Lockdown é justificado pelo aumento de novos casos de covid em Zhengzhou, mas também permitirá controlar melhor os protestos dos trabalhadores da Foxconn, o maior fornecedor mundial da Apple
As autoridades chinesas decretaram cinco dias de lockdown em quase toda a cidade de Zhengzhou, onde se têm registado confrontos entre a polícia e trabalhadores da Foxconn, a maior fábrica de Iphones do mundo. A razão invocada para impor o confinamento é a subida do número de novos casos de covid-19 na cidade. A informação foi avançada pelas agências Bloomberg e France-Presse.
A partir da próxima meia-noite (hora local), e pelo menos até ao dia 29, as principais áreas urbanas de Zhengzhou estarão sob “controlo de mobilidade”, escreve a Bloomberg. A expressão usada pelas autoridades é um eufemismo para confinamento geral, sem que as pessoas possam sair à rua.
A medida será também uma forma adicional de reprimir os protestos dos trabalhadores da Foxconn. A revolta começou no mês passado, devido às más condições de trabalho a que os operários estão sujeitos desde que ficaram obrigados a viver dentro da fábrica.
Em meados de outubro foram detetados vários surtos de covid entre os cerca de 200 mil trabalhadores da fábrica, onde são montados cerca de 70% de todos os Iphones vendidos no mundo. As autoridades decidiram então impor o funcionamento “em bolha”, obrigando os trabalhadores a viver 24 horas por dia dentro das instalações fabris. As terríveis condições de trabalho a que ficaram sujeitos - sem condições de higiene, sem privacidade, sem assistência médica e mal alimentados - acabaram por originar protestos, primeiro, e fuga em massa de trabalhadores, depois.
No início deste mês, centenas de operários arrombaram portas e saltaram vedações, para escaparem à prisão a que estavam submetidos. A notícia e as imagens desse êxodo, e dos protestos dentro da fábrica, acabaram por correr mundo.
Numa tentativa desesperada para travar a fuga de trabalhadores, a Foxconn prometeu pagar bónus aos funcionários que ficassem, e aos novos que fossem contratados. Ontem, o incumprimento dessa promessa terá sido a gota de água que fez milhares de trabalhadores voltarem aos protestos: saíram do confinamento, derrubaram barreiras, destruíram janelas e câmaras de vigilância, e envolveram-se em confrontos com dezenas de agentes da autoridade.
As imagens dos confrontos de ontem, que se terão prolongado ao longo de todo o dia, foram divulgadas em plataformas chinesas de partilha de vídeos, antes de serem apagadas pelas autoridades, que empregaram toda a força de censura do aparelho estatal chinês para fazer desaparecer esses testemunhos. Apesar desse esforço, continuaram a ser partilhados nas redes sociais vídeos de confrontos entre trabalhadores e polícia, alguns deles filmados já durante a noite.
Foxconn paga para se livrar de trabalhadores problemáticos
Numa nova tentativa de controlo de danos, a Foxconn assumiu ontem um alegado “erro informático”, e reconheceu que os trabalhadores contratados nas últimas semanas têm direito ao pagamento de um bónus, o que será feito de imediato. A fábrica pediu desculpas pelo “lapso”, que esteve na origem dos graves conflitos de ontem entre operários e autoridades.
Para além disso, a Foxconn disponibilizou-se para pagar uma indemnização aos novos trabalhadores que queiram abandonar a empresa de imediato, oferecendo-lhes também transporte de autocarro para longe das instalações fabris.
Segundo o jornal South China Morning Post, cada trabalhador contratado recentemente que queira ir embora recebe um acerto de contas equivalente a 1.400 euros se quiser abandonar imediatamente a fábrica. Uma forma de retirar de cena os novos trabalhadores, que terão sido, alegadamente, quem iniciou os conflitos de ontem, os mais graves registados até agora na Foxconn.
A disponibilidade para deixar sair trabalhadores - e até para lhes pagar a saída - choca de frente com os esforços das últimas semanas para contratar mais mão de obra. Segundo a revista China Newsweek, alinhada com o Partido Comunista Chinês (PCC), a fábrica de Zhengzhou precisa urgentemente de contratar 100 mil trabalhadores para compensar os que saíram nas últimas semanas e reequilibrar a produção de Iphones. A escassez de mão de obra é tal que as estruturas locais do PCC se mobilizaram para ajudar no recrutamento de trabalhadores, e até houve um apelo aos veteranos para que trabalhem para o fabricante taiwanês.
