A discussão "vaga", a cordialidade e as linhas vermelhas - o encontro entre Biden e Xi nas entrelinhas (e a importância do que ficou por dizer)

14 nov 2022, 23:00
Xi Jinping e Joe Biden, Cimeira de Bali (AP Photo/Alex Brandon)

Tudo o que precisa saber sobre o encontro entre os líderes das duas maiores potências mundiais

Uma discussão "vaga", marcada pelas imagens de extrema cordialidade (e até um visível à vontade do presidente norte-americano), mas que não resultou em avanços nas relações bilaterais entre os Estados Unidos e a China. Mas também não houve recuos. Joe Biden e Xi Jinping encontraram-se esta segunda-feira para concordar em discordar - e, acima de tudo, evitar mais tensões.

Os dois presidentes cumprimentaram-se carinhosamente diante de uma fileira de bandeiras chinesas e americanas quando se encontraram no luxuoso Mulia Hotel, um dos locais da paradisíaca Bali que sediará vários encontros bilaterais à margem do G20. "Passámos muito tempo juntos quando éramos vice-presidentes e é ótimo vê-lo novamente", disse Biden ao homólogo chinês à frente dos jornalistas. A última vez que um presidente americano apertou a mão de Xi Jinping foi há mais de três anos. Donald Trump estava na Casa Branca, a pandemia estava a meses de distância e as relações bilaterais - embora com atritos devido à guerra comercial - eram muito mais firmes. Xi e Biden, que tinham uma harmonia pessoal muito boa quando eram vice-presidentes, falaram até cinco vezes ao telefone no último ano e meio. 

E facto é que os laços entre as duas principais potências mundiais arrefeceram. "Aquele aperto de mão é um ponto de cordialidade de uma lógica de Guerra Fria: os Estados Unidos estão a tentar usar a doutrina passada", afirma à CNN Portugal Tiago André Lopes, especialista em diplomacia e estudos asiáticos. "Apesar das diferenças de posição, Joe Biden quer mostrar que não vai em posição de fraqueza."

É por isso que a reunião foi muito importante: não eram esperadas mudanças diplomáticas substanciais, mas abre-se a possibilidade de que ambos os líderes estejam dispostos a reverter o declínio total nas relações entre os seus países, diz Diana Soller à CNN Portugal. Como parece, aliás, após as primeiras palavras de cordialidade diante das câmaras, antes de continuar com a reunião a portas fechadas. "Acredito absolutamente que não há necessidade de uma nova Guerra Fria", disse Biden, querendo acalmar a tensão atual. 

E é precisamente Biden que avança no cumprimento, detalha Tiago André Lopes, explicando que, na leitura dos Estados Unidos, os norte-americanos é que são os pioneiros. Por sua vez, no lado da China, é Xi que é procurado e não o contrário.

"Esta cimeira serviu não para se chegar a conclusões, mas para reafirmar que os Estados estão otimistas relativamente a poderem seguir com uma relação cordial caso nenhuma das potências se intrometa nos assuntos da outra. No fundo, serviu simplesmente para baixar a tensão e um compromisso que tudo farão para travar a Rússia de usar armas nucleares", aponta Diana Soller. Algo que é do interesse dos dois, sublinha a especialista: os EUA porque não querem intervir e a China porque a doutrina chinesa é a de não uso de armas nucleares ofensivas. Já o resto? "É tudo muito vago." 

A importância do que ficou por dizer

A reunião bilateral foi longa: 3 horas e 12 minutos. Houve até um pequeno incidente destacado por jornalistas presentes antes do fecho das portas: um produtor de televisão dos Estados Unidos foi empurrado por um funcionário chinês depois de perguntar a Biden se planeava mencionar os direitos humanos durante a reunião.

"O encontro serviu para definir linhas vermelhas entre os dois Estados e para medir as forças", analisa Tiago André Lopes, que reforça: "Isto foi uma medição de forças - particularmente para os EUA nos próximos dois anos." Já a China marcou posição em certos temas. "Só o facto de ter sido discutido de forma superficial, já tem uma leitura muito concreta. Ou seja, os direitos humanos não são prioridade para a China e, pelos vistos, nem para os EUA."

