A China vai enfrentar três grandes vagas de covid. Sem medicamentos e sem mãos a medir nos crematórios 

19 dez 2022, 05:10
China (Associated Press)

Epidemiologista chinês avisa que neste inverno o país vai enfrentar três vagas seguidas de novos casos covid. Mais um estudo aponta para 1 milhão de mortos com o fim da política de covid zero. Falta quase tudo nas farmácias e até falta mão de obra nos crematórios

A China está a enfrentar a primeira de três grandes vagas de covid provocadas pela súbita mudança de políticas de controlo da pandemia. Os números oficiais chineses não dão conta de um aumento significativo de novos casos após o governo ter abandonado, a 7 de dezembro, as políticas de covid zero que foram impostas ao longo de três anos, mas os testemunhos nas grandes cidades chinesas, os relatos dos funcionários de saúde, e as denúncias feitas nas redes sociais revelam que os números estão a disparar de forma alarmante.

Ora, esta é apenas a primeira de três vagas do novo coronavírus que o país irá enfrentar durante este inverno, prevê um alto funcionário dos serviços de saúde da China. Segundo o epidemiologista Wu Zunyou, o atual pico de infeções deverá prolongar-se até meados de Janeiro - os últimos números oficiais indicam um número relativamente baixo de novos casos diários (foram reportados apenas 2.097 novas infeções neste domingo), mas os especialistas acreditam que estes são números subestimados, devido à abrupta diminuição de testes covid nas últimas duas semanas, desde que o governo deixou de exigir teste negativo para que os cidadãos pudessem fazer coisas tão básicas como ir ao supermercado, andar de transportes públicos ou passear num jardim público. 

A segunda vaga, prevê o epidemiologista que trabalha para o governo chinês, deverá acontecer em finais de janeiro, por altura das celebrações chinesas do Ano Novo Lunar. As festividades começam a 21 de janeiro, e prolongam-se por uma semana - e, com o levantamento de quase todas as restrições relacionadas com a covid, esta será a primeira vez desde 2019 que milhões de chineses poderão viajar para diferentes províncias do país para se reunirem com os familiares nas suas cidades e aldeias de origem. 

Nos últimos três anos as viagens internas que implicassem deslocações entre diferentes províncias foram muito condicionadas, para evitar a disseminação nacional da covid-19, e o controlo era especialmente apertado em épocas festivas como o Ano Novo chinês. Agora, o levantamento dessas condicionantes será provavelmente um fator de grande contágio a nível nacional.

Em conferência de imprensa, Wu Zunyou apontou ainda para uma provável terceira grande vaga de novos casos de covid entre finais de fevereiro e meados de março, à medida que as pessoas regressem ao trabalho após as férias, e vão contagiando outras pessoas na sua zona de residência - seja nos locais de trabalho, ou outros espaços comuns como transportes públicos ou estabelecimentos comerciais.

Outro cálculo prevê 1 milhão de mortos

A forma como o epidemiologista apresentou um calendário para três grandes vagas de contágio apenas durante os meses de inverno parece ter sido uma forma de tentar convencer os chineses a aderir aos esforços oficiais de vacinação, com vista a aumentar a proteção vacinal sobre uma população que não tem imunidade de grupo, pois durante três anos foi ferozmente protegida do contágio pelas políticas draconianas de covid zero.

Segundo Wu, os atuais níveis de vacinação oferecem um certo nível de proteção contra os surtos e permitem limitar o número de casos graves; porém, as autoridades estão preocupadas com a crescente resistência da população às doses de reforço da vacina (ou seja, terceira e quarta dose), e têm alertado que a taxa de cobertura vacinal na população mais idosa é bastante baixa (apenas 40% dos chineses com mais de 80 anos recebeu as duas primeiras doses).

