Já há data para a “coroação” de Xi Jinping com um terceiro mandato

31 ago 2022, 05:14
Discurso de Xi Jinping num ecrã gigante em Pequim

O congresso do Partido Comunista Chinês começa a 16 de outubro. Será o momento para Xi consolidar (ainda mais) o seu poder, com um imprevisto terceiro mandato. Dúvida: Xi terá o título de presidente, ou timoneiro, como Mao?

 

O Partido Comunista Chinês (PCC) anunciou a data de arranque do seu congresso quinquenal: 16 de outubro. Será, na prática, a data do início das cerimónias de “coroação” de Xi Jinping, como lhe chamam alguns analistas internacionais - o líder chinês será reconduzido para um terceiro mandato que nenhum dos seus dois antecessores teve, nem era suposto acontecer. Será o momento para Xi consolidar o seu poder sobre o partido que controla a China cada vez mais com punho de ferro.

Há dez anos, quando Xi foi escolhido para secretário-geral do PCC, ascendendo à posição mais alta na hierarquia do partido e do Estado, o seu consulado seria, previsivelmente, de cinco ou dez anos, dependendo de cumprir apenas esse mandato ou ser reconduzido para mais um. As normas então em vigor limitavam a uma década o exercício das funções máximas no partido e no governo. Mas em 2018, culminando um processo de acumulação de poder que parece ter como objetivo colocar Xi a par com Mao Tse Tung, o fundador da República Popular da China, o líder chinês conseguiu eliminar essa regra de limitação a dois mandatos. Desde então, ficou claro que Xi reservou para si próprio um lugar no panteão dos grandes da China, com estatuto comparável apenas com o de Mao.

Nessa comparação reside, aliás, uma das poucas dúvidas do próximo congresso, que deverá prolongar-se ao longo de uma semana: irá o PCC conceder a Xi o título de “Presidente”, como teve Mao? Ou poderá dar-lhe, em alternativa, o título mais poético - mas politicamente carregado e relevante -, de “timoneiro”, que também era usado por Mao?

O pensamento político de Xi, esse, já está equiparado com o dos seus dois mais importantes antecessores: no ano passado, o PCC aprovou uma “resolução histórica” que olha para um século de existência do partido e coloca Xi como um dos maiores líderes da “gloriosa jornada” do PCC e da República Popular da China, a par de Mao e Deng Xiaoping. De resto, este foi apenas o terceiro documento desta natureza a ser aprovado no século de existência do partido - o primeiro havia sido redigido por Mao, em 1945, e o segundo por Deng, em 1981. Agora, Xi junta-se-lhes, na tríade dos grandes pensadores e líderes que construíram a China moderna.

Culto de personalidade

A “resolução histórica” é um documento que junta teoria política, objetivos programáticos e ação concreta, constituindo-se como uma espécie de bússola do PCC. "Tal como as duas resoluções anteriores, [esta resolução] desempenhará um papel importante para ajudar a unir a teoria, a vontade e a ação do partido - para alcançar progressos futuros e para realizar o segundo objetivo centenário [tornar a China um país rico e poderoso] e o grande sonho chinês de rejuvenescimento", disse, então, um alto funcionário do partido, apresentando o documento. 

Com esse passo, Xi demonstrou à China e ao mundo seu controlo sobre o partido e o aparelho do Estado, incomparável com qualquer líder desde Deng. Mas também a ambição de prosseguir esse trajeto e deixar uma marca pessoal na história da China. O pensamento político de Xi passou a ser ensinado nas escolas às crianças e jovens chineses, e a comunicação social estatal (a única que existe no país) tem passado inúmeras reportagens sobre a figura e a vida de Xi Jinping, num culto de personalidade como não se via há décadas no país.

Para além deste culto de personalidade, Xi tornou-se, efetivamente, o centro da política e do poder na China, invertendo décadas de progressiva abertura e descentralização iniciadas durante o mandato de Deng Xiaoping. O controlo sobre a máquina partidária apertou, com o regresso das purgas, agora disfarçadas de investigações judiciais sobre corrupção e enriquecimento, a nova forma de punição de “desvios burgueses”. O espaço para a divergência desapareceu, as fações no partido na prática deixaram de existir, e a repressão do livre pensamento e opinião é asfixiante, desde logo na forma como são policiadas as redes sociais e toda a atividade na internet.

Muitos grandes oligarcas que desfrutavam de alguma margem de manobra na peculiar economia mista chinesa têm sido afastados ou fortemente pressionados, e a relativa autonomia de algumas populações e regiões desapareceu - como se tornou público e notório nos casos de repressão política no Tibete, e na perseguição aos muçulmanos uigures em Xinjiang. O modelo de “um país, dois sistemas” na prática foi enterrado com a repressão aos direitos sociais e políticos de Hong Kong, onde a democracia liberal herdada dos britânicos deixou de existir. O mesmo está a acontecer em Macau.