Mas há mais temas em que os dois países "colidiram" - e que deram respostas vagas - que importa destacar:

1 - Concorrência desleal: segundo Tiago André Lopes, Biden queixou-se da prática chinesa do dumping (e foi esse tema que já tinha levado a uma oposição na presidência de Trump).

2 - Ações de desestabilização em Taiwan: ambos países têm entendimentos diferentes - a China entende que tem legitimidade para a absorção, já os EUA entendem que têm o dever de proteger a integridade territorial.

E aqui há um facto curioso: falou-se só de Taiwan, mas não de República da China - que compreende mais do que Taiwan. "Poderia ser uma coincidência, mas é propositado. Os Estados Unidos não se querem comprometer com o projeto da China", diz o especialista em estudos asiáticos.

3 - Violação dos direitos humanos: mais um tema discutido, mas superficialmente. Segundo Tiago André Lopes, ambos concordaram que é importante, que têm obrigações, mas a discussão não avançou. "Ninguém sairia bem do jogo do aponta o dedo." 

4 - Pequim e Moscovo: mais uma vez, não há notícia. A China voltou a afirmar que não concorda com o nuclear e que o nível de violência é excessivo, mas que continua a compreender os argumentos. No fundo, não há resposta da China sobre a posição na guerra da Ucrânia, frisa Diana Soller.

"Há muitas coisas que gostaríamos de saber que ficaram sem resposta. É muito difícil olhar para uma cimeira sem conclusões como um sucesso. Por outro lado, sem conclusões, é positivo que as tensões tenham diminuído", observa a especialista em relações internacionais, que prossegue: "Parece-me tudo pouco claro. Há sim a preocupação em manter as relações em cordialidade. Evitou-se a questão de Taiwan, da guerra comercial e da Ucrânia. No fundo, os assuntos verdadeiramente incómodos não foram aflorados nesta cimeira. Até porque para se debater certos e determinados assuntos, era preciso entrar num debate mais profundo que iria trazer diferenças mais profundas."

"Não houve propriamente compromissos, mas sim declarações de boa vontade. Concordaram em discordar", diz Diana Soller.

Uma "missão de charme" malsucedida

Biden e Xi chegaram a Bali reforçados dentro dos respetivos países. O norte-americano comemora o controlo democrata do Senado nas eleições intercalares, enquanto os chineses revalidaram um terceiro mandato ao presidente que o torna ainda mais líder supremo e cercado de partidários em altos cargos políticos e militares.

E o encontro com Biden e a participação na cimeira do G20 marcam o regresso ao cenário internacional de Xi Jinping, que permaneceu "fechado em casa" durante mais de dois anos e meio - além de uma breve viagem à Ásia Central em setembro para uma cimeira de segurança regional, onde Xi se encontrou cara a cara apenas com líderes de países vizinhos, incluindo o russo Vladimir Putin, o presidente da China não se aventurou mais desde o início da pandemia.

Mas se Diana Soller frisa o reconhecimento dos Estados Unidos de estarem perante uma grande potência (ao sentar-se com a China de igual para igual e aceitar que a China fale dos EUA em pé de igualdade), já Tiago André Lopes defende que, "enquanto missão de charme da Casa Branca, esta foi malsucedida". Porquê? "Porque esta é uma China diferente."

"Os Estados Unidos ainda estão com dificuldade em perceber que esta é uma China politicamente ativa", afirma.

Ora, do ponto de vista doutrinário, a nova doutrina chinesa Fenfa Youwei - de "esforçar-se para alcançar algo" - faz com que a China destrua os mitos sobre os quais os Estados Unidos costumam atuar, afirma o especialista. Um deles é que as relações com os norte-americanos são centrais. "O que a China já percebeu é que o seu crescimento político só vai ser através da confrontação. E aí começa a olhar para outros aliados." 

As palavras de Xi foram claras nesse sentido. "A relação EUA-China não deve ser um jogo em que tu perdes e eu ganho, tu sobes e eu caio; o sucesso de ambos é uma oportunidade e não um desafio mútuo. Mudar a ordem internacional existente não interfere nos assuntos internos dos Estados Unidos e não tem intenção de desafiar ou substituir os Estados Unidos.”

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