Apesar dos alertas sobre a exposição da população ao contágio nos próximos meses, Wu Zunyou, um dos mais respeitados epidemiologistas chineses, validou a política governamental de covid zero seguida até ao início deste mês. Pelos seus cálculos, se as rigorosas políticas de contenção tivessem sido levantadas mais cedo, o número de mortos no país seriam incomparavelmente mais alto. Pelas suas contas, se a estratégia de covid zero tivesse sido abandonada em Janeiro deste ano, 250 mil pessoas na China teriam morrido - um cálculo que contrasta com as pouco mais de cinco mil mortes oficialmente imputadas à covid no país.

Por outro lado, Wu assegurou que a taxa de mortalidade associada a este coronavírus está a cair de forma relevante. A 5 de dezembro (dois dias antes do levantamento de quase todas as regras anti-covid), a proporção de doentes graves ou gravemente doentes com covid era de 0,18% dos casos notificados. Uma taxa que compara com 3,32% no ano passado, e 16,47% em 2020.

Apesar desta nota positiva, um novo estudo sobre o possível impacto das novas vagas de infeção na China reforça a ideia de que o país poderá estar à beira de enfrentar altíssimos níveis de mortalidade. De acordo com novas projeções do Instituto de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME), sediado nos EUA, o levantamento abrupto das restrições rigorosas na China poderá resultar numa explosão de casos e mais de um milhão de mortes em 2023. O cálculo encaixa no patamar inferior de diversas estimativas, que preveem entre um milhão e dois milhões de vítimas mortais com o fim súbito da política de covid zero.

Novas mortes, apesar de os números oficiais não o dizerem

Apesar destas garantias, há relatos de serviços de saúde sob enorme pressão, com hospitais em Pequim onde cerca de 80% do pessoal médico estará infectado - e, segundo noticiou o jornal britânico Guardian, médicos e enfermeiros estarão a ser obrigados a continuar a trabalhar mesmo estando doentes.

Entretanto, também parece estar a crescer o movimento nas morgues e crematórios de Pequim, apesar de as autoridades não terem noticiado qualquer morte associada à covid desde o início deste mês. Ainda este sábado a Comissão Nacional de Saúde disse que não há qualquer alteração ao número oficial de mortes devido a covid, que parou nos 5.235 óbitos. Mas este dado parece chocar com a realidade, pois pelo menos dois antigos jornalistas de órgãos de comunicação social estatais terão morrido na última semana vítimas de covid. Segundo noticiou na sexta-feira o jornal online chinês Caixin, reconhecido pelas suas investigações jornalísticas, os dois antigos jornalistas ligados a jornais do Partido Comunista Chinês morreram em Pequim depois de terem contraído covid-19, o que faria deles as primeiras vítimas mortais desde que a China desmantelou a maior parte das restrições relacionadas com a pandemia. No sábado, o mesmo jornal online noticiou a morte de um estudante de medicina, de 23 anos, em Sichuan, a 14 de dezembro. O estudante, que estava a fazer o equivalente ao internato, estaria infetado com covid mas, apesar disso, estava obrigado a fazer longos turnos na resposta médica ao aumento de casos de covid na cidade.

Fila à porta de crematório dedicado à covid

Estes relatos colocam em causa a informação oficial de que não haverá novas mortes devido à pandemia. Também o aumento do movimento nas agências funerárias e nos serviços de cremação de cadáveres lança dúvidas sobre os dados oficiais.

Segundo a agência Reuters, na tarde de sábado um dos seus jornalistas viu cerca de 30 carros funerários parados na entrada de um crematório de Pequim onde são cremados os cadáveres das vítimas de covid. Entre as viaturas, havia uma ambulância e uma carrinha com um cadáver embrulhado em lençóis, que foi recolhido por trabalhadores usando fatos de proteção anti-covid. Segundo o mesmo relato, três das chaminés do crematório fumegavam continuamente.

A poucos metros do crematório, numa sala funerária, o jornalista da Reuters viu no chão cerca de 20 sacos amarelos com cadáveres. A agência de notícias não pôde confirmar se as mortes foram devidas à covid, mas aquelas instalações estão dedicadas às vítimas deste vírus. Duas testemunhas disseram à Reuters que o número de mortes tem sido acima da média nesta época, e subiu em comparação com o período anterior ao levantamento das regras de covid zero. 

O aumento de casos de covid também está a afetar os trabalhadores de casas funerárias e dos crematórios. Pelo menos uma dúzia de casas funerárias em Pequim queixa-se de falta de mão de obra. "Temos agora menos carros e trabalhadores", disse um funcionário à Reuters. "Temos muitos trabalhadores que testaram positivo", afirmou a mesma fonte, acrescentando que há uma crescente procura de serviços de cremação, e acumulação de trabalho por falta de mão de obra. Numa casa funerária, um corpo foi mantido durante três dias antes de poder ser cremado, disse um funcionário. Os cidadãos podem levar, por meios próprios, os cadáveres para as casas funerárias, mas os serviços não têm mãos a medir para as cremações.

"Nem ibuprofeno, nem aspirina, nem vitamina C, nada"

Também nas farmácias se veem indícios claros da vaga de covid. As prateleiras deixaram de ter medicamentos contra a febre e para tratamento de dores corporais e outros sintomas de covid-19. Os testes caseiros de covid também desapareceram, e são vendidos a preços altamente especulativos no mercado negro ou em sites.

"Nem ibuprofeno, nem aspirina, nem vitamina C, absolutamente nada", disse Fan Weiguo, um idosos de 72 anos, entrevistado pelo jornal South China Morning Post. "Nem sequer tinham pastilhas de gelo de melancia [para acalmar as dores de garganta]. Estava tudo esgotado".

Fan e a sua mulher, residentes em Changzhou, na província de Jiangsu, continuam à espera dos medicamentos que as autoridades municipais prometeram distribuir. Registaram-se há mais de uma semana, mas não receberam nada, apesar das promessas oficiais. 

De acordo com o SCMP, o governo municipal de Changzhou garantiu há dez dias, na sua conta oficial WeChat, que idosos, crianças e pessoas com necessidades especiais receberiam gratuitamente pacotes de cuidados de saúde: medicamentos para a febre e constipação, comprimidos de vitamina C e kits de teste rápido de antigénio. Mas as entregas tardam em chegar, para desespero dos mais vulneráveis, que vêem as farmácias de prateleiras vazias.

Farmacêuticas com turnos de 24 horas

Para além da corrida aos medicamentos assim que as autoridades anunciaram que os pacientes com sintomas ligeiros ou assintomáticos deveriam fazer isolamento em casa, a situação é agravada pelo facto de muitos trabalhadores do setor farmacêutico e de distribuição estarem, também, doentes - o que afeta a produção e a rede logística para fazer chegar os remédios às farmácias.

"A nossa fábrica está a empregar toda a mão-de-obra possível para passar a produção para 24 horas por dia", disse um empregado de uma farmacêutica ao The Paper, um jornal online de Xangai, ligado ao governo. "À medida que os trabalhadores recuperam e regressam ao trabalho, espera-se que as coisas melhorem em breve".

Vários gigantes farmacêuticos chineses estão a fazer esforços semelhantes, segundo notícias de diversos órgãos de comunicação. A Shandong Xinhua Pharmaceutical, o maior fornecedor mundial de matérias-primas para o fabrico de ibuprofeno, disse estar a trabalhar 24 horas por dia, conforme noticiou o Yicai.com, um dos principais meios de comunicação financeiros da China. Para além de ibuprofeno, a empresa disse estar a fazer tudo para aumentar a produção de vitamina C e outros medicamentos que faltam no mercado.

Mas ainda demorará algum tempo até que as farmácias recebem novos fornecimentos dos produtos em falta, pois a primeira prioridade será reabastecer hospitais e outros equipamentos de saúde, e lares de idosos, que também foram afetados pela rutura de fornecimentos, segundo informou um responsável do Ministério da Indústria. 

"A indústria farmacêutica chinesa tem uma base sólida. Acreditamos que, com os esforços conjuntos de todas as partes, a capacidade de produção de medicamentos relacionados [com a covid] estará disponível em breve para responder às necessidades das pessoas", disse o mesmo porta-voz governamental.

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