Taiwan, uma pedra no sapato

Sob a liderança de Xi a China reforçou o seu estatuto de grande potência económica global (já havia ultrapassado o Japão como segunda maior economia em 2010, antes de Xi alcançar o poder), mas afirmou-se também como potência militar, com uma atitude cada vez mais assertiva em relação ao seu papel na Ásia-Pacífico mas também na geopolítica mundial. 

A modernização e enorme investimento nas suas Forças Armadas, e as pretensões cada vez mais amplas na definição de uma zona de influência e na reivindicação de águas territoriais sobre as quais a China reclama soberania, sem qualquer fundamento do ponto de vista do Direito Internacional, têm preocupado os vizinhos da China no Indo-Pacífico e justificado uma corrida às armas nesta região do Globo.

E há a questão de Taiwan, hoje mais central do que nunca. Pequim sempre reivindicou soberania sobre a ilha, que tem governo próprio, e independente da China, há mais tempo do que a existência da própria República Popular da China. Apesar de o país, como o conhecemos hoje, nunca ter exercido soberania sobre Taiwan, considera que se trata de território chinês e Xi já prometeu a “reunificação”, seja pacífica ou pela força. O próximo mandato será o momento para forçar essa reconquista das ilhas de Taiwan?

O diretor da CIA dizia há semanas que quanto mais se avançar pelos anos 20, maior o risco de se concretizar uma manobra militar da China contra Taiwan (pode ser uma invasão ou um bloqueio naval e aéreo). O próximo mandato de Xi termina no final de 2027...

Más notícias na frente interna

Aos 69 anos, Xi promete concretizar a sua grande visão para o "rejuvenescimento da nação chinesa". Para além desse desígnio assumido pessoalmente, o partido estabeleceu anteriormente o objetivo de fazer da China uma nação "plenamente desenvolvida, rica e poderosa" até 2049, ano do centenário da existência da RPC.

Com um poder incontestado, num congresso que em larga medida acontecerá à porta fechada, Xi poderá mexer a seu bel-prazer nas peças em todos os lugares de topo da hierarquia do PCC e do governo chinês - nomeadamente na escolha do futuro primeiro-ministro, que terá pela frente o desafio de reanimar a economia chinesa.

Apesar de se preparar para uma longa cerimónia de coroação, Xi chega ao congresso de outubro em pior situação do que alguma vez terá imaginado. A economia chinesa está a estagnar, e ficará muito longe do crescimento de 5,5% previsto para este ano - mesmo esse valor seria baixo para os padrões e necessidades políticas, económicas e sociais da China, mas é hoje claro que o crescimento do PIB chinês ficará muito longe dessa fasquia. Resta saber se, após um primeiro crescimento de estagnação, o país, terá sequer, algum crescimento este ano.

Esta quarta-feira foi divulgado um dado que adensa o pessimismo sobre o desempenho da economia chinesa: em agosto, o índice de encomendas da indústria transformadora manteve-se, pelo segundo mês consecutivo, em terreno negativo, o que espelha a desconfiança do setor industrial.

Uma das causas do mau desempenho económico é a continuada política de “Covid zero”, que tem obrigado milhões de chineses a ficar em confinamento mesmo em casos de poucas dezenas ou centenas de casos positivos de covid-19. Xi Jinping assumiu pessoalmente a política de “Covid zero” nos primeiros tempos da pandemia, e nunca a reverteu, apesar de alguns acertos no sentido de a aligeirar. A consequência é a permanente instabilidade no país, com lockdowns que suspendem a atividade económica e industrial, tiram rendimentos às famílias e afundam a confiança económica. 

Uma das consequências destas dificuldades é a recusa de milhões de chineses em pagar as hipotecas de casas que ou nunca foram construídas ou viram o seu valor diminuir drasticamente, o que está a provocar receios de que o mercado imobiliário chinês possa colapsar.

Para além destas dificuldades, a seca que tem atingido grandes fatias do território está a provocar ruturas no abastecimento de energia e a perturbar ainda mais o tecido industrial e a levar ao limite a paciência da população. Nalgumas cidades e províncias os protestos populares têm surpreendido as autoridades.

Perante tantas contrariedades internas, Xi acabou por aproveitar a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, há um mês, para colocar esta questão no centro da agenda, acicatando o fervor nacionalista dos chineses. Para além de ter aproveitado para fazer uma vistosa exibição de poderio militar em torno da ilha, desafiando o velho adversário norte-americano, Xi aproveitou para mudar de assunto e desviar as atenções em relação ao que corre mal na covid, na economia e no imobiliário. A mobilização contra o inimigo externo costuma ser uma receita vencedora.

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