18 razões para a China estar preocupada com a guerra de Putin na Ucrânia

18 set 2022, 22:00
Xi Jinping e Vladimir Putin

Putin, ele mesmo, disse ao mundo que Xi Jinping tem levantado “questões e preocupações” sobre a invasão da Ucrânia. Não faltam razões para isso ao líder chinês

A principal novidade do encontro entre Vladimir Putin e Xi Jinping, no final da semana passada, foi o reconhecimento por parte do líder russo de que a China tem “questões e preocupações” em relação à invasão da Ucrânia. Um reconhecimento que o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA considerou “espantoso”, mas “não surpreendente”.

Falando para Xi Jinping sobre a “operação militar especial” na Ucrânia, no início da reunião, Putin declarou: “Compreendemos as vossas questões e preocupações a este respeito. Durante esta reunião, é claro que explicaremos a nossa posição sobre este assunto, embora já tenhamos falado sobre isto antes." 

Com esta frase, Putin 1) admitiu que a China tem “questões e preocupações” sobre a guerra e 2) reconheceu que teria de dar explicações a Xi. Ambos os factos merecem relevo. 

O primeiro, porque é a confirmação de que, apesar de a China continuar a ser o principal “aliado estratégico” da Rússia, os dois regimes não estão alinhados na questão ucraniana, e Moscovo dificilmente poderá contar com o total apoio da China em relação ao conflito. De resto, do encontro pessoal entre os dois líderes não saiu mais do que a promessa de maior cooperação em várias áreas, mas nada que indique a disposição de Xi para apoiar o esforço de guerra russo, o que colocaria Pequim na mira de sanções dos EUA e da União Europeia, os principais parceiros comerciais da China. Com a sua economia em forte abrandamento, Xi não estará disponível para trocar o seu crescimento económico pelo apoio a uma guerra russa que lhe levanta “questões e preocupações”.

O segundo porque a forma como Putin afirmou em público a sua disponibilidade para dar explicações a Xi mostra que o homem que se propõe restaurar a Grande Rússia, se apresenta perante Xi Jinping em posição de inferioridade. Talvez em nenhum momento tenha sido tão visível a enorme assimetria na força relativa entre Putin e Xi como no encontro do Uzbequistão. Mais: mesmo admitindo que já deu essas explicações no passado, Putin disponibiliza-se a voltar a fazê-lo. Não é só uma atitude justificativa e defensiva, é também o reconhecimento de que as explicações dadas até agora não foram satisfatórias.

Xi não apoiou, e parece ter criticado

Apesar da retórica tantas vezes repetida, pela primeira vez ficou claro que a cooperação bilateral e a amizade “sem limites” prometida em fevereiro pelos dois líderes no seu anterior encontro pessoal, afinal, tem limites. Putin não conseguiu agradecer a Xi mais do que a “posição equilibrada” face ao conflito na Ucrânia. 

Em contrapartida, Xi não fez uma única referência à guerra, apesar desta ser, de longe, a questão central para o seu interlocutor. Nem validou a “operação militar especial”, nem se disponibilizou para apoiar mais o seu “parceiro” no conflito - nada. Haverá mais comércio bilateral, mais venda de energia russa barata para a China, mais cooperação em diversas áreas, mas parece claro que a China não se quer meter nesta guerra de desfecho cada vez mais incerto para o Kremlin.

Pelo contrário, o comunicado da parte chinesa após o encontro inclui uma frase que, lida nas entrelinhas, parece uma crítica velada à agressão russa: a China está "disposta a trabalhar com a Rússia para demonstrar a responsabilidade de um grande país, desempenhar um papel de liderança e injetar estabilidade num mundo turbulento". Segundo analistas de política internacional e especialistas nas nuances da linguagem chinesa, é a forma de Xi distanciar-se da guerra e tentar procurar uma saída que ponha termo ao conflito.

A CIA já tinha avisado: Xi está “perturbado” com isto

Voltando ao reconhecimento de Putin sobre as “questões e preocupações”da China sobre a guerra, essa frase também confirma as informações veiculadas há meses por serviços secretos ocidentais sobre a apreensão de Xi Jinping face a esta guerra. Por isso Ned Price, o porta-voz do Departamento de Estado, disse que essa frase, embora seja “espantosa”, “não é surpreendente”.