Apesar desta necessidade urgente, a Foxconn terá suspendido as novas contratações, porque já não tem espaço para acolher novos trabalhadores, pois uma parte considerável da área da fábrica está ocupada com instalações de quarentena, onde estão internados os funcionários com covid-19.
Restrições endurecem por todo o país
Por toda a China está a crescer o número de novos casos de covid, naquela que poderá vir a ser a vaga mais grave da pandemia no país. Ontem, em todo o país registou-se um total de 29.157 casos - um valor baixo tendo em conta a população chinesa (1,4 mil milhões), mas demasiado alto segundo a política oficial de “covid zero”, que visa a erradicação do vírus, algo que a OMS considera insustentável. Os números estão a aproximar-se dos valores de abril, quando se registou o pico de infeções.
Partes de Pequim e outras cidades, como Cantão, estão sob fortes restrições de mobilidade, e a entrada na capital só é permitida a quem cumpra três dias seguidos de testes covid com resultado negativo.
Centros comerciais, parques e museus estão encerrados em Pequim, e em muitos distritos da cidade não há aulas, os restaurantes só servem para fora e os transportes públicos circulam vazios. Não há registo de confrontos entre cidadãos e autoridades em Pequim, mas noutras partes do país há protestos contra esta nova vaga de medidas draconianas.
Em Guangzhou, um importante centro industrial, milhões de pessoas foram mandadas para casa, após alguma agitação por causa das medidas de contenção impostas recentemente. Também Xangai, que esteve dois meses sob rigoroso lockdown na primavera, está a registar uma subida de casos, o que já levou ao cancelamento do salão automóvel. Alguns locais da cidade foram fechados, e as autoridades estão a impor a obrigatoriedade de testes à população. Chongqing, no sudoeste, também está na iminência de ficar sob confinamento.
Centenas sem ter para onde ir em Cantão
No sul, em Cantão, na província de Guangdong, há notícia de centenas de trabalhadores que vagueiam sem ter para onde ir: foram libertados dos centros de quarentena onde passaram vários dias ou semanas, mas as autoridades não os deixam voltar às suas habitações no distrito residencial de Haizhu, um dos epicentros da atual vaga.
As autoridades locais alegam que ainda demorará algum tempo até que os surtos de covid estejam controlados, e recomendam aos trabalhadores (na sua maioria, deslocados de outras zonas do país) que regressem às suas regiões de origem. Mas nessas regiões também há restrições à entrada de gente, sobretudo oriunda de um dos locais mais afetados por esta vaga.
Segundo o jornal SCMP, “sem terem para onde ir, os migrantes carregam as suas mochilas enquanto procuram abrigo temporário debaixo de pontes, túneis e viadutos ou junto ao rio, perto das zonas residenciais urbanas”.
FMI: é hora de “recalibrar” as medidas anti-covid
Com a economia chinesa a ser arrastada pela insistência na política de covid zero (para além do contexto externo adverso, com o abrandamento da economia global em cenário de inflação alta e de guerra na Europa), o FMI alertou ontem Pequim para a necessidade de “recalibrar” a sua estratégia de combate à pandemia.
"Embora a estratégia de covid zero se tenha tornado mais ágil com o tempo, a combinação de variantes covid mais contagiosas e lacunas persistentes nas vacinas levou à necessidade de confinamentos mais frequentes, pesando sobre o consumo e o investimento privado, incluindo na habitação", disse Gita Gopinath, directora-geral-adjunta do Fundo Monetário Internacional. "No futuro, uma nova recalibração da estratégia da covid deve ser bem preparada e incluir o aumento do ritmo das vacinas e a sua manutenção a um nível elevado, para assegurar que a protecção seja preservada", acrescentou Gopinath.
Na análise divulgada pelo FMI traça um quadro negativo para a economia chinesa, cujo PIB deverá ter este ano o pior desempenho das últimas quatro décadas. A gestão da pandemia de coronavírus, a quebra do mercado imobiliário e a retração da procura externa, por causa do abrandamento global, foram identificados pelo FMI como os maiores riscos que a economia chinesa enfrenta no imediato.