China defende a sua “incompreendida” forma de “democracia”

9 dez 2021, 06:04
Cimeira Biden Xi Jinping

A Cimeira da Democracia, promovida por Joe Biden, obrigou Pequim a uma forte defesa do seu “sistema democrático” de partido único, liderado pelo autocrata mais poderoso do mundo

Excluída da lista de convites para a Cimeira da Democracia que os Estados Unidos promovem hoje e amanhã, a China respondeu com aquilo a que a equipa de Donald Trump chamaria “factos alternativos”: a “democracia que funciona” não é a que nasceu no Ocidente - com competição entre partidos; eleições livres e regulares; liberdade e associação, de expressão e de imprensa -, mas o regime de partido único que governa a China há sete décadas e é liderada pelo autocrata mais poderoso do mundo. 

Essa é a “democracia que funciona”, de acordo com o Partido Comunista Chinês (PCC). Pode ser uma “forma incompreendida de democracia”, como dizia há tempos o novo embaixador da China em Washington, mas é uma forma de democracia, segundo garante o Conselho de Estado da China.

No fim de semana passado, tentando desvalorizar o impacto global da Cimeira da Democracia, o Conselho de Estado da China publicou um livro branco sobre o seu sistema político, com o título “China: Democracia que funciona”. Trata-se da explicação da democracia à moda da China, o chamado “sistema democrático por inteiro”, um conceito inventado pelo homem-forte do país, o presidente Xi Jinping. Segundo o Global Times, jornal em língua inglesa ligado ao PCC, este sistema “com plena participação do povo da China funciona”, e por essa razão o país “não pode copiar o chamado modelo ocidental de democracia” e “está confiante e tem força para expor sua democracia”.

As diferenças em relação àquilo que o resto do mundo reconhece como democracia foi explicada em vários pontos:

  • História: a democracia é um fenómeno concreto em constante evolução. Enraizada na história, na cultura e na tradição, assume diversas formas e desenvolve-se ao longo dos percursos de diferentes povos a partir de suas experiências e inovações ... Na China, o estatuto do povo como senhor do país é o alicerce de todos os sistemas, e é a base do funcionamento de todos os sistemas de governança estatal”.

  • Funcionamento: a “democracia popular” chinesa é elogiada por integrar dois modelos - a democracia eleitoral e a democracia consultiva “para garantir a plena participação do povo não apenas no voto, mas também na governança nacional”. Em alternativa, o modelo de “democracia americana” é retratado como aquele em que “os políticos podem fazer promessas aleatórias por causa das eleições, mas raramente cumprem suas promessas após serem eleitos. Superficialmente, aceitam a supervisão dos eleitores, mas na verdade, quando são eleitos, os eleitores não têm outra opção a não ser esperar pela próxima eleição”, ficando “dormentes após a votação”, nas palavras de Tian Peyan, director-adjunto do Gabinete de Pesquisa Política do Comité Central do PCC. 

  • Resultados: o crescimento económico da China é apresentado como prova de que a sua “democracia” garante mais prosperidade; e o combate contra a pandemia é visto como demonstração de maior eficácia na proteção da comunidade. As autoridades chinesas realçam os bons resultados no combate à covid, mas esquecem que tal tem sido feito com o recurso sistemático a testes compulsivos, rastreio de contactos obrigatório e rigorosos confinamentos de cidades e regiões inteiras, ao menor sinal de poucas dezenas de infeções.

Uma visão muito diferente daquilo que verificam todas as organizações não-governamentais de defesa da democracia e dos direitos humanos. As “eleições” apenas admitem o voto nos candidatos do PCC, o único partido admitido pelo regime, e no país não existe efetiva separação de poderes, dependendo todo o sistema da cúpula do partido. Estão ausentes os mecanismos ocidentais de freios e contrapesos, que limitam o poder dos legisladores e executivos eleitos - tribunais independentes, diferentes poderes políticos com legitimidade própria, comunicação social independente e sociedade civil livre, com efetivos direitos de expressão e associação, mesmo contra a vontade do poder instituído.

A forma como os movimentos pró-democracia em Hong Kong foram esmagados é sintomática da intolerância de Pequim em relação às liberdades individuais e a tudo o que fuja ao guião do PCC. E convém lembrar que os protestos em Hong Kong tiveram como rastilho uma lei de segurança que, na prática, acabava com os direitos de livre expressão, associação e manifestação.

O melindre de Taiwan

Quando arranca a Cimeira da Democracia, com 110 países participantes, o que incomoda a China não é tanto ter ficado de fora da lista de convites, mas a existência de um 111º convidado: Taiwan, a ilha que formalmente faz parte da China, mas tem governo autónomo desde 1949. E que é, de facto, uma democracia liberal, com direitos. liberdades e garantias para todos, e eleições livres, regulares e justas de acordo com todos os parâmetros de avaliação.

A iniciativa da administração Biden é focada na resposta ao aparecimento de cada vez mais autocratas no mundo, e acontece num momento particularmente delicado da “nova guerra fria” entre os EUA e a China. A tensão entre as duas potências é altíssima, em todas as frentes: económica e comercial, de segurança e defesa, política e diplomática. Esta semana, já na contagem decrescente para a Cimeira da Democracia, a Casa Branca anunciou um boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno, que se realizam daqui a dois meses em Pequim, em protesto contra as constantes violações dos direitos humanos perpetradas pelo regime chinês, em particular o “genocídio” da minoria muçulmana uigur, na província de Xinjiang.

E há muitas mais acusações em relação à China, desde a forma como esmagou a democracia que existia em Hong Kong e tem perseguido os ativistas pelos direitos humanos naquele território, até ao recente caso da tenista Peng Shuai, que foi silenciada e está em paradeiro desconhecido desde que denunciou, nas redes sociais, ter sido vítima de assédio sexual por parte do anterior vice-primeiro-ministro chinês.

Ao mesmo tempo, a velha rivalidade entre os EUA e a Rússia ganhou novo fôlego, face às novas ameaças que chegam de Moscovo, seja pela discreta interferência na vida social e política americana através de redes sociais e de ataques informáticos, seja com a muito visível presença militar na fronteira com a Ucrânia, no que parece ser o prenúncio de uma intervenção militar à maneira dos tempos da União Soviética.
 

Reapresentar os EUA como “farol da democracia”

A Cimeira da Democracia e o convite a Taiwan insere-se neste contexto. Como escrevia ontem o Financial Times, se quisermos reduzir ao essencial a política externa da Administração Biden, ela resume-se a duas linhas de base: a competição com a China e o regresso aos “valores americanos” depois da suspensão da normalidade nos anos de Trump. Ora, ambas as linhas estão na base da Cimeira da Democracia. “A alegação de que o mundo está em uma luta entre a democracia e o autoritarismo está no cerne da política externa de Biden - e [Biden] espera que [essa ideia] relance as alianças da América.”

O apoio à democracia ucraniana, mas sobretudo às autoridades eleitas de Taiwan, dando-lhes palco, visibilidade e legitimidade na Cimeira da Democracia, é uma forma de responder aos avanços autoritários de Moscovo e Pequim. Para a China, a afronta é particularmente grave, pois Taiwan é formalmente território chinês. E a China não se tem coibido de reforçar a presença militar no Estreito de Taiwan e em toda a região do Mar do Sul da China. 

Uma eventual intervenção militar em Taiwan, suprimindo as décadas de autonomia do governo de Taipé, é vista como uma hipótese cada vez mais provável - e um passo desses seria o início de uma escalada de desfecho imprevisível, conforme tem avisado o governo norte-americano. Esta terça-feira, Jack Sullivan, o conselheiro de segurança nacional de Biden, prometeu todos os esforços dos EUA para que a reanexação de Taiwan pela força “nunca aconteça”. “Se Pequim decidisse tentar alterar o status quo unilateralmente pela força, seria um erro terrível”, avisou. E na semana passada o ex-primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, alertou para um estado “nebuloso” entre guerra e paz que se vive na região. A China, disse Abe, deve estar ciente de que qualquer ação militar contra Taiwan atrairia o Japão e seu aliado, os Estados Unidos, para “uma situação terrível”.

É neste contexto que o selo de “democracia” é outra vez usado pelos EUA para separar as águas, com a Cimeira da Democracia. Porém, ao mesmo tempo que se dá ao trabalho de lançar um livro branco em resposta à iniciativa de Biden, Pequim tenta desvalorizar a iniciativa do presidente norte-americano. No Global Times, têm-se sucedido os textos de opinião, todas elogiosas do regime chinês e todas críticas em relação a Washington. 

“A Cimeira da Democracia é um instrumento para manter a hegemonia americana”, escreve um colunista. “A cimeira da Democracia é má para a democracia e para o mundo”, defende outro, que se baseia na cada vez maior descrença das opiniões públicas ocidentais em relação às suas instituições políticas para defender que a democracia ocidental é chão que já deu uvas. Lendo esses textos, um facto é indesmentível: o mandato de Trump, a invasão do Capitólio e a cada vez maior polarização da sociedade americana não ajudam a causa de Joe Biden.

Ásia

Mais Ásia

Patrocinados