ANÁLISE || Fábrica da BYD na Hungria não será suficiente para contornar todas tarifas da UE às marcas chinesas de veículos automóveis. "Os europeus vão sempre sofrer", diz Abel Mateus. De um lado estão preços baixos, alegadamente subsidiados; do outro está a indústria europeia e os seus empregos
O anúncio da BYD de construir uma fábrica na Hungria foi vista como uma forma de contornar as tarifas europeias à importação de veículos elétricos chineses. Mas pode não ser suficiente para garantir preços de venda ao público tão baixos como os fabricantes deste país desejam: os próprios componentes poderão ter de suportar essas tarifas, encarecendo os custos finais.
“Caso as empresas chinesas decidiam fabricar na Europa”, por exemplo na Hungria, “os carros deixam de ser considerados importados e de estar abrangidos pela tarifa da UE”, explica à CNN Portugal Abel Mateus, antigo economista sénior do Banco Mundial. Mas o mesmo logo alerta: “Haverá sempre a necessidade de importar material da China, como é o caso das baterias de lítio”, e estes componentes continuam sujeitos às tarifas.
“A Hungria tem de respeitar a Política de Comércio Externo imposta pela União Europeia”, frisa o economista, e isto significa que, por mais que esteja interessada em captar investimento estrangeiro e disponível para acordos com a China, “a Hungria tem de estabelecer a tarifa de 38% para carros elétricos importados e materiais para a sua fabricação vindos desse país”.
A questão é ainda mais complexa: os próprios fabricantes europeus atuais também importam componentes da China, pelo que também passarão a ter custos mais elevados. “Todo o material proveniente da China tem de ser abrangido pelas tarifas da UE, algo que irá gerar uma guerra sem fim”, alerta Abel Mateus. E como “as marcas europeias terão de ser abrangidas”, os europeus “vão sempre sofrer”. O economista – que foi presidente da Autoridade da Concorrência em Portugal – dá o exemplo dos anos 80 quando os Estados Unidos deixaram fábricas japonesas entrar no país: “Os americanos evoluíram e melhoraram em vários fatores, mas houve uma retração nas empresas do país."
Guerra comercial
Este é mais um episódio na guerra comercial entra a União Europeia e a China no mercado automóvel, em que o crescimento das vendas dos veículos elétricos chineses está a ter consequências nos resultados dos grandes construtores europeus – começando pela Volkswagen, que ameaça fechar fábricas na Alemanha.
Segundo um estudo da consultora AlixPartners, os fabricantes de automóveis chineses deverão representar 33% do mercado automóvel mundial até 2030 (a quota atual está nos 21%), o que tem provocado decisões protecionistas no Ocidente: tanto a União Europeia como os Estados Unidos anunciaram tarifas à importação de veículos chineses.
Os Estados Unidos aumentaram a 13 de setembro as tarifas para 100%, acima das anunciadas pela Comissão Europeia em julho de até 38%, aplicando direitos a três produtores chineses específicos, a BYD (17,4%), a Gelly (19,9%) e a SAIC (37,6%).
A UE justifica esta decisão como compensação a medidas anticoncorrenciais da China: uma investigação da Comissão Europeia “concluiu que a cadeia de valor dos VEB [veículos de bateria elétrica] na China beneficia de subvenções desleais, o que está a causar uma ameaça de prejuízo económico aos produtores de VEB da UE”, explicou a instituição.
É em face destes subsídios estatais da China que os veículos chineses entram na Europa a preços tão mais baixos que os dos concorrentes europeus, alega a Comissão Europeia. Mesmo se os preços finais praticados na Europa, por exemplo pela BYD, chegam a ser mais do dobro dos cobrados na China, de acordo com uma investigação de abril da Reuters.
“Se o mercado funcionar de forma livre, a China é capaz de conseguir eliminar todos os restantes países”, afirma à CNN Portugal João Rodrigues dos Santos, economista professor na Universidade Europeia. Ao aplicar tarifas, “a União Europeia pretende sobretudo proteger o emprego interno”, diz. “Caso esta lei não seja aplicada, os consumidores vão privilegiar automóveis elétricos chineses, já que são mais baratos.”
Os Estados Unidos e a Europa são os maiores mercados de exportação chinesa. Segundo João Rodrigues dos Santos, “se este tipo de tarifas se mantiver, poderão desencadear uma guerra comercial à escala global, pois os países enfrentarão a necessidade de serem autossuficientes. Isso fará com que dependam cada vez menos da economia externa. Ainda assim, neste momento a aplicação de tarifas é a solução mais simples e credível”, analisa. Mas frisa que para esta dificuldade de competir com o mercado chinês contribui o facto de o país ser um grande exportador de baterias de lítio para carros elétricos.
Mas o que é melhor, proteger os empregos europeus ou assegurar preços mais baixos para os consumidores europeus? A resposta depende sempre também de questões de concorrência saudável, mas Rodrigues dos Santos acrescenta também que “é fundamental percebermos se as vantagens destas situações para os orçamentos familiares se sobrepõem aos 13 milhões de pessoas que trabalham no setor automóvel”.
O problema húngaro
A eventual construção de fábricas de construtores chineses na Hungria – para contornar as tarifas impostas no continente europeu - causou incómodo nos representantes do setor. João Rodrigues dos Santos faz uma leitura política: “O regime húngaro é próximo de regimes que colidem com interesses da União Europeia, o que torna evidente de que lado se posiciona o país liderado por Viktor Orbán.” Ainda assim, acredita o economista, eventuais consequências para o país “poderão demorar muito tempo”.
Carlos Zorrinho, antigo deputado do Parlamento Europeu, situa a questão em geral: a União Europeia “deve ter em conta o relatório de competitividade de Draghi, dando uma resposta sistémica a problemas sistémicos”. Em causa o estudo liderado pelo antigo presidente do Banco Central Europeu, que salienta os riscos de longo prazo que existem para a competitividade europeia. Para Zorrinho, “todas as empresas internacionais que se instalem na Europa devem respeitar as regras e a cultura europeia, como é o caso desta empresa que se instalou na Hungria”. Salientando não conhecer este caso específico em detalhe, o antigo eurodeputado socialista lembra que “qualquer empresa que não respeite as regras que a União Europeia exige pode ser levada a tribunal”.
O alarme da VW
“Todas as empresas automóveis estão com problemas”, mas “a Volkswagen é neste momento um caso mais preocupante”, diz Abel Mateus, referindo-se à ameaça de fecho de fábricas da companhia na Alemanha, “algo que não acontece há vários anos”.
Ao fim de 87 anos de história, a decisão rara da Volkswagen resulta da dificuldade na transição dos seus automóveis movidos por combustíveis fósseis para elétricos – considerados mais limpos, mas menos lucrativos.
A Autoeuropa, responsável direta e indiretamente por cerca de 5000 postos de trabalho em Portugal, pode não ser afetada pelo fecho de fábricas na Alemanha, até porque a fábrica portuguesa é “a única onde se produz o modelo T-Roc”, argumenta Abel Mateus. João Rodrigues dos Santos admite que “as encomendas em Portugal podem diminuir por consequência, originando com que a Autoeuropa tenha de começar a pensar em soluções como a diminuição de recursos humanos, ou voltar ao lay-off”.
Outras empresas, como a Stellantis, que resultou da junção entre os grupos italo-americano FCA e francês PSA (detentores da Peugeot e da Citroen), também têm apresentado algumas quebras. Na primeira metade de 2024, o lucro operacional da empresa caiu 40%.