Há muitos meses que os serviços secretos ocidentais - em particular a CIA - têm assegurado que o líder máximo chinês está desconfortável e apreensivo com a aventura de Putin na Ucrânia. Xi até pode ter achado que era uma boa ideia, em fevereiro, quando posou para as câmaras ao lado de Putin em Pequim e prometeu uma amizade “sem limites” entre os dois países, ao mesmo tempo que as tropas russas se concentravam na fronteira ucraniana e Washington tentava que o líder chinês ainda travasse a invasão. Nessa altura, a previsão de uma vitória rápida do Kremlin animava Putin e preocupava o Ocidente, e Xi não mexeu uma palha para travar os planos do seu “amigo” Vladimir. Mas as coisas mudaram assim que a guerra começou, as forças russas começaram a cometer erros, as tropas ucranianas protagonizaram uma inesperada resistência e os países ocidentais mostraram uma improvável capacidade de consenso.

Logo em março, com menos de um mês de guerra, William Burns, diretor da CIA, foi ao Congresso dos Estados Unidos assegurar que o líder chinês estava “perturbado” com o que se passava na Ucrânia. Para além do fraco desempenho russo, Xi estaria perplexo com a resistência oferecida pelos ucranianos. Outro elemento perturbador para Xi seria o facto de ter sido surpreendido por esta evolução dos acontecimentos: os serviços secretos chineses “parece que não terão dito [a Xi] o que ia acontecer”e, acrescentou Burns: “não creio que [os chineses] tenham antecipado que os militares russos se iriam revelar largamente ineficazes até agora.” Por outro lado, a solidez da resposta ocidental, alinhando sanções contra a Rússia, também não seria esperada.

Mais tarde, em julho, Burns considerou que a experiência de Vladimir Putin com a invasão da Ucrânia poderia mesmo obrigar Pequim a rever os seus planos e calendários para uma eventual invasão de Taiwan. Estes alertas, note-se, foram feitos ainda antes da escalada da tensão em relação à ilha, por causa da visita de Nancy Pelosi. 

Olhando para as prioridades chinesas, a situação no terreno e a evolução geopolítica dos últimos seis meses, vejamos, então, quais as principais “questões e preocupações” de Xi Jinping em relação à “operação militar especial” da Rússia na Ucrânia.

  1. A guerra não reforçou a posição russa enquanto potência internacional. Pelo contrário, está a deixar à mostra todas as fragilidades de um país que já não é uma super-potência económica ou industrial, e não está à altura da fama de ter o “segundo exército do mundo”.

  2. Não está a contribuir para uma nova ordem mundial multipolar, o grande objetivo geopolítico assumido por Xi e Putin no longo comunicado conjunto emitido após o seu encontro de fevereiro. A ideia de contrariar a hegemonia unipolar norte-americana com um novo panorama marcado pela emergência de diversos polos de poder - a União Europeia, a China, a Rússia, etc - não tem sido favorecida pela invasão da Ucrânia. Pelo contrário:

  3. Os EUA viram-se outra vez na posição de autoproclamados “líderes do mundo livre”, tendo assumido a missão de apoiar a Ucrânia na resistência à invasão, e liderar a trincheira das democracias liberais numa luta contra as autocracias.

  4. Depois dos anos Trump, em que as desconfianças entre norte-americanos e europeus minaram o elo transatlântico, a guerra provocou um cerrar de fileiras entre os EUA e as democracias liberais suas aliadas. Não apenas na Europa (incluindo UE e Reino Unido), mas também na Ásia.

  5. A NATO ressuscitou. A aliança militar que Emmanuel Macron disse há uns anos que estava em “morte cerebral”, e cujo fim chegou a ser admitido por Donald Trump, teve um choque vitamínico e voltou a ser um ator relevante na defesa coletiva do Norte da América e da Europa. 

  6. A NATO não apenas ressuscitou - também cresceu. O reconhecimento da capacidade dissuasora da NATO face à ameaça russa levou ao que há poucos meses seria impensável: o pedido de adesão da Suécia e da Finlândia. Se a guerra de Putin tinha como uma das suas justificações impedir a adesão da Ucrânia à NATO, travando o avanço da Aliança Atlântica nas fronteiras da Rússia, a adesão da Suécia e da Finlândia acaba por exponenciar esse avanço.

  7. A NATO voltou a ser olhada como um modelo replicável no Pacífico, com os norte-americanos e os seus principais parceiros a pensar na melhor forma de alinharem forças e estratégias contra as ameaças colocadas pela China e pela Coreia do Norte. A Quad (quadrilateral de segurança que junta EUA, Japão, Índia e Austrália) recebeu um novo impulso, e a Coreia do Sul poderá querer integrar este fórum. E o AUKUS (aliança de defesa que junta EUA, Reino Unido e Austrália) também está a ganhar novo fôlego conforme a Austrália sente a sombra chinesa a aproximar-se do Pacífico Sul. Não é por acaso que na comunicação social chinesa abundam textos sobre o interesse dos EUA em lançar uma “NATO do Pacífico”.

  8. Aumentou a desconfiança no Pacífico em relação ao eixo Moscovo-Pequim. Na edição deste ano do seu Livro Branco de Segurança e Defesa, o governo do Japão aponta para os riscos da crescente “cooperação estratégica” entre as forças armadas da Rússia e da China. Têm crescido as demonstrações de força conjuntas dos dois países, e Tóquio considera que essa “coordenação estratégica” é preocupante e tem de ser seguida atentamente, tendo em conta a invasão da Ucrânia e a crescente assertividade militar da China em relação aos países vizinhos.

  9. O mundo redescobriu a questão de Taiwan. A ilha pequena, e distante, quase perdida ao lado do gigante chinês, ocupou, de repente, as manchetes dos jornais e a abertura dos noticiários televisivos por todo o mundo. Primeiro, os observadores e analistas começaram a estabelecer paralelismos entre a invasão russa da Ucrânia e uma possível invasão chinesa de Taiwan. Depois, com a visita de Nancy Pelosi a Taipé, a ilha tornou-se o centro das atenções globais, conforme Pequim montou um cerco ao território, com lançamento de mísseis e destacamento de navios e aviões de guerra para o Estreito de Taiwan. As autoridades de Taipé conseguiram o que mais precisam, no braço de ferro muito desigual que fazem há anos com a China: a atenção do mundo.

  10. Biden garantiu apoio militar a Taiwan. “É esse o nosso compromisso”, respondeu o presidente dos EUA, quando questionado, em Tóquio, sobre se estará disponível para ajudar militarmente Taiwan em caso de uma invasão chinesa. Vale o que vale, mas Taipé tem aproveitado a guerra no Leste da Europa para apelar às democracias que ajudem a ilha tal como estão a ajudar a Ucrânia. Com um argumento de peso: nenhum território é mais relevante na produção global de semicondutores do que Taiwan. Segundo dizia o diretor da CIA em julho, as dificuldades das tropas de Moscovo, a feroz resistência dos ucranianos, e o apoio firme dos aliados ocidentais à Ucrânia estariam a mostrar aos chineses que “não se conseguem vitórias rápidas e decisivas” se a força militar não for muito superior - o que pode obrigar Xi Jinping a ter de esperar até garantir uma “capacidade operacional esmagadora” face a Taiwan e aos seus possíveis aliados.

  11. Desde o início da invasão da Ucrânia há uma nova corrida ao armamento no Indo-Pacífico. Preocupada com a renovada ameaça da Coreia do Norte (protegida na ONU pela Rússia e pela China), a Coreia do Sul quer renovar os seus sistemas de mísseis defensivos, com novas baterias de mísseis THAAD norte-americanos, e está a desenhar um modelo de dissuasão contra o vizinho do norte que inclui a possibilidade de ataques preventivos a bases militares e centros de comando norte-coreanos. Em simultâneo, Seul aumentou os exercícios militares conjuntos com os EUA, e quer reforçar as garantias de que o “guarda-chuva nuclear” norte-americano será eficaz na proteção da Coreia do Sul. No Japão, o tempo também é de prioridade às armas. O governo anunciou um aumento gradual do orçamento de Defesa ao longo dos próximos anos, e vai instalar mil mísseis de longo alcance, com capacidade de atingir a Coreia do Norte e a China. E o país debate a possibilidade de um novo quadro legal e constitucional que permita atingir bases inimigas, até em ataques preventivos. Também a Austrália e a Índia estão a reforçar os esforços de modernização e aumento de capacidade das suas forças armadas. O Indo-Pacífico começa a parecer um barril de pólvora.

  12. A guerra está a perturbar a economia global, ainda não refeita do impacto da pandemia de covid-19. Às perturbações nas cadeias de abastecimento, junta-se a inflação, que já havia começado a crescer antes da invasão da Ucrânia, mas disparou depois, devido ao aumento dos preços internacionais de matérias-primas essenciais como petróleo e gás, cereais e fertilizantes. A China nem se pode queixar muito, pois, com as sanções europeias à Rússia, viu-se em condições de comprar energia e cereais russos a preços de saldo. Mas, sendo um país cuja economia depende muito do comércio internacional, e estando os seus dois grandes parceiros comerciais (EUA e UE) sob ameaça de recessão, as consequências acabam por atingir também a economia chinesa. Agravando ainda mais uma travagem que, em boa medida, é autoinflingida, devido à insistência nos confinamentos por causa da política de “covid zero”. Na melhor das hipóteses, a China crescerá este ano 3,5% (cresceu pouco mais que zero no primeiro semestre). O pior resultado em 40 anos.

  13. A China está desde o início da guerra sob ameaça dos seus dois principais parceiros comerciais, que prometem retaliar com sanções económicas caso Pequim ajude ao esforço de guerra russo. A verdade é que, até agora, Xi não ousou ultrapassar essa linha vermelha.

  14. Com o agravar da fratura entre democracias e autocracias, e com a China no lado de lá, a guerra comercial entre os EUA e a China não só não tem fim à vista como tem um campo de batalha particularmente impactante: o mercado de semicondutores. A retórica pró-russa da China, e a percepção ocidental de que Pequim não é de confiança, tem justificado a proibição de venda à China de chips de design norte-americano, incluindo alguns dos mais sofisticados e potentes do mundo.

  15. A Rússia ainda não cumpriu nenhum dos objetivos da “operação militar especial”: não desmilitarizou a Ucrânia (pelo contrário), não isolou a Ucrânia do Ocidente (o país entrou em negociações para aderir à UE), não derrubou o governo de Zelensky (que se tornou uma estrela global).

  16. A Rússia não só não conseguiu ocupar completamente os dois oblasts que constituem o Donbass, como na última semana começou a perder terreno a um ritmo muito maior do que aquele em que o conquistou.

  17. A contraofensiva ucraniana está a alimentar cada vez mais críticas a Putin na Rússia. O líder russo pode ver a sua posição ameaçada caso não seja capaz de apresentar uma vitória na sua “operação militar especial”.

  18. Putin é um aliado de confiança para Xi Jinping. Nos dez anos em que lideraram em simultâneo os seus dois países, os dois líderes autocráticos encontraram-se 39 vezes (contando já com a reunião da semana passada). A fragilidade de Putin é uma má notícia para Xi. Tudo o que o líder chinês não quer é perder um aliado de confiança em Moscovo e, em vez de Putin, ter alguém que não conheça, em quem não confie ou - pior que isso - uma situação de instabilidade que agite a Rússia. 

Uma Rússia enfraquecida e dependente da China até poderá ser uma situação interessante para Xi Jinping. Seria, no mínimo, uma ironia histórica, tendo em conta que ao longo de décadas a poderosa União Soviética tratou a China como um vizinho menor e um país satélite. Ninguém enfatizou tanto essa atitude de superioridade como Estaline, para enorme irritação de Mao Tsé-Tung. 

Os papéis inverteram-se e é a Rússia que poderá tornar-se o satélite da China. E isso poderá concretizar-se durante o próximo mandato de Xi, o homem cujo poder mais se aproxima daquele que Mao teve em tempos. Uma Rússia enfraquecida e isolada até pode garantir a Pequim acesso privilegiado aos enormes recursos energéticos, e não só, do gigantesco país do lado. Mas neste momento os homens de Pequim parecem mais preocupados com os riscos do que com os eventuais benefícios da aventura de Putin na Ucrânia.

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