido - que temiam um aumento rápido que pudesse desestabilizar as suas finanças públicas. Contudo, esta data mais alargada não satisfez todos: o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, tinha proposto o prazo de 2032, mas os países mais próximos da Rússia pressionaram por um prazo mais curto. A data final será reavaliada em 2029.

O facto de Espanha se juntar aos Estados Unidos - Donald Trump garantiu que a meta também não se aplica a Washington - pode colocar em causa o cumprimento desta meta por parte de outros países. Para Isidro de Morais Pereira, esta é uma decisão que "minar o espírito da aliança" e colocar em causa a coesão entre os aliados, onde todos devem contribuir proporcionalmente. "Na minha opinião, não devia haver exceções", insiste.

"Do ponto de vista da aliança isto é péssimo, a NATO já tem fissuras que cheguem. Este afastamento dos Estados Unidos da Europa e países como a Espanha que não aceitam rearmar... Isto vem introduzir uma nova nota de dissonância na cimeira da NATO que não era necessária", lamenta Diana Soller, especialista em Relações Internacionais. 

Os membros da aliança entram nesta cimeira com orçamentos de Defesa muito diferentes. Portugal, que ultrapassou as expectativas em 2024 com um investimento de 1,58% do PIB em Defesa (a NATO previa gastos de 1,55%), continua a ser um dos seis países que menos investem nas suas forças armadas. O executivo português executou 4.481 milhões de euros em despesas militares (incluindo gastos com a Guarda Nacional Republicana), com os salários a serem responsáveis por 58% do dinheiro gasto no setor.

Apesar de ter ficado aquém da meta estabelecida na Cimeira da NATO de 2014, no País de Gales, quando os membros da aliança acordaram aumentar os gastos em defesa até 2% do PIB nacional até 2024, o valor dos gastos portugueses foi o mais elevado dos últimos dez anos. Em 2014, apesar de ter mais militares no ativo, Portugal gastou apenas 2.253 mil milhões de euros, com 81,3% desse valor a ser gasto em salários. 

Ao todo, nove países ainda não atingiram o gasto de 2% do PIB afeto à Defesa, entre os quais Espanha, que é o que menos gasta. Apesar de o número de países cumpridores ter disparado, e de acordo com dados da NATO, Croácia (1,81%), Itália (1,49%), Canadá (1,37%), Bélgica (1,30%), Luxemburgo (1,29%), Eslovénia (1,29%) e Espanha (1,28%) permanecem abaixo da meta dos 2%. Ainda assim, a tendência é de clara subida e quase todos os países comprometem-se a chegar aos 2% do PIB ainda este ano, incluindo Espanha. Em 2022, ano da invasão russa da Ucrânia, apenas sete países cumpriam a meta estabelecida. Dois anos mais tarde, esse número disparou para 23.

"Eu conheço muitos militares espanhóis. Eles compreendem certamente que isto é uma opção política e ultrapassa os espanhóis. Os militares espanhóis que, neste momento, estão em funções nos quartéis-generais da NATO sentir-se-ão no mínimo envergonhados por ser o único país a ficar de fora. E não há outra forma de o dizer", afirma o major-general Isidro de Morais Pereira.

A NATO chega a esta cimeira com apenas um membro a cumprir atualmente esta meta: a Polónia, que investiu 4,12% do PIB em Defesa em 2024 e que espera aumentar os gastos para 4,7% já este ano, devido à proximidade da ameaça russa. Alguns dos gastos mais elevados pertencem também a países que fazem fronteira com a Rússia ou que já foram ocupados por Moscovo, como é o caso de Estónia (3,43%), Letónia (3,15%) ou Lituânia (2,85%). 

Em relação a 2014, apenas um país reduziu os gastos em Defesa: os Estados Unidos da América. A principal potência militar investiu 3,38% do PIB nas suas forças armadas em 2024, menos do que os 3,5% que gastavam em 2014, quando a Rússia invadiu e anexou a península ucraniana da Crimeia. São também o único país, além de Espanha, a quem a aliança permitiu não cumprir a meta de 3,5% do PIB em Defesa. Este cenário dá uma oportunidade a Portugal, que pode ganhar protagonismo para os norte-americanos nesta região do globo. 

"Portugal pode vir a beneficiar com isto. Nas relações transatlânticas, Espanha tomou uma posição que tradicionalmente era a posição portuguesa e sobrepôs-se a nós porque é maior, mais rica e tem mais recursos. Este afastamento de Espanha, que se prende também por questões ideológicas, abre caminho para Portugal ter uma posição mais interessante para com os Estados Unidos", sugere Diana Soller.

O governo de Luís Montenegro comprometeu-se a atingir a meta de 2% do PIB já em 2025, apesar de ainda não ter anunciado como é que o pretende fazer. Este compromisso representa um encargo adicional que pode atingir os 1.500 milhões de euros. Só que este esforço financeiro adicional ameaça prejudicar as finanças públicas nacionais, com o Conselho de Finanças Públicas a alertar que o país pode registar um défice de 0,6% do PIB entre 2027 e 2029, devido a esta medida. Para atingir os 3,5%, Portugal precisaria de gastar mais do dobro dos 4.481 milhões investidos em 2024, que teria um peso ainda maior nas contas públicas. No entanto, o executivo insiste que este investimento não vai afetar as despesas sociais.

Para a especialista em Relações Internacionais Diana Soller, esse é o preço a pagar por "várias decisões erradas" e afasta a ideia "do mundo cor de rosa" em que Portugal está livre de perigo por se encontrar geograficamente longe da principal ameaça à aliança. "Não há risco? Isso é uma ilusão. Portugal está tão em risco como a Polónia e a Estónia. Nós estamos obrigados a entrar em guerra caso a Rússia invada a Polónia e a Lituânia. Por isso é que nós não devemos aceitar esta ideia de que Portugal está livre perigo", insiste Diana Soller. 

Portugal é responsável pela segurança de vários cabos submarinos que atravessam o vasto espaço marítimo nacional e permitem as comunicações no continente europeu. Ao longo dos anos, mas com maior notoriedade após a invasão russa da Ucrânia, Moscovo tem levado a cabo ações de reconhecimento em águas nacionais com navios de pesquisa científica, o que pode significar a disponibilidade russa de desencadear ataques híbridos na região, à semelhança do que tem acontecido no Mar Báltico. 

Este aspeto torna o aumento dos gastos em defesa ainda mais importante para Portugal, que precisa de garantir a segurança do seu território marítimo, mas também das infraestruturas de toda a aliança que por ele passam. "Portugal está responsável por vários cabos submarinos que estão a ser vigiados pela Rússia. Não podemos permanecer a viver num mundo cor de rosa onde as coisas já não são aquilo que eram", afirma Diana Soller.

Portugal parte para este processo de rearmamento um pouco mais atrás de outros países e tem claras restrições orçamentais, mas, para o major-general Isidro de Morais Pereira, o tamanho de Portugal não é desculpa. Comparando com Israel, que tem um tamanho e uma população semelhante, defendeu que Portugal precisa de "um aparelho de defesa credível", com capacidade marítima para vigiar a sua vasta plataforma oceânica e forças terrestres operacionais. "Temos dois arquipélagos no Atlântico e responsabilidades claras